De Beauvoir a Lispector, o feminino em 10 títulos
O Dia Internacional da Mulher celebra todas as conquistas femininas — desde o domínio político, ao social e ao económico —, pressupondo também um apelo à luta pela igualdade de género. A primeira celebração ocorreu em 1909, em Nova Iorque, e atualmente é festejado no dia 8 de março, incluindo performances de arte, colóquios ou discursos, marchas, entre outro tipo de atividades.
Tornar-se-ia impossível celebrarmos o Dia Internacional da Mulher sem aludir ao feminismo. Antes de mais — e num período em que se tende a amalgamar e distorcer conceitos — torna-se premente e útil relembrar a definição deste termo. O feminismo é a luta pela igualdade de género nos planos político, económico e social. Como assinalou Gloria Steinem, de modo sucinto e incisivo, “a feminist is anyone who recognizes the equality and full humanity of women and men”. Assim, feminismo e ser feminista não pressupõe a luta pela superioridade do género feminino, substituindo, por conseguinte, a sociedade patriarcal por uma matriarcal. Essa aspiração coaduna-se com uma vertente radical e também sexista, reprovada pelo próprio feminismo.
Como mencionámos, referir estes termos atualmente — como feminismo ou feminista — pode acarretar algum perigo, pois a eles estão associados conceitos erróneos. Atentemos na controvérsia instigada por uma fotografia de Emma Watson, captada por Tim Walker, que revelava a atriz, ativista e feminista, sem soutien, mostrando parte do peito. De acordo com alguns comentários, a exibição do corpo feminino anula os ideais feministas. Watson relembrou que este conceito se associa a igualdade, libertação e liberdade, acrescentando precisamente: “Eu não sei o que as minhas mamas têm que ver com [o feminismo]. É bastante confuso”.
Ainda no decorrer da semana passada, presenciámos a polémica provocada pelo eurodeputado polaco, Janusz Korwin-Mike, que descreveu as mulheres como “mais fracas, mais pequenas, menos inteligentes” e que, como consequência disso, deveriam ter salários inferiores aos dos homens. Não vamos reiterar que o deputado é um machista, porque isso parece-nos evidente. Não só é evidente como é também crucial e inadiável a continuidade da luta pela igualdade de género. Porém, antes de partirmos para a guerra, deveremos ponderar as nossas armas de batalha. Após os comentários de Korwin-Mike, uma legisladora polaca interpelou-o, tentando relembrar a importância e o lugar do sexo feminino na sociedade. Porém, num ápice, a voz de uma repórter alega: “Bem, nós somos mais inteligentes, obviamente”. Por conseguinte, este tipo de asserções, que pressupõem a supremacia feminina, levam a que a palavra feminismo esteja fatalmente associada a conceções equívocas e adulteradas.
Ainda que a luta pela igualdade de género nunca tenha ecoado tão alto, tão intensa e claramente, parece-nos essencial apresentar 10 títulos que escrevam o feminismo e o feminino. Torna-se necessário apresentá-los para que saibamos o que combatemos e como o deveremos combater. As nossas armas estão também na nossa instrução. Assim, neste repertório da escrita sobre a mulher, indicamos não só obras que exponham a luta ou a questão feminista, mas também o âmago, o percurso e as lutas viscerais femininas.
Le Deuxième Sexe, Simone de Beauvoir
Amplamente conhecida como uma das obras centrais do movimento feminista, Le Deuxième Sexe foi publicado em 1949. Antes de elaborar um estudo sobre a condição feminina ao longo de séculos de história, que considera como opressiva, de Beauvoir explora a sexualidade de diversas espécies de modo a deslindar o lugar da fêmea nas variadas uniões. Nesta obra, a filósofa francesa, ao estudar o feminino, relaciona-o ao conceito de Outro, estabelecendo-o como o negativo do homem. Assim, o homem é sujeito, determinando o modelo e acarretando o poder, enquanto a mulher é o objeto, que se alicerça em representações. Em Le Deuxième Sexe, a autora afirma peremptoriamente: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Em Portugal, a Quetzal Editores apresenta-nos O Segundo Sexo (Volume 1: 16,60€; Volume 2: 16,60€).
Bonjour Tristesse, Françoise Sagan
Apelidada de “o pequeno monstro”, Sagan publica Bonjour Tristesse, em 1954, narrando o verão burguês, inconsequente e hedonista de Cécile, uma jovem de 17 anos, e de seu pai, Raymond. Este texto veio revelar a melancolia, decadência, taciturnidade e a solidão que navegam nos meandros da alma feminina: “Quelque chose monte alors en moi que j’accueille par son nom, les yeux fermés: Bonjour Tristesse”. Pela Porto Editora, a obra encontra-se traduzida para português, custando 9,90€.
The Vagina Monologues, Eve Ensler
The Vagina Monologues, publicado inicialmente em 1996, é uma peça constituída por diversos monólogos, lidos e interpretados por várias mulheres. Cada monólogo aborda a experiência feminina, remetendo a temáticas como o sexo, o corpo, o amor, a violação, a menstruação, a mutilação genital feminina ou o orgasmo. Em Portugal — traduzido como Os Monólogos da Vagina —, a obra é editada pelas Publicações Europa-América, custando 18,68€.
Sexual Politics, Kate Millet
Sexual Politics, publicado em 1970, surge a partir da tese de doutoramento de Kate Millet e distingue-se por ser a primeira abordagem académica sobre a crítica literária feminista. Na obra, a autora disseca textos de D. H. Lawrence, Norman Mailer e Henry Miller, enfatizando que o sexismo ocupa a bibliografia dos três escritores.
I Love Dick, Chris Kraus
Considerado por Emily Gould como “the most important book about men and women written in the last century”, I Love Dick, publicado em 1997, mescla memórias, ensaios e texto ficcional, quebrando as fronteiras entre ficção e realidade e universos privados e comuns. Explorando uma obsessão psicossexual com o epónimo “Dick” e dissecando o lugar feminino na relação com o masculino, no universo artístico e nos meios culturais, a obra norte-americana permite uma leitura lacaniana.
A Paixão segundo G. H., Clarice Lispector
Romance de 1964, no qual imperam o fluxo de pensamento, a crise identitária, a catarsis e o âmago feminino. G. H. é uma mulher bem-sucedida na esfera profissional, mas que falha na aprendizagem pessoal, na ‘escavação’ do interior e do eu profundo. É nos meandros deste ser feminino e claustrofóbico que G. H. colide com uma barata. G. H. observa-a de modo insondável, esmaga-a e come-a. Este momento permite uma profunda reflexão existencial, conduzindo-a ao seu cerne, às suas entranhas. Esta obra, redigida por uma das mais aclamadas escritoras brasileiras, é publicada em Portugal pela Relógio D’Água, custando 14€.
My Life on the Road, Gloria Steinem
A itinerância é um traço crucial na biografia da feminista Gloria Steinem. Por conseguinte, My Life of the Road — a mais recente obra da ativista norte-americana, publicada em 2015 — começa por nos apresentar uma infância carregada de deambulação, que viria a estimular um fascínio pela viagem — quer física, quer intelectual e espiritual. Destarte, narra-nos ainda as suas experiências como jornalista, ativista e conferencista, versando sobre o seu apoio às campanhas de Bobby Kennedy e Hillary Clinton e revelando de que forma cravou o feminismo no mundo.
A Room of One’s Own, Virginia Woolf
Publicado em 1929, esta obra é um longo ensaio originado de uma série de conferências que Woolf dera na Universidade de Cambridge no decorrer de 1928. Neste texto, a escritora britânica questiona se uma mulher poderá criar uma obra equiparável às de William Shakespeare. Num mundo literário dominado por figuras masculinas, a autora destaca que o poder económico e um espaço privado — literal e metaforicamente — são essenciais à possibilidade de produção literária. Traduzido como Um Quarto Só Para Si, a obra, editada pela Relógio D’Água, poderá ser encontrada nas livrarias portuguesas por 12,60€.
The Female Eunuch, Germaine Greer
Estamos em 1970 quando Greer publica The Female Eunuch, obra que se transforma imediatamente num bestseller. Esta obra divide-se em quatro segmentos: corpo, alma, amor e ódio, onde explora a autoperceção feminina. Segundo a autora, a mulher é destituída da sua própria sexualidade de modo a harmonizar com uma conceção de “mulher normal”, instaurada por uma sociedade patriarcal. Apesar de estar traduzido em 11 línguas, a obra de Germaine Greer não se encontra publicada em português.
I Know Why the Caged Bird Sings, Maya Angelou
Maya Angelou — poetisa, memorialista e ativista norte-americana — publicou sete obras autobiográficas entre 1969 e 2013. I Know Why the Caged Bird Sings exordia a série autobiográfica, narrando as experiências vivenciais de Maya Angelou até ao seu 17º aniversário. Confrontada com o racismo e abandonada pelos pais, a escritora e o seu irmão mais velho são entregues aos cuidados da avó paterna. Porém, o abandono tornar-se-ia a grande marca, a grande mancha da alma, levando-a a viajar.
Se hoje celebramos as conquistas femininas, relembramos também os motivos que nos levam a continuar e a prosseguir a luta. Não precisamos do mundo das letras para nos revelar, explicar ou lembrar o porquê dela; mas ele esclarece, clareia o caminho e presenteia-nos com algo crucial: o poder da identificação, recordando que no trajeto há outros além de nós; há feministas.