“A Sonata de Kreutzer”, de Lev Tolstói: um exemplo evidente do que agora chamamos relação tóxica

por José Moreira,    4 Dezembro, 2022
“A Sonata de Kreutzer”, de Lev Tolstói: um exemplo evidente do que agora chamamos relação tóxica
Capa do livro “A Sonata de Kreutzer”, de Lev Tolstói (ed. Relógio D’Água)

Este artigo pode conter spoilers.

Renovei o interesse na leitura desta pequena história (que (in)felizmente estava perdida numa imensidão de livros cá por casa) em consequência do programa “A minha geração” da Antena 3 e RTP3. Neste episódio, Diana Duarte entrevista o jovem alfarrabista Carlos Maria Bobone (autor do livro “A Religião dos Livros” da Fundação Francisco Manuel dos Santos).

Esta obra tardia de Lev Tolstói (1828-1910), com a qualidade que podemos usufruir em “A morte de Ivan Ilitch”, surge na fase em que o autor mais se questiona sobre a vida e a sociedade. Num período muitíssimo precoce da emancipação da mulher na sociedade, desmonta algumas das expectativas impostas às mulheres em benefício do homem, mas que em muitas situações os prejudicam a ambos. O título da história remete para uma obra de Beethoven (Sonata No. 9 para Violino) que se revela elemento central da história e da ruptura de uma relação conturbada entre marido e mulher. A narrativa está dividida entre dois narradores, inicialmente na pessoa de um passageiro que se torna depois no ouvinte atento do personagem central, Pozdnyshev.

Durante uma longa viagem de comboio, uma discussão sobre as razões para o casamento e divórcio leva o estranho e sombrio Pozdnyshev a meter-se na conversa. Este homem começa a dissecar o seu percurso de vida em modo confessional, partindo de uma infância que lhe incutiu uma profunda hipocrisia nas suas relações com as mulheres.

“E assim fui apanhado. E assim fiquei enamorado. Não só considerava a minha noiva a mulher mais perfeita, mas eu próprio me considerei durante o noivado, o mais perfeito dos homens.”

“A Sonata de Kreutzer”, de Lev Tolstói.

Revela como, após casar, embarca gradualmente numa espiral de desentendimentos e contradições com a sua esposa: “Admiro-me agora de não ter visto, de princípio, a minha verdadeira situação. E eu podia tê-la visto desde essa época, porque as nossas discussões começavam por tais ninharias que quando acabavam era impossível saber por que tinham principiado.”, pode ler-se em “A Sonata de Kreutzer”, de Lev Tolstói.

Torturado pelos seus receios sobre uma possível infidelidade, pela dissonância entre o seu lado racional e a possessividade inconsciente, Pozdnyshev acaba por matar a mulher num acesso de quase loucura ciumenta. Ao longo da história alude diversas vezes à ligeireza da sua posterior punição, derivada do desequilíbrio imenso do papel da mulher na sociedade da época.

A descrição do casamento e das constantes manipulações e agressões verbais e psicológicas (com os filhos à mistura), constituem um exemplo evidente do que agora chamamos relação tóxica. Esta história é uma excelente demonstração da ténue linha que separa o amor e o ódio.

De manhã acalmou-se; reconciliámo-nos sob a influência do sentimento a que chamamos amor.

“A Sonata de Kreutzer”, de Lev Tolstói.

Tolstói, por vezes, apresenta algumas noções e diagnósticos generalistas em relação às dinâmicas entre homens e mulheres (fruto da sua época e período de vida em que encontrava). Ainda assim, produziu uma narrativa de beleza apurada e com profundidade de detalhes, onde o carácter existencialista intemporal nos cativa com o desenrolar dos pensamentos e confissões de um assassino arrependido.

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