#EleNão, uma causa de todos
Jair Bolsonaro arrisca-se, à boa maneira do caso de Donald Trump na América mais acima, a assumir a presidência do seu país. Tal como Trump, dispondo de um currículo que a poucos faz inveja, especialmente no que toca à qualidade moral dos seus valores e das suas convicções. Por muito que essa moralidade possa ser questionada, esta nunca será valorizada enquanto coloca a integridade pessoal e a prosperidade do outro, essencialmente quando assente em práticas discriminatórias, que acentuam as diferenças de forma injusta. É neste registo que tantos governos tiranos, inconsequentes e socialmente desequilibrados se foram estabelecendo pelos tempos, levando a regimes extremistas e que colocavam em causa os mais básicos direitos humanos.
O Brasil assume-se, desde há muito, como um país com profundas disfunções. São imensas as desigualdades numa extensão territorial ampla, que congrega em si uma diversidade de culturas e identidades e que nem sempre discursam com a mesma voz. A ordem e o progresso que a bandeira anuncia são valores que, numa sociedade regular, entre impeachments e lava-jatos, evitariam a credibilização de um Bolsonaro. O que é certo é que o caráter bonacheirão, machista, conservador e regressivo continua como uma solução plausível para um país que se assume como um dos mais importantes do globo. Como tal, a figura de Jair Bolsonaro não só afeta a pluralidade brasileira, mas também todos aqueles que estão, cada vez mais, ligados aos seus semelhantes, em qualquer canto do mundo.
Fora algumas sociedades mais indígenas, o patriarcalismo é a realidade que sustentou o traçado da História da humanidade. É um facto. Ouvimos falar de muitos escritores, artistas, políticos, reis e demais figuras do sexo masculino, proporção que destoa em comparação com as escritoras, artistas, políticas, rainhas e outras tantas figuras. Claro que isto é uma questão que se universaliza, contra à qual se têm desenvolvido feitos notáveis, tanto no sentido da estruturação e do reconhecimento social, como no plano legislativo e laboral. A mulher tem retomado, por direito próprio, o seu lugar no poder decisório de uma sociedade, aplicando-se este caso à moderna realidade ocidental. Embora outros tantos países ainda tenham muito a desenvolver em prol dessa visada equidade, os riscos de recessão e de retrocesso permanecem patentes. É aí que a figura de Jair Bolsonaro volta a emergir.
Todos os fantasmas que assombram aqueles que pugnam por uma sociedade igual, na qual não há lugar para discriminações de qualquer tipo, em que o direito é igual para todos, estão visíveis em torno de Bolsonaro. Com o heroísmo de asa queimada de Lula da Silva e as interrogações colocadas na sua pupila Dilma Rousseff, os brasileiros permanecem perdidos. Encontram, porém, no populismo de Bolsonaro um caminho de afirmação, de assertividade, de conforto naquilo que são os padrões sociais e comportamentais, embora misóginos e pouco consonantes com a ordem e o progresso apregoados nos valores da nação. Encontram uma voz que se tornou revestida do tal heroísmo quando foi vítima de esfaqueamento, enquanto decorria mais uma ação da sua campanha eleitoral. O folclore permanece bem vivo e aceso, por mais que as tradições sejam desmascaradas no seu valor moral.
Com isto, não são poucos aqueles que têm apelado para essa consciencialização, especialmente aqueles que, com amargura e revolta, vêem os seus conterrâneos à distância geográfica, muitos deles enlevados pelo discurso inflamável de Bolsonaro, a sofrer. Sofre o Brasil de dores que nunca deixou de sentir. As condicionantes sociais e políticas forçaram muitos a procurar a sua estabilidade fora do seu país, com muitos deles a serem abraçados pela sua irmandade, aqui em Portugal. A causa contagiou muitos portugueses, que vêm tecendo comentários sobre o sucedido e assumindo posições, para além de tomar atitudes e de ir para a rua bradar contra Bolsonaro. Muitos deles são mulheres e isto compreende-se. No entanto, é errado delimitar esta contestação a elas. Trata-se de todo o progresso social e humano que é posto em causa, especialmente num país tão inspirador e de alegria tão contagiante. É uma causa indiferente a condições e a diferenciações.
A causa tem tocado os quatro cantos do mundo esférico, que afirma #EleNão. É uma causa universal, como seriam outras tantas e como ainda o são. Passos atrás foram dados de forma incalculável noutros países, noutras realidades, noutros tempos. No entanto, estes não deixam de ser dados, na aparição fantasmagórica dos populismos, que, disfarçados com uma personalidade carismática, veiculam os velhos preceitos que tanto vincaram as diferenças e as máculas em relação ao próximo. Populismos que, em sociedades pouco presentes e conscientes sobre o que se passa em seu torno, distanciadas dos centros de decisão, acolhem facilmente um eleitorado ingénuo e despreocupado. Os mesmos que pensam que todos os políticos são iguais. Efetivamente, a corrupção política brasileira aprofundou essa ideia. Mesmo assim, perante uma postura condescendente com aquilo que foi a Ditadura Militar, que sufocou a liberdade e a vida a tantos no passado, há males que nunca devem ser esquecidos. E não, não é a violentar fisicamente que se violentam os valores opressores e tiranos. A taxa de câmbio sai mais cara do que o previsto.
Por mais que a crítica se faça sentir, por mais que a oposição se faça exprimir, por mais que os órgãos de comunicação social se continuem a dividir, Jair Bolsonaro continua a ganhar uma presença firme nas eleições presidenciais brasileiras, que o fazem favorito para ganhar nas urnas. Os males crónicos da sociedade brasileira continuarão, por mais que as vozes dissonantes se façam ouvir. A criminalidade permanece elevadíssima, o desejo sanguinário acompanha-a e há gente que quer quem o ressoe, gente suficiente para que seja eleito. Nesta causa, que já levou ativistas e jornalistas a deslocarem-se da sua zona de conforto, é importante não esquecer o que está em causa.
Não está em causa denominar todos com @ ou com x, nem apontar facas e outras armas lesivas a estes rostos mobilizadores da população mais conservadora e mais agarrada aos seus caprichos. Trata-se de algo muito mais concreto, preciso e decisivo. Está, sim, uma causa universal, que não diferencia o preto do branco, o católico do protestante, o homem da mulher. Uma causa que vai de encontro a uma sociedade justa, equalitária e moralmente sustentável. Uma causa que pode e deve ser respondida com a perceção do Brasil sobre aquilo que está em causa. Uma causa que exige de todos alguma coisa, nem que seja alertar o familiar ou o amigo à distância. Uma causa que vai a tempo de impedir que o Brasil se volte a perder na sua grandeza e que faça o mundo perder-se (ainda) mais na sua tristeza.