Festival de Sintra revisita os clássicos duelos de pianistas, com Raúl da Costa e Vasco Dantas Rocha
Entre os vários eventos que farão parte do eclético Festival de Sintra, houve um em particular que me chamou a atenção: um duelo de piano entre Raúl da Costa e Vasco Dantas Rocha, dois jovens pianistas aclamados que se defrontarão no clássico instrumento, no Salão Nobre do Palácio de Seteais, no dia 20 de Junho.
A primeira associação que fiz foi às batalhas de rap que se popularizaram desde os anos 80, ocasiões para ambiciosos ou já estabelecidos artistas engrandecerem os seus próprios feitos, desacreditarem os adversários e ganharem popularidade entre aficionados do género. Foi caricato transpor esse contexto para uma competição entre pianistas, em que tudo seria dito sem palavras, apenas pela virtuosidade e inventividade de cada músico.
Mas afinal, os duelos de pianistas eram populares já desde o século XIX, entre os aristocratas da Europa Central. Numa época em que não haviam gravações ou grandes digressões, era difícil cada artista dar provas da sua virtuosidade fora dos seus círculos sociais e artísticos, normalmente consignados à cidade onde residia. Dessa forma, rumores acerca da competência dos artistas mais reconhecidos viajavam mais longe que a sua própria obra. É caso para dizer que tinham a fama sem o proveito.
Como tal, a única forma de comprovar se um pianista era melhor que outro era através de um duelo. Outros tipos de duelo eram já populares na altura, mas diga-se de passagem que um duelo ao piano era menos fatal e pelo menos permitia uma fruição cultural por parte do público, que, nas altas esferas da sociedade dos séculos XVIII e XIX, era bastante apreciador de recitais de piano. Essas competições faziam muito êxito, catapultando intérpretes para a fama ou reforçando-a. Os resultados eram registados pela imprensa, motivo pelo qual hoje sabemos de alguns dos duelos mais famosos da História.
Se as batalhas de rap têm a sua quota-parte de insultos e maldizer num estilo mais contemporâneo, os clássicos duelos de piano conseguiam ser ainda mais mesquinhos e trazer ao de cima rancores e coscuvilhices da alta sociedade que, convenhamos, tinha menos preocupações que o povo. Um dos exemplos mais afamados é o duelo entre Franz Liszt e Sigismond Thalberg. Liszt considerava Thalberg um compositor medíocre, se bem que tinha a fama de ser muito bom tecnicamente. Defrontaram-se em Paris, na casa da condessa Cristina Belgiojoso, amante do próprio Liszt. A imparcialidade da condessa revelou-se no ambíguo veredicto final: “Thalberg é o melhor pianista, mas Liszt só há um.” Empate técnico. Se bem que, na competição da fama, Liszt resistiu melhor à passagem do tempo.
O filme húngaro “Szerelmi álmok — Liszt”, de 1970, recria o famoso duelo com algumas incongruências históricas, mas retendo toda a tensão que provavelmente se sentiu no momento do embate.
São de referir outros duelos, como os que colocaram frente a frente Mozart e Clementi, Bach e Marchand, e Beethoven e Steibelt. O primeiro foi organizado em 1781 pelo Imperador José II da Áustria, que apoiou Mozart, enquanto que a sua esposa Maria Josefa apoiou Clementi, revelando os meandros de um casamento infeliz. O final trouxe também um empate. Mais tarde, Clementi admitiu a superioridade de Mozart, se bem que o recíproco nunca aconteceu, dizendo Mozart do seu adversário que só tinha técnica, mas não paixão. Palavras fortes.
No segundo, o duelo organizado pelo director dos concertos da corte de Dresden pretendia determinar o mais virtuoso organista: o germânico Johann Sebastian Bach ou o francês Louis Marchand. O acordo, aceite por ambos, era de que os músicos tocariam à primeira qualquer obra que o rival apresentasse. No dia da prova, compareceram todos menos Marchand, que havia abandonado a cidade.
Por último, entre Beethoven e Steibelt, a história foi diferente e demonstra a suprema importância destes eventos para os músicos que neles se debatiam. Daniel Steibelt, pianista berlinense, queria dar-se a conhecer em Viena, um dos grandes epicentros da música no ano de 1800. Como tal, decidiu desafiar o incontornável Ludwig van Beethoven, numa desmesurada demonstração de confiança. Steibelt saiu-se muito bem na sua improvisação vistosa, mas Beethoven, sem deixar que isso o afectasse, virou as partituras para violoncelo de uma sonata de Steibelt ao contrário e tocou como se nada fosse, adicionando ainda uma longa improvisação. Steibelt saiu derrotado ainda durante a performance de Beethoven e, humilhado, jurou não regressar a Viena enquanto ele estivesse lá, algo que acabou por cumprir até à sua própria morte.
Com a chegada da Revolução Industrial, o declínio da aristocracia e o surgimento de outros géneros musicais, a tradição deste tipo de duelos de piano foi-se perdendo. Por outro lado, no final do século XIX surgiram os “dueling pianos” nos Estados Unidos, uma forma de entretenimento em que pianistas de ragtime competiam para ver quem tocava melhor e mais depressa. Essa tradição foi-se desenvolvendo em Nova Orleães e noutras partes do sul do país, sendo que hoje em dia alguns bares continuam a ter competições entre pianistas, que tocam canções mais contemporâneas e de géneros que fogem da música erudita, como o rap ou o rock.
Mas voltemos agora a Sintra, concelho que alberga alguns dos palácios mais impressionantes do país e este variadíssimo Festival de Sintra. Haverá melhor pano de fundo para receber um duelo de piano no século XXI? Será precisamente num dos belíssimos salões do Palácio de Seteais que Raúl da Costa e Vasco Dantas Rocha se defrontarão num concerto íntimo, após uma palestra de Edward Ayres d’Abreu, o novo director do Museu Nacional da Música, sobre esta tradição. O júri deste inusitado encontro será o sortudo público que consiga uma das limitadas entradas para esta curiosa experiência.
Aliás, o público tem uma importância fulcral neste evento. Segundo Raúl da Costa, numa entrevista que nos concedeu, as reacções do público são também importantes no evento, pois demonstram que está presente de ouvidos e coração abertos. Neste formato intimista, a ligação é forçosamente mais próxima, o que torna ainda mais importante a simbiose entre artista e público. O diretor artístico do Festival Internacional de Música da Póvoa do Varzim, onde nasceu em 1993, descreve o iminente duelo como uma experiência “refrescante” e que vem agitar as águas. A recontextualização da música clássica num ambiente mais descontraído poderá e deverá incentivar o público a levar essa atitude para outras salas, contribuindo para melhores experiências de música clássica ao vivo.
Vasco Dantas Rocha nasceu no Porto, em 1992, e é recipiente de mais de 50 prémios em competições internacionais pelas suas proezas ao piano. Apesar de conhecer Raúl há quase 20 anos, os dois nunca actuaram ou trabalharam juntos. Curiosamente, o contexto em que se conheceram foi precisamente em concursos de piano, ao longo dos anos de educação musical que tiveram. Aqui, a competição será directamente entre um e o outro. Partilhando o mesmo piano e intercalando obras entre si, serão tão surpreendidos pelo rival como o público, contribuindo para uma atmosfera fervilhante em que poderão jogar as cartas do virtuosismo, do lirismo e da emoção para despontar nos ouvintes algo nunca antes sentido.
No duelo de perguntas que a Comunidade Cultura e Arte propôs aos artistas, como forma de antecipação deste evento, a única coisa que nos puderam prometer foi que haverá muito “fogo-de-artifício”. Este duelo de pianistas é o culminar de uma amizade de 20 anos que será posta à prova numa demonstração que promete ser cheia de surpresas. Um evento a não perder, no dia 20 de Junho, no Festival de Sintra.
A Comunidade Cultura e Arte é Media Partner do Festival de Sintra.