Alfarrabistas? Essenciais, para lá dos livros
Após a bem-sucedida cobertura de um evento, que simulou uma sessão das Nações Unidas na Universidade de Coimbra, segui o conselho de uma pessoa especial, e desloquei-me a um lugar onde se vendia livros, em plena Avenida de Sá da Bandeira. Não era uma livraria convencional, mas sim um lugar de venda de algumas preciosidades literárias. A cultura tornou-se, ali, imbuída de um espírito de partilha, de doação, de concessão daquilo que é o resultado das nossas constituições humanas e metafísicas.
Foi assim que pude desfrutar de estantes recheadas de livros, com memórias avulsas, mas aglomeradas no seu próprio suporte material. Estava lá plasmado uma senda de experiências únicas, concedidas a partir de uma numerosa coleção de doze mil (!) livros por parte de um casal, que, desde cedo, se debruçou na coleção desses tesouros. O senhor, ex-funcionário público, apaixonou-se por peças em loiça e em porcelana, e recheou as prateleiras desses artefactos, na esperança de que alguém visse neles aquilo que o encantou, e que os conduzisse a dar uma gratificação monetária por eles. A senhora, aposentada professora de Português no Ensino Secundário, e com quem tive o prazer de me debruçar à conversa por uns largos, mas repentinos quinze minutos, colecionou uma série de livros de autores nacionais e internacionais, francófonos, anglófonos, lusófonos. Foi ela que me guiou por entre os inúmeros livros daquele incrível acervo.
Nesta conversa, e para além das recomendações que me foi dando, contou-me muito daquilo que era a cultura, e a sua manifestação nos interessantíssimos anos 60 e 70. Num período delicado, deambulado entre neorrealismo e existencialismo, passei a conhecer novos nomes, para além de consolidar aqueles que já me havia incutido. Mais do que ter os livros na minha mão, e de os usufruir em pleno, o melhor foi poder trocar impressões, de forma tão lúcida e vivida, onde tive o gosto de assumir o papel de modesto ouvinte, e de, simplesmente, me deliciar e de traçar, na imaginação, aquilo que estava a ouvir. Cada vez mais, sinto que o livro não é só a narrativa e as influências e inspirações que conduz e que aglomera. O livro é, e sempre foi, toda a aura que se foi criando em torno da sua existência, para além do contexto em que este está. A narrativa que sobressai, e que se afirma como a progenitora de todas as demais, é, precisamente, aquela em que se consagram as outras tantas, redigidas e asseveradas em obras literárias. Também a conversa é um recurso de vulto e de destaque naquilo que é o nosso memorial cultural.
Perceber toda a envolvência em que os autores surgiram, para além da forma como o processo pedagógico e educacional da literatura foi evoluindo e (pro/re)gredindo, foi algo que me motivou, de sobremaneira, neste diálogo intergeracional. Eu, num mero papel de querer levar algumas obras que, há muito, me tinham aliciado à sua aquisição, levei bem mais do que aquilo que os autores que mexeram comigo redigiram. Levei a conversa, para além do grupo das sensações e das vibrações que senti ao percorrer, na memória da História, aquilo que havia perscrutado por tanto tempo, mas nunca associado ao testemunho pessoal. Levei Agustina, Vergílio, Jorge Amado, mas a certeza de querer lá voltar, para recordar e reviver aqueles breves e prolongados quinze minutos de conversa, pelos quais a cultura fluiu e se desinibiu dos grandes académicos e estudiosos. Mais do que impor, expor. Mais do que obrigar a prefixar o conhecer, quis aprender. Uma viagem a repetir, seguida na tal condução, em ruas informais e de travões ainda esquecidos, de uma literatura que perdura e dura. Que os mais apaixonados aprendam a conduzir assim, para que todos possamos ser mais aquilo que vivemos, ao mesmo tempo que nos associamos e nos vertemos no que lemos.