Festival de Sintra: uma noite para celebrar a guitarra com Filho da Mãe, Jonatan Alvarado e André Gaio Pereira
É uma homenagem mais do que merecida: no próximo dia 22 de Junho, a guitarra terá um dia que lhe será totalmente dedicado no Festival de Sintra. O festival de música clássica, que este ano renasce e quer chegar a novos públicos por meio de uma programação assinada por Martim Sousa Tavares, acolherá num mesmo dia três concertos bastante distintos, mas que incidem o holofote sobre um dos mais queridos instrumentos musicais da contemporaneidade, bem como sobre o seu património.
Não temos respostas lineares para esta pergunta, mas colocamo-la na mesma em cima da mesa, sem medo: o que explica a prevalência da guitarra na cultura musical actual? De entre dezenas ou mesmo centenas de instrumentos de cordas que a história viu surgir, a guitarra (em múltiplas variações e formatos) assumiu-se como um instrumento incontornável, quer pela sua versatilidade sónica quer pelos seus timbres envolventes. Desde a construção harmónica na mão esquerda (para alguns músicos esquerdinos, ela ocorre na mão direita); ao controlo da intensidade e do ritmo nos dedilhados ou no tocar simultâneo de múltiplas cordas ao mesmo tempo na mão direita; assumindo ressonâncias variáveis de acordo com a caixa, o braço, o tipo de cordas usadas; passando pela possibilidade de afinações alternativas… há muitas formas de dissecar a “magia” da guitarra. E um factor que terá influenciado o seu impacto será, decerto, a sua portabilidade, bem como o preço acessível e comportável a que é possível comprar uma. De resto, a guitarra será igualmente um dos instrumentos mais aprendidos ao nível da formação musical na infância: e também isso se repercute no reforço positivo do seu uso, e na disseminação da sua presença nas bandas pop, rock, blues, jazz…
Tendo “colonizado” praticamente todos os géneros, a guitarra tem entre as suas origens também o universo da música clássica, género celebrado no Festival de Sintra. E a opção apresentada pela programação do festival é intrigante: três espectáculos muito diferentes entre si, mas que têm em comum a celebração da guitarra, de formas ora mais ora menos prováveis: Filho da Mãe, Jonatan Alvarado e André Gaio Pereira (este último que, curiosamente, nem sequer é guitarrista, mas sim violinista). A Comunidade Cultura e Arte quis conhecer a relação que cada um destes artistas desenvolveu com a guitarra ao longo das suas vidas, e levantar um pouco o pano sobre o repertório que vão apresentar no próximo mês em Sintra.
André Gaio Pereira: quando adaptar Paredes para violino se torna, por amor, “inevitável”
“A minha relação com a guitarra pode descrever-se como um amor platónico: sempre tive gosto em ouvi-la, mas nunca me atrevi a deitar-lhe os dedos”, partilha André, em conversa com a Comunidade Cultura e Arte, elencando duas grandes referências da guitarra na sua vida: António Eustáquio, “amigo pessoal, companheiro de concertos e inspiração artística”, e Carlos Paredes. “Lá em casa ouviam-se os CD’s dele com regularidade e, tal como a maior parte das pessoas que o ouvem, nem o André pequeno ficou indiferente”.
André Gaio Pereira é violinista, nascido em 1994, com um currículo nacional e internacional de elevado nível: nomeado em 2007 com o Prémio Maestro Silva Pereira – Jovem Músico do Ano, já actuou como solista com múltiplas orquestras, incluindo a Orquestra Gulbenkian e a Orquestra Metropolitana de Lisboa. Como instrumentista de orquestra, toca actualmente na Royal Danish Opera, e também tem no seu currículo colaborações com a Sinfónica de Londres, a English Chamber Orchestra e o Remix Ensemble; tendo ainda integrados múltiplas formações enquanto músico de câmara, a nível nacional e internacional.
No dia 22 de Junho o violinista português vai apresentar no Festival de Sintra um dos projectos discográficos em que tem vindo a trabalhar: um arranjo do repertório de Carlos Paredes para violino solo. “Tornar esta música acessível para a realidade do violino tornou-se inevitável, e revelou-se uma razão para eu poder passar mais tempo a admirá-la e conhecê-la”, partilha André, para quem a obra do histórico guitarrista “simultaneamente transpira portugalidade e consegue ser global”. “Comovo-me sempre que o ouço; não só pela sua mestria e total domínio do instrumento, mas, sobretudo, pela sua música tão única e a sua forma de expressão tão singular”.
Perguntamos a André quão desafiante e prazerosa foi a criação desta ponte entre o seu violino e a guitarra de Paredes. “O mais difícil neste projecto foi encontrar soluções para que música escrita e pensada para a guitarra portuguesa acompanhada à viola se tornassem viáveis no violino, um instrumento tão diferente e sem a capacidade inata de se acompanhar a si próprio. O resultado final culminou em transcrições das composições de Carlos Paredes que se mantêm fiéis à sua origem mas às quais acrescentei um toque pessoal”; arranjos esses que, alguns anos passados desde o início da sua recomposição, ainda vão sofrendo algumas alterações. André Gaio Pereira confessa que não se aventura em projectos que não lhe dêem prazer; prazer que encontra “precisamente no desafio e no processo, mais que na contemplação do trabalho final”. No decorrer do processo, descobriu a “importância de tornar música brilhante e única intemporal, e que, para isso, tal como na vida ou nas outras artes, ela não pode continuar estática”. André considera que, “sempre com respeito e admiração, repensar, reinventar e reinterpretar a tradição é, na minha opinião, um sinal de progresso e de afinidade com esta”.
Jonathan Alvarado: a guitarra de Gardel como tutora musical
Já Jonatan Alvarado descobriu o contributo que aprender guitarra representava para aprimorar outra das suas formas de expressão preferidas: cantar. “Eu comecei a tocar guitarra quando percebi que conseguia acompanhar-me a mim mesmo enquanto cantava”, partilha connosco. Tendo começado a aprender aos quinze anos, descobriu que a guitarra lhe “abria um caminho de auto-expressão“; o resultado foi que voz e guitarra acabaram por se fundir na sua experiência musical. “Desenvolveram-se ao mesmo tempo: o som da minha voz, a forma como a moldei ao longo dos anos ao nível da cor, da intensidade (…), tem muito que ver com a guitarra, com o seu timbre particular, a sua ressonância, a forma como esta se expressa”.
O músico argentino vem ao Festival de Sintra apresentar um concerto único do seu projecto de gravação do repertório de Carlos Gardel. Será a primeira apresentação em Portugal deste projecto, que contará com o som de duas guitarras e três vozes. A relação do músico com Gardel ocorre por meio da sua presença “omnipresente, quase deificada” na Argentina; mas também por via de um enquadramento mais pessoal e familiar, fruto da relação que a sua avó materna tinha com Gardel. “Ele sempre me fascinou, mas como me senti sempre mais à vontade com a música folk argentina do que com o tanjo – e porque a divisão entre um género e o outro é inexplicavelmente e ridiculamente grande ainda hoje – nunca me senti realmente capaz de explorar o seu reportório”, partilha Jonatan.
Tudo mudou aquando da sua vinda para a Europa, onde iniciou uma formação que lhe permitiu explorar a música ibérica medieval e da renascença, e onde adquiriu “ferramentas para explorar patrimónios musicais distintos de uma perspectiva mais ampla, considerando não apenas a música em si mas as suas origens, as comunidades que as produziram”. Decidiu, pois, revisitar o início da carreira de Gardel, assim como a dos músicos dele contemporâneos com que trabalhou no final do século XIX e início do XX. Conforme partilhou connosco, partiu da figura de Gardel “e das suas primeiras gravações absolutamente maravilhosas para descobrir mais sobre o passado musical do meu país, e para fundir a minha própria arte com aquele universo musical”.
Para Jonatan Alavarado, este trabalho que agora vem apresentar ao Palácio de Sintra representou um grande progresso na sua forma de tocar e cantar. Para o guitarrista, importa desconstruir a ideia de que as gravações deste património musical do início do século XX são “primitivas, como se fossem versões ‘mal passadas’ da música contemporânea, vítimas de um darwinismo musical que não nos deixa apreciar devidamente as produções do nosso passado”. Esta é, para Jonatan, uma perspectiva que considera injusta. “Quando ouvimos as gravações de 1912 de Gardel, de Ignacio Corsini, ou mesmo as anteriores de Navas, Greco, etc, e tentamos reproduzi-las hoje, imediatamente percebemos o quão difícil e exigente é a sua técnica. É música muito florida e elaborada, tocada com gosto e refinamento”.
Rui Carvalho / Filho da Mãe: uma relação de amor/ódio com a guitarra clássica
O serão de 22 de Junho será encerrado com o concerto de Rui Carvalho – conhecido pelo seu nome artístico Filho da Mãe. E também Rui partilhou connosco a sua relação de longa data com a guitarra: “A minha relação com a guitarra é antiga e a primeira pessoa que a ela me ligou foi o meu pai. Ele principalmente, mas os amigos com os quais fazia ‘desgarradas’ de jazz e bossa nova com algum álcool à mistura fascinavam-me; tudo aquilo me parecia impossível”. Desse encanto – citando algumas referências tão díspares como Paco de Lucia, Carlos Paredes, ou Steve Harris, que nem sequer era guitarrista mas sim baixista dos Iron Maiden – surgiu a vontade de aprender, embora reconheça que “foi preciso alguma frustração e teimosia para começar a tocar”. Sem ter a certeza com que idade começou, atravessa-se sem certezas com uma data aproximada: aos 12 anos.
Perguntamos como foi o processo de aprendizagem. “Gostei dos calos e do facto de não achar nada fácil. Sabia que estes tipos todos (incluindo o meu pai) eram inatingíveis do ponto de vista da técnica, e não só, mas isso nunca me chateou propriamente”. E, da aprendizagem da técnica, quis rapidamente passar ao processo de criação. “Desde o primeiro momento, até para alguma frustração de quem me tentou ensinar guitarra como deve ser no início, quis fazer as minhas próprias músicas e tocar do meu modo; por mais errado que fosse. Isso foi uma excitação que nunca mais me abandonou”. Rui partilha que, ainda hoje, mantém uma herança dessa altura: uma “relação de amor/ódio com a guitarra clássica, que nunca acabou propriamente. Transformou-se noutra coisa diferente, claro, mas tem isso por base”.
Rui vai apresentar, na Quinta da Regaleira, uma viagem através da guitarra a solo, interpretando repertório próprio num concerto em formato late-night. “Ultimamente tenho andado a tocar o último disco [“Terra Dormente”, editado em 2022], mas cada vez mais – como também aconteceu com os outros discos anteriores – a procurar ligações com o material mais antigo e as coisas que são mais recentes. É um processo que normalmente dá origem a coisas novas e é provável que essas coisas novas também apareçam. Sem promessas por agora, claro”, partilha.
Resta-nos a certeza de que, nestes três embaixadores, o amor à guitarra será bem representado e expressado; e terá um lugar querido a ser partilhado com os também apaixonados ouvintes que na noite de 22 de Junho queiram fazer um brinde à guitarra clássica no Festival de Sintra.
Data, horário e local dos concertos:
22 de Junho de 2023
18h – André Gaio Pereira (Casa do Gerador, Quinta da Regaleira)
21h30 – Jonatan Alvarado e convidados (Sala dos Cisnes, Palácio de Sintra)
23h – Rui Carvalho / Filho da Mãe (Portal dos Guardiões, Quinta da Regaleira)
A Comunidade Cultura e Arte é Media Partner do Festival de Sintra.