“Circles”, de Mac Miller: uma mensagem de paz do outro lado

por Inês Loureiro Pinto,    31 Janeiro, 2020
“Circles”, de Mac Miller: uma mensagem de paz do outro lado
Capa de “Circles”, sexto e último álbum de Mac Miller.
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2020 trouxe boas notícias para fãs de Mac Miller, ainda em luto desde a morte do rapper em 2018. Foi de forma muito subtil que a família lançou “Good News” e o anúncio de que este single traria um álbum póstumo, gravado aqui e ali entre a produção de Swimming – o último trabalho de Mac, lançado um mês antes da sua morte.

“Good News” trouxe a já habitual reflexão diretamente da cabeça de Mac Miller, a luta entre os demónios interiores e a persona exterior que tem que mostrar: “good news that’s all they wanna hear / they don’t like it when I’m down”. E quando os outros não vêem a luta, ela acaba por ser só uma guerra civil travada a um. Se o público não liga à dor pessoal, mas gosta e pede a música feita a partir dessa dor, isso é um bicho de sete cabeças dentro da do artista. Neste single, revestido por cordas que embalam, Mac termina com um tom mais positivo, ainda que engolido em seco: “there’s a whole lot more for me waitin’ on the other side” tem outro peso depois da sua morte. É um sentimento recorrente neste álbum.

O lançamento de Circles foi feito com uma publicação no Instagram de Mac Miller, a primeira e única depois da sua morte, com um texto assinado pela família e uma descrição simples e direta: “Circles. 17 de janeiro”. Um anúncio que pareceu espelhar a mensagem resolvida de Circles. A carga do “póstumo” pode muitas (já comprovadas) vezes incitar a uma estratégia de marketing com mais intenções do que o primário respeito pela vontade do artista, mas a candura com que a família do rapper tratou o álbum que ele não pôde ver cá fora dá-nos ainda mais razões para admirar Mac Miller.

O produtor Jon Brion foi dos primeiros a espreitar um Circles embrionário e, a pedido da família, foi quem se encarregou da missão de fechar os últimos detalhes do álbum sem o rapper. Nas palavras de Brion, em entrevista ao New York Times: “Penso que este álbum é uma clara imagem de alguém com aqueles problemas, que é engraçado e inteligente e estava a tentar olhar para eles de forma crítica”. Admitiu ainda que Mac Miller pensava num terceiro volume para a dupla Swimming Circles – que fazem a expressão “nadar em círculos” – talvez mais focado no registo rap que estes dois últimos. Ao lançamento de Swimming, um mês antes da morte de Mac, Circles já estava baptizado e alinhavado, mas a tal terceira vinda dificilmente será ouvida deste lado.

Há uma linha visível de maturação ao longo da discografia de Mac: do rapaz inconsequente de 2009, em Kids, até trabalhos progressivamente mais confessionais, como Watching Movies With the Sound Off e o GOOD:AM de 2015, que abriu as letras e o público aos seus pontos mais baixos de luta interior, mas já com a notória necessidade de conforto que carrega Swimming, de 2018. Circles leva esses traços ao mais profundo possível, até ao outro lado, passando uma mensagem que se pode assemelhar a uns créditos finais.

O puto branco feito rapper e produtor de Pittsburgh, nos Estados Unidos, conseguiu influenciar a indústria do hip hop e do R&B na era millenial, sempre com a sua imagem de marca de weirdo e tão longe do radar popular quanto queria (ou podia). O seu sexto e último álbum, ainda que póstumo, continua a respeitar esse seu modo de ser. Ainda estamos no início de 2020, mas Circles será certamente um dos álbuns do ano – se não da década.

Circles começa com a faixa homónima, uma linha de baixo apaziguante e um primeiro verso que reforça a ideia da mensagem do além. “This is what it look like right before you fall” é a primeira coisa que ouvimos da boca de Mac depois da sua morte – ao que a música diz respeito – e é só o primeiro de muitos arrepios neste álbum, daqueles que disparam da espinha para o resto do corpo e chegam ao coração. A última que lhe tínhamos ouvido era “So It Goes”, que fecha o álbum Swimming com uma paisagem musical que o próprio Mac descreveu como uma “ascensão ao céu” conseguida pela mestria instrumental de Jon Brion (num tweet que publicou e apagou na noite em que morreu devido a uma dose descontrolada de fentanil e cocaína).

É fácil arrepiar-se com uma combinação de instrumentos bem pensada ou uma cadência da voz especialmente certeira, ou mesmo com uma letra inesperada. Aliás, o álbum faz com que seja inevitável arrepiar-se, e talvez seja apenas porque ouvimos Circles com a carga póstuma, já que a premonição da morte parece estar presente em quase todas as dolorosas faixas deste álbum. Mas não têm que ser dolorosas, e talvez será essa a grande lição de Mac para si próprio e para quem se aventura a pôr este álbum a circular mais do que uma vez entre as orelhas: morrer pode não ser tão mau como viver.

E esta lição pode ser controversa porque, num mundo onde a ciência quer que vivamos para sempre e onde há mais informação que a que conseguimos compartimentar no nosso sempre curto tempo para tudo, parar é morrer. Por vezes, literalmente. Mac viveu uma vida encostada à fama e à dependência de drogas, que, juntamente à música, ajudavam a aliviar o nó interno que não conseguia soltar. Numa vida que muitas vezes se apresenta como um inferno, a morte pode parecer finalmente a oportunidade para respirar.

Circles, à semelhança do irmão mais velho, Swimming, é verdade e vulnerabilidade em estado líquido, um trabalho feito em estilo de introspeção para os ouvidos do mundo. Talvez seja por isso que dói tanto: ouvir Mac a falar com ele próprio – porque este álbum não é para mais ninguém – obriga-nos a chamar a nossa própria mente a interrogatório. O problema com a dor é que precisa de ser sentida, e para nadar é preciso mergulhar, mesmo que em círculos.

Mac não quereria necessariamente morrer, mas atingiu uma resolução em si, espalhada como tinta por todo este álbum, que lhe permitiu estar em paz com a ideia de morrer. Não é muito comum pensar na morte, a temível e tabu ceifeira, quando se é novo, mas já admite Mac, na segunda faixa de Circles, “Complicated”: “I’m way too young to be gettin’ old”. Circles foi feito neste mundo, mas é ouvido como se viesse do outro, como uma mensagem que diz que está tudo bem. Confiar em algo que desconhecemos é um processo a seguir neste álbum e em tudo o que fazemos depois dele. Um processo doloroso mas, por fim, apaziguante.

Circles fecha com “Once A Day”, uma faixa que embala e reflete como todas as outras. O verso “I just keep waiting for another open door/To come up soon” traz o tal arrepio da premonição. Este último suspiro da mensagem etérea que é este álbum pode saber a pouco, ou então saber a muito mas fazer querer que haja mais faixas depois desta. Tal como a morte de Mac Miller, as suas últimas palavras podem parecer quase injustas, porque ainda havia coisas a dizer. Mas, quando há muito para sentir, não há tanto para dizer:

“Once a day, I rise
Once a day, I fall asleep with you
Once a day, I try, but I can’t find a single word”

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