Martinho da Vila: o rei do samba e da “Negra Ópera” foi muito mais que um plano B de Chico Buarque
Enquanto Chico Buarque visitou a cidade do Porto nestes dias, 26 e 27 de maio, quisemos seguir o caminho alternativo e, antes, visitar o rei do samba, de seu nome Martinho da Vila. Um monumento da música popular brasileira, à imagem de Chico Buarque (até já escrevemos sobre ele), embora menos rendilhado nas suas letras e no tratamento dos seus sons. Isso não impede, contudo, que seja um plano B: é, de facto, um plano A para aqueles que associam a música brasileira ao samba, à alegria, ao alto astral. Não obstante, também não deixa de ser um eterno estudante da música popular brasileira e dos seus múltiplos géneros musicais. Isto para além de ter ingressado na faculdade aos 79 (!) anos, estudando Relações Internacionais, de forma a compreender melhor a ligação entre as nações, em especial as lusófonas.
Foram predicados que nos puxaram mais, porque sabíamos que Chico teria todos os holofotes consigo e, por mais que o admiremos, procuramos outra coisa. A infância de quem escreve este artigo ficava mais contagiada pela alegria e pela folia ao som do samba e ao som de Martinho da Vila do que pela erudição de Chico, que chegaria um pouco mais tarde. No alto dos seus 85 anos, era líquido que seria uma das últimas oportunidades de o conhecer e de poder ser absorvido, na primeira pessoa, na sua música tão otimista e energizante.
Ainda para mais com um novo disco, “Negra Ópera” – a seguir em tournée por toda a Europa (!) – , logo após o colaborativo “Mistura Homogênea” (2022), com muito que se lhe diga. Um disco que, à imagem do multicultural antecessor, percorre esse enormíssimo caudal hereditário brasileiro, recheado de culturas e de expressões de ligação ao divino, para não falar das eternas camadas de samba que existem, a ser apresentado, posteriormente, em Lisboa, em Portimão e na Figueira da Foz (saúde-se a descentralização nestas duas últimas cidades).
O espaço escolhido foi o Coliseu do Porto, um espaço com intimidade e amplitude suficientes para acolher Martinho, mas colocamos a questão: não seria mais interessante trocar os recintos com Chico Buarque? Isto porque o Pavilhão Rosa Mota tem tanto espaço para um pé de dança que se torna inevitável com o samba; sendo que o Coliseu confina o público às cadeiras, resultando bem mais para uma escuta contemplativa e introspetiva que Chico tanto merece. Porém, pode discutir-se que uma “Negra Ópera” tenha melhor enquadramento num Coliseu e, como tal, aceitamos as bênçãos que nos dão.
Pois bem, deixe-se Chico Buarque brilhar e encantar os que esgotaram rapidamente o Rosa Mota e desçamos à centralidade do Coliseu. Num espaço quase lotado, Martinho da Vila trouxe consigo a sua família musical: no violão, Gabriel Aquino; Gabriel Policarpo e Bernardo Aguiar encarregues da percussão, João Rafael com o baixo, Alaan Monteiro no cavaquinho e, ao piano, a sua filha Maíra Freitas – ouça-se o seu novo projeto Jazz das Minas, uma roda de afrosambas e de jazz constituída só por mulheres. Com o novo disco como referência, trouxe, de igual modo, um repertório munido de intimidade religiosa e de memórias da sua juventude.
Neste, Martinho faz pontes com rappers, como Will Kevin (“Timbó”), e velhos conhecidos, como Chico César (“Acender as Velas”, numa composição da lenda Zé Keti, à imagem de “Malvadeza Durão”, que interpreta com a filha Mart’nália) ou Renato Teixeira (“A Serra do Rola Moça”, inspirada num poema do modernista Mário de Andrade); mas também com outros familiares, como o filho Pedro Ferreira (sobre o equivalente ao anjo da guarda no umbandá, um exú, o “Exu das Sete”).
São peças que são compostas ao longo da sua carreira, embora só agora conheçam o estúdio e a formalização num disco, e que assumem uma toada distinta daquela que o samba, por defeito, tem. O sentido de reflexão e até de nostalgia sobre a negritude, sobre a (remota mas, ao mesmo tempo, recente) escravatura e mesmo sobre os dramas de amor passados e presentes. Daí o sentido de ópera e daí o negra, que tem duplo sentido semântico, de pesado, de funesto. É a “Negra Ópera” que nos chega e cujos instrumentos musicais também ajudam a traduzir essa ideia na interpretação feita.
Martinho e companhia chegaram ao recinto com uns cinco minutos de atraso, mas a ovação foi estrondosa. Uma figura tão humilde e pequena de estrutura, mas tão grande no seu sorriso e na sua afabilidade. Todo vestido de branco e dedicando o concerto à figura de Zumbi dos Palmares – o último líder do famoso Quilombo dos Palmares, sendo que um quilombo era um espaço de resistência ao poder colonial (no caso, o português) -, o brasileiro abriu o seu vastíssimo compêndio de sambas para o público portuense e mergulhou na sua “Negra Ópera”, passando por “Acender as Velas” ou “Timbó”. Para quem não soubesse que Chico Buarque tinha concerto mais acima, todos assinalariam de forma inequívoca que Martinho era a estrela da noite.
Contudo, foi custoso ver o público da plateia preso às cadeiras enquanto Martinho da Vila nos relembrava dos seus maiores êxitos: viajamos por todos os maiores, desde “Casa de Bamba”, “Disritmia”, “Renascer das Cinzas” e o incrível “Canta, Canta Minha Gente”. Aliás, foi esse que nos mobilizou, numa das frisas laterais, dispondo de uma vista lateral para o palco, a afastar as cadeiras e a assistir o concerto de pé. Claro está, nunca imóvel, dado que a tentação para dançar e para “batucar” -por mais que as palmas, por vezes, não fossem lá muito compatíveis com as canções que Martinho trouxe – era incontrolável. A mesma sorte teve quem estava nas bancadas superiores e nos camarotes, com espaço para se erguer e se deixar levar pela sabedoria rítmica sambista de Martinho e companhia. Foi quase constante o percurso da dança durante este concerto, fora os momentos intimistas que se avizinhavam mais para o final da atuação.
Foi assim que vimos o octogenário vivo e desperto ao longo de duas horas de concertos, com raras pausas, pausas essas ocupadas por um enorme solo dos percussores Gabriel Policarpo, com o batuque, e Bernardo Aguiar, com a pandeiro e pelo entusiasmo de Maíra Freitas. A “minha fabricação”, como Martinho a identificou, numa canção da sua autoria, puxou pelo público com muito do carisma do pai e com uma capacidade vocal muito viva e capaz. Vimos Martinho homenagear o fado à sua maneira – com “Fado das Perguntas” e “Rosinha dos Limões” – e saudar o calor humano portuense. Vimos interpretações acapella de “Devagar, Devagarinho” ou de “Ex-amor”. Vimos Martinho rematar com as impressionantes e empolgantes “Mulheres” e com o final que mobilizou todo o público dos seus assentos para um pézinho de dança e para um clamar inesgotável. Este seria protagonizado por “Madalena Do Jucu”.
“Eu vou falar para todo o mundo. / Vou falar para todo o mundo / que só quero é você”. Foram os versos que ficaram no ouvido e que o Coliseu do Porto recitou inúmeras vezes. O mantra que Martinho da Vila deixou é esta vontade de que o samba fique, de que o amor (pela vida) fique e que todo o mundo merece saber. 85 anos de vida traduzem um percurso musical inigualável e que o Porto soube reconhecer e valorizar, estando ao lado de Martinho em grande parte das canções mais badaladas. O samba está vivo e recomenda-se, alimentando-se e regenerando-se a partir do passado num presente que acolhe todos sem distinção de raça, de género, de proveniência. O samba é de todos e todo o mundo merece ouvir falar disso. Samba, eu só quero é você.