Karl Ove Knausgård continua a sua luta com ‘Alguma Coisa Tem de Chover’
Nos últimos anos, o escritor noruguês Karl Ove Knausgård tomou de assalto o mundo literário com a sua gigantesca obra auto-ficcional A Minha Luta, em 6 volumes, onde expõe toda a sua vida com um detalhe avassalador. No primeiro volume fala-nos da morte do seu pai, no segundo do seu segundo casamento, no terceiro da sua infância, e no quarto da sua adolescência.
O quinto volume, Alguma Coisa Tem de Chover, o mais recente publicado pela Relógio d’Água (mantém-se a desilusão por a tradução, que no primeiro volume da obra foi feita directamente do noruguês por João Reis, ser mais uma vez feita a partir da tradução para língua inglesa de Don Bartlett), dedica-se aos 14 anos que passou em Bergen, iniciados quando, aos 19 anos e com uma imensa vontade se tornar escritor, chega para ingressar num curso da Academia de Escrita da universidade da cidade. No entanto, descobre-se incapaz de escrever, e é a fazê-lo que vai aprender ao longo do volume, numa educação literária e sentimental que leva à sua transformação naquele que é hoje, a sua construção enquanto escritor.
São quase seiscentas páginas acerca desse período, sobre o qual, logo de início, nos diz lembrar-se de “surpreendentemente pouco”. Mas tão pouca memória resultar em tanta página não revela tanto a falsidade dessa afirmação, mas sim provavelmente o quão ficcionada toda a narrativa é, principalmente pelo elevado grau de detalhe com que relata todos os factos.
Tudo isso já está, no entanto, nos volumes anteriores – essa questão acerca da veracidade e do que é, ou não, ficção – e com isso transita também o estilo limpo e recto, onde pouco lugar há sequer para metáforas, com que nos volta a trazer os temas que marcam o geral da sua obra, ou seja, todas as causas das angústias de Knausgård: identidade, família, sexo, escrita e arte.
Neste quinto volume, atormentado pela vergonha e pela sua incapacidade de escrever algo do qual se orgulhe, bebe como um adolescente rebelde (talvez seja essa a causa da falta de memória que tem acerca desses anos), rouba bicicletas, toca bateria, trai namoradas, conhece a sua primeira mulher, Tonje (e quão triste é saber, à partida, o final dessa história), mete-se em lutas. É nesse ambiente que se forma o artista futuro, e, portanto, é inevitável encarar este volume como a versão Knausgårdiana de Retrato de um Artista quando Jovem, de James Joyce. Até é o próprio autor que refere o deleite com que leu a obra.
Alguma Coisa tem de Chover é, portanto, a continuação expectável de uma obra profundamente idiossincrática, e nesse sentido não acrescenta propriamente nada de novo. Há momentos destacáveis, como os relacionados com o seu trabalho num asilo psiquiátrico, que compensam o investimento na história e na luta de Karl Ove Knausgård, mas que ninguém chegue ao quinto volume ao engano: esta é uma obra para os que querem mais uma oportunidade de imergir na mente de um escritor que, para o bem e para o mal, conseguiu criar um lugar único para si. E se o dramatismo austero e a devassa da vida privada podem ser a causa da chegada de uma pessoa a esta obra, o que faz ficar é a forma como o autor, por entre tudo isso, nos traz aquilo que há de mais importante para si: o quotidiano. “Sentia-me cheio de um júbilo silencioso, era daquilo que eu gostava acima de tudo, do habitual e conhecido – a auto-estrada, a estação de serviço, a cafetaria.”