Carlos Guerreiro. Há 40 anos o encadernador do Bairro Alto
Carlos Guerreiro é encadernador, dourador e restaurador de livros. Tudo começou aos 12 anos.
Em outubro de 1981, entrou pela primeira vez na porta 6 da Rua de São Boaventura, no Bairro Alto, continuando o trabalho que havia sido feito há mais de 40 anos na oficina: o de encadernar.
Quem entra agora na oficina, e quem entrava no passado não nota muita diferença — “Não mudou muito, é verdade”, admite Carlos.
Afinal, apesar do computador e da impressora que comprou apenas para ver os e-mails das encomendas que lhe chegam, “De resto, é tudo artesanal”. Desde as ferramentas que já estavam na oficina e que preservou, como uma guilhotina com mais de 100 anos; passando pela cola à base de farinha de trigo que utiliza e que é falada em qualquer livro sobre encadernação; até aos utensílios que o próprio constrói. Qualquer osso oferecido pelo seu amigo do talho ou barra de aço dada pelo colega que faz facas são transformados, pelo encadernador, em peças indispensáveis à sua atividade. Acredita que é importante cada um fazer os seus próprios materiais e “deve ser uma única pessoa a trabalhar [com eles], porque se for à mão de outro, desafina logo”.
Carlos trouxe para a oficina, que era só de encadernação, as artes de dourar e, também, de restaurar livros. Juntar os três saberes é invulgar, ainda para mais, num espaço tão pequeno como este. Se tivesse um espaço maior, teria uma montra para mostrar às pessoas — “Todos devemos sonhar e podemos”, constata. Tem “muita tralha” para tão poucos metros quadrados, mas a memória não lhe falha e sabe sempre onde está tudo.
Para além da ausência de luz natural, a dimensão do espaço também é um entrave à companhia — o encadernador confirma que não gosta de se sentir sozinho e “até gostava de ter um ajudante”. Um ajudante de preferência jovem, pelos vícios que as mãos vão ganhando ao longo dos anos, alguém a quem pudesse passar os seus conhecimentos. Ensina tudo o que sabe, pois é contra a ideia de que quem não ensina com a desculpa de que é “segredo” é porque, “Verdade seja dita”, não o sabe realmente fazer.
O próprio começou muito cedo nesta arte, aos 12 anos.
Apesar da tenra idade, este ofício foi uma escolha sua enquanto andava num colégio interno em Caxias — “Eu escolhi e depois foi uma paixão”. Mas considera que se deve ter aptidões naturais para a função. Mais tarde, chega a entrar na Escola Artística António Arroio, e por vicissitudes da vida, não conseguiu terminar o curso.
Atingiu a maioridade e foi trabalhar para a Torre do Tombo, onde, durante duas décadas, restaurou e encadernou livros. Ainda estava na Torre do Tombo quando, aos 22 anos, uma vez que tinha tempo livre e vontade de ter um espaço próprio, decidiu adquirir esta oficina.
Hoje, com 62 anos de idade e há 40 anos a trabalhar nesta oficina, começa a pensar na reforma, e admite que mesmo reformado não tem intenções de parar de trabalhar. Gosta realmente daquilo que faz, e considera saudável ter sempre alguma coisa para fazer, confidenciando o seu gosto pela pesca que, por falta de tempo, é uma atividade que põe de parte. Mas o amor à arte não é a única razão. O peso que carrega pela consciência de que é uma profissão em vias de extinção, fá-lo querer continuar por muito tempo.
Mas faltam pessoas para ensinar ou pessoas para aprender?
Carlos afirma que “Pessoas a querer há imensas. Há imensas mesmo, jovens”. Porém, não existem meios para se formar, e, reconhecendo o esforço dos workshops, garante serem em vão — “Nesta área, três anos é o ideal, no mínimo, para se começar a fazer as coisas básicas”. Deu cursos na Câmara Municipal de Lisboa, e confessa que funcionaram muito bem. Porque para além de bons formadores, também são necessárias instalações, e refere a luz do dia como a fonte mais importante para este trabalho.
Uma profissão nunca acaba, mas tudo aquilo que está escrito nos livros sobre encadernação, douração ou mesmo restauro, não basta ser lido e interpretado de forma autónoma. Por ser uma profissão muito artesanal, existe a urgência do ver fazer pelas mãos dos mestres.
O reconhecimento nacional pela arte de Carlos Guerreiro é visível. Podemos encontrar o seu trabalho nos corredores da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, como também em vários livros de honra para a Assembleia e Presidência da República. E até numa mesa de restaurante: é o caso das ementas do grupo José Avillez, ou da casa de fados, Severa.
Mas não fica por aqui. O seu trabalho viaja pelo mundo. O facto da sua oficina estar inserida em diversos guias turísticos da cidade de Lisboa, permite que internacionalmente também seja uma referência — “por acaso estes livros todos são de um senhor francês. Conheceu isto quando estava de passagem, entrou e ficou…”.
Carlos está a terminar uma lombada, e por isso não lhe tomámos mais tempo. Tem de revestir três álbuns em pele para uma senhora dinamarquesa — “Vou-lhe arranjar isto para esta semana, sem falta”. Nesta oficina impera uma regra essencial: clientes bem servidos – “A pessoa se gasta dinheiro, tem de gastar dinheiro uma vez. Porque eu não gosto de fazer remedeios. Ou faço ou não faço”.
Reportagem de Joana Lopes Lourenço e Madalena Ferreira Parafitas
Alunas da licenciatura de ciências de comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.