Fiódor Dostoiévski, o pai do existencialismo literário
Fiódor Dostoiévski foi um dos escritores mais emblemáticos de todos os tempos, tanto pelo impacto que teve nas correntes romancista e existencialista como na influência que viria a granjear nas gerações vindouras, integrando-se aqui nomes como Sigmund Freud ou Friedrich Nietzsche. De nacionalidade russa, o autor assume-se como um dos pilares da cultura deste país ao lado do também autor Lev Tolstoi. Uma obra marcada pela controvérsia dos seus temas e pela irreverência da sua abordagem, percorrendo tipologias de situações caricatas como manifestações de loucura, homicídios e suicídios.
Nascido em Moscovo em 1821, Dostoiévski iniciou a sua carreira literária após se ter licenciado em Engenharia e por estudar autores como William Shakespeare, Victor Hugo e especialmente Honoré de Balzac. Em 1846, escreveu a sua primeira obra designada por “Gente Pobre”, e foi contundentemente elogiado pelos então mais famosos críticos literários do seu país, como Bielinski. Após outras obras de menor notoriedade e de acabar exilado na Sibéria após ser associado a um grupo conspirativo denominado Círculo Petrashevski, o autor adquiriu uma bagagem empírica de grande valor para os subsequentes episódios da sua carreira literária. Exemplificando, em “O Idiota” (1869), o autor reporta a um príncipe que padece da epilepsia que atormentou o autor russo durante toda a sua vida. Já a segunda, “Recordações da Casa dos Mortos” (1862), expressa as segregações sociais que existiam mesmo dentro da prisão onde o escritor esteve encarcerado e algumas das suas vivências dentro desta.
No entanto, as suas duas grandes obras viriam nos anos seguintes, sendo estas “Crime e Castigo” (1866), e “Os Irmãos Karamazov” (1879). De caráter bem mais metafísico e filosófico, são duas obras que marcaram profundamente os postulados dos teóricos que pontificaram nas décadas seguintes nas mais diversas temáticas. Na primeira obra, é narrada a história de um jovem que comete um homicídio e se vê limitado para prosseguir com a sua vida depois desse marcante episódio. É aqui que se compaginam os primeiros vestígios existencialistas, com Dostoiévski a suscitar a ideia de atingir a salvação através do sofrimento e a dar o mote para que rostos como Jean-Paul Sartre, George Orwell ou Aldous Huxley pudessem moldar as suas alegorias filosóficas. Já na segunda, caraterizada por Sigmund Freud como “a maior obra da história” (o “Complexo de Édipo” teve raízes neste conto), o russo atinge o auge da sua carreira artística ao expor as relações entre três irmãos e o seu pai, movidos pela complexidade psicológica e emocional inerente ao ser humano. Ao mesclar uma série de noções e de personificações, o escritor abre as portas para o mundo do subconsciente e para a nova vaga de conceções filosóficas do Homem, das suas intenções, das circunstâncias subjacentes a esta e da sua conduta.
De uma abrangência extraordinária e de uma acuidade social bastante afinada, os romances de Dostoiévski abrem a discussão de conceitos que até então poucos se tinham atrevido a debater, tais como as causas patológicas que levam à corporização dos suicídios e da autodestruição de um dado sujeito. Ao invés de situar a narrativa somente numa perspetiva mundana e superficial, o russo arrisca ao aventurar-se no campo da metafísica e no refúgio do Homem a esses preceitos e entidades intangíveis. Refletindo subtilmente na ortodoxia e na intransigência czarista, Fiódor aborda também os valores essencialmente espirituais que se esmorecem e na emergência da ganância, do orgulho e do suicídio como via de escape para quem não perceciona escape possível de uma sociedade obtusa e intrincada. Apesar de Dostoiévski não se coibir de criticar as vicissitudes russas, o escritor moldava as suas personagens à imagem das várias camadas sociais da sua nação, como os cristãos modestos, os intelectuais insurgentes, os gananciosos cínicos e os existencialistas radicais que atingiam o patamar do niilismo. Tal como Lev Tolstoi, celebrizou alguns mitos tais como os limites da vida e morte e da razão e lógica associados a elementos da natureza. A componente espácio-temporal acaba por se subjugar à envolvência das personagens e às suas idiossincrasias, passando despercebida na dinâmica literária do autor.
Impregnado e contextualizado num decadente czarismo, Fiódor Dostoiévski teve um papel de enorme relevância ao, através do seu trabalho literário, expor as limitações políticas e sociais da Rússia do século XIX. Não obstante esta sua faceta, o autor destacou-se sobretudo pelo cariz filosófico que conferiu às suas obras, assumindo com arrojo a explanação de emergentes correntes de pensadores e a sua compaginação em romances. Estabelecendo a ponte entre o tradicional romantismo e o incipiente existencialismo, Dostoiévski foi o embaixador de importantes intelectuais das décadas vindouras e abriu as portas para um novo mundo que, até então, era pouco mais que tabu. O russo foi um dos pioneiros no desmascarar dos preconceitos da sociedade e na exposição da sua decadência amorfa e entrópica. Foi com base em obras deste que Nietzsche, Freud, Sartre e Camus puderam questionar a sociedade e contemplar os seus contemporâneos com novas visões da realidade. Fiódor Dostoiévski afirmou-se, assim, como um despertador de consciências e como o apresentador de um novo mundo, onde a razão tentou explicar a vida e até a emoção.