Álbuns com Pó. Cameroon Garage Funk, 50 anos depois.
O novo disco da Analog Africa apresenta-nos uma vez mais sonoridades muito particulares. Durante os anos 70, em Yaoundé, capital dos Camarões, não havia infraestrutura suficiente para dar vazão ao borbulhar criativo das bandas de garagem que eclodiam pela cidade. Estes artistas independentes, na simplicidade dos seus meios, foram, ainda assim, inventivos o suficiente para deixarem rasgos de brilhantismo que sobreviveram mais de meio século. Lançada há poucas semanas, a compilação Cameroon Garage Funk é um vibrante retrato desse processo, contendo 16 faixas que representam resiliência e vontade de criar.
Apesar da possibilidade de alugar espaços e material da emissora nacional, tal era inacessível aos bolsos de muitos músicos. A alternativa surgiu na forma de uma igreja adventista, capacitada com bons equipamentos de gravação, através da esperteza que o engenheiro de som que lá trabalhava teve para providenciar um estúdio improvisado. Monsieur Awono estava a par dos horários dos padres e, quando estes estavam fora, abriu as portas a muitos dos artistas que fazem parte deste disco — a troco de propina, claro. Com apenas um microfone na sala, amplificadores, instrumentos e bandas tinham que estar perfeitamente posicionados para que as sessões secretas fossem frutuosas. Era, de facto, um negócio arriscado para todos os envolvidos. Negócio esse que valeu a pena.
No final das gravações, a fita era entregue a quem tinha pago pela sessão. O próximo passo passava por arranjar uma editora que oferecesse serviços de fabrico e distribuição de vinis ou cassetes. Esse papel coube à lendária Sonafric, que patrocinou os sonhos de artistas e bandas no início das suas carreiras. Mas quem são estes artistas? Na verdade, alguns dos nomes continuam a ser tão obscuros, que mesmo os veteranos da cena musical camaronesa nunca tinham ouvido falar deles. O trabalho da Analog Africa é, então, absolutamente inestimável, envolvendo viagens aos Camarões e muitas horas de entrevistas para obter informações. Montar as peças do quebra-cabeças da movimentada cena musical de Yaoundé dos anos 70 não foi tarefa fácil.
A verdade é que, apesar das inúmeras dificuldades envolvidas no processo de criar e lançar um disco, os músicos da cena musical underground de Yaoundé deixaram para trás um legado extraordinário de grooves crus e de melodias muito próprias. Estas 16 canções podem ter sido gravadas numa igreja, com um único microfone, secretamente, no intervalo de apenas uma ou duas horas; mas o facto de ainda lhes prestarmos atenção, cerca de 50 anos depois, apenas ilustra a intemporalidade da música que é feita com coração. Cameroon Garage Funk está disponível em vinil, com a curadoria de Analog Africa. Material de colecção.
O Sotão é uma webmagazine focada no mais alto quilate da música lançada por artistas e editoras independentes. Junto com a Comunidade Cultura e Arte contribui mensalmente com a rubrica “Álbuns com Pó”, dedicado aos reissues de artistas do passado, alguns deles ainda completamente desconhecidos; e semanalmente com “Hoje à Noite n’O Sótão”.