A tensão para com o passado, no ‘Paraíso’ de Tatiana Salem Levy

por Miguel Fernandes Duarte,    6 Junho, 2016
A tensão para com o passado, no ‘Paraíso’ de Tatiana Salem Levy

Paraíso começa com sida. Pelo meio mete-se violência contra mulheres, acidentes mortais, dureza de vida. Ao mesmo tempo há amor, uma escritora isolada, memórias de infância. É nesta sobreposição que joga o livro, relato da vida de Ana, a tal escritora, da actual e da que foi, e também relato de uma escrava feiticeira, que amaldiçoa cinco gerações de mulheres. Escrava e Ana não são a mesma (ou serão?), mas as suas histórias entrelaçam-se repetidamente, quer fisicamente, na intercalação dos textos de ambas ao longo do livro, quer na própria história, já que a escrava, antes de nos chegar como fazendo parte do livro que Ana escreve, parte de uma alegada maldição sobre a família da própria Ana.

Tatiana Salem Levy, escritora brasileira residente em Portugal, deixa-nos este livro como legado de um Brasil actual ainda em confronto com o seu passado, a escravatura, a violência que teima em desaparecer. As próprias personagens recordam constantemente o que ficou para trás e parecem ter, dentro de si, algo a provar a si próprias. Isso é visível não só através da protagonista, mas também através da personagem de Daniel, homem auto-isolado no meio da floresta, numa pequena casa construída para o efeito, e do qual Ana se aproxima, quando se cruzam entre a vegetação.

É o avançar dessa relação que ocupa mais espaço, mas é nos momentos em que está ausente que o livro sobressai. Os momentos a sós, as interacções com Rosa, a criada da casa onde está, e o que a rodeia, a tensão da protagonista face à descoberta de que pode ter contraído sida. Tudo isto acompanhado de reflexões acerca do seu lugar no mundo, do seu passado e do dos outros.

Acabam por desiludir outros momentos. Se a constante troca de registos, entre presente, passado e relatos da escrava, pode resultar durante a maior parte do tempo, por vezes transparece pouca fluidez, com este último a deixar a desejar, em parte pela estranha escolha da primeira pessoa (a escrava) para relatar episódios das mulheres que amaldiçoou ao longo das gerações. Face a isso, só podemos concluir que Ana seria pior escritora que Tatiana Salem Levy. Infelizmente, mesmo a própria autora, não raras vezes, oscila entre momentos de escrita fluída e intrincada, e outros onde soa pouco mais que vulgar, nomeadamente quando se prende à relação amorosa de Ana e Daniel.

Paraíso, de Tatiana Salem Levy, está publicado em Portugal através das Edições Tinta-da-China e pode ser encontrado ao P.V.P. de 16.90€.

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