Ano Agustina: ‘Vale Abraão’, uma reescrita de ‘Madame Bovary’
Este artigo faz parte do Ano Agustina, no âmbito do qual, ao longo de 2018, a Comunidade Cultura e Arte lançará, a cada mês, uma crítica a um livro da obra de Agustina Bessa-Luís, neste momento a ser reeditada pela editora Relógio d’Água.
Vale Abraão, de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1991, é sobretudo um exercício interartístico e de intertextualidade. Encomendado por Manoel de Oliveira, visando a sua adaptação para a tela cinematográfica, este romance é também uma espécie de reescrita do célebre texto Madame Bovary, do escritor francês, Gustave Flaubert.
Inspirados em Charles e Emma, Agustina Bessa-Luís apresenta-nos Carlos e Ema – mais tarde, também apelidada de “Bovarinha”. Tendo crescido no Romesal, a protagonista, após o seu matrimónio com Carlos, desloca-se para Vale Abraão. Juntamente com o Vesúvio, estes três locais serão o pano de fundo desta narrativa, sendo que Agustina Bessa-Luís recorre a inúmeras écfrases para salientar a beleza portentosa da região do Douro.
Já no Romesal, Ema era “um perigo para o trânsito [na] estrada” (p.25). Prenúncio este que vem acautelar o leitor, tornando-o mais vigilante. O grande ponto de viragem verifica-se, porém, num baile que decorre na Casa das Jacas – uma festa que Ema jamais esqueceria. Este acontecimento espoleta uma crise identitária na protagonista, que coloca essencialmente em confronto homens e mulheres, numa espécie de guerra de titãs. Afinal:
“O que elas invejavam nos homens não eram os órgãos genitais, mas o que eles representam: uma criatura completamente prestável aos jogos do acaso e livre da submissão que constrange o perverso, o malvisto, o delirante do seu próprio mérito, a lançar para debaixo dum comboio ou a comer um punhado de arsénico.” (p.36)
A partir de então, Ema, numa luta contra uma insatisfação que lhe é intrínseca, busca tudo o que é desordenado, atrevido e perverso. Rompendo com o marasmo e a frivolidade que dominavam a ruralidade portuguesa, assistimos à absoluta decadência daquela região do Douro.
Assim, Agustina Bessa-Luís não só critica de forma exímia a sociedade rural portuguesa como evidencia uma absoluta mestria ao escrever a esfera psicológica destes personagens. Deveremos assinalar, ainda, a desconstrução que a escritora faz de um estereótipo feminino profundamente enraizado num Portugal provinciano. Esta mentalidade colocava a mulher num estado de vegetação – ou, como Agustina Bessa-Luís designou, sob um ‘efeito zombie’ – de modo a proteger o estatuto do homem. As mulheres eram pensadas como corpo sem alma; corpo sem identidade; corpo sem pensamento. Apenas corpo:
“Carlos não queria admitir que ela sofria, isso punha em causa a sua fundamental ideia de homem (…). Para quê reconhecer-lhe uma consciência humana, e aquele doloroso poder de articular pensamentos? Ele permitia-lhe tudo como prova da sua degradação que a amarrava ao homem. Permitia-lhe amantes quantos quisesse; linguagem obscena, vícios de todos os tipos (…) – porque não? Contanto que ela fosse parte do seu autor, que era o homem.”
A mitificação de Agustina Bessa-Luís enquanto escritora complexa, cujos textos são obsoletos e maçudos, tem de acabar, para que se possa descobrir uma obra sublime sem qualquer preconceito. Agustina Bessa-Luís tem de (re)começar a ser lida, pois continuar a ignorar esta escritora e esta obra diz bastante de nós enquanto portugueses, e enquanto leitores.