O legado de Praso dos Alcool Club sem prazo no Ferro Bar

por Lucas Brandão,    4 Maio, 2024
O legado de Praso dos Alcool Club sem prazo no Ferro Bar
Fotografia via Facebook dos Alcool Club
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O nosso gosto pelo hip-hop português é presente e premente, que se foi mostrando com idas a concertos de alguns dos seus monstros sagrados, como Valete, Sam The Kid e, mais recentemente, o recém-consagrado Slow J, para além de outros nomes já incontornáveis, como NERVE. É o mesmo gosto com que acolhemos a discografia dos Alcool Club, nomeadamente da voz e dos versos musicalmente blindados de Praso Jones, para além dos seus companheiros na produção criativa. De novo, fomos à procura de o(s) encontrar em palco e demos com uma experiência de música em série no Ferro Bar, mesmo ao lado da portuense Estação de São Bento. Por razões logísticas, acabamos por nos constranger àquilo que consideramos como essencial: ver o Praso, dos Alcool Club, em palco. Com os produtores Tommy El Finger, Farofa e Ollie na mesa de mistura, acreditamos que nos poderíamos encontrar com a tal sonoridade que nos apaixonou nas plataformas de reprodução musical. 

Para quem não o(s) conhece, Praso, alentejano proveniente de Vila Nova de Milfontes — numa outra vida, Daniel Jones Gonçalves é cabeleireiro e tatuador —, deslocado das centralidades lisboeta e portuense do “hip-hop tuga”, começou o seu percurso no já longínquo (!!!) ano de 2002, o seu “Prelúdio”, com o primeiro trabalho a solo mais a sério a chegar no ano seguinte, com “Cofre Nocturno”. Após este, a solo, nota para os marcantes “Alma E Perfil” (2009, que especial que este é), o EP “O’tempo Jones” (2010), “Caçador de Sonhos” (2012) e “Livre e Espontânea Vontade L.E.V.” (2019), que, ainda hoje, estão no ouvido e na cabeça de quem mais o aprecia. Entre estes, é onde está o auge dos Alcool Club, criados em 2004 em Sines, ao lado de Montana e de Harte. Este auge é exemplificado pelos intensos “Artesanacto” (2010, com tantas afinidades ao rap feito a norte), “Club 120” (2014), “Rap Proibido” (2016) e, eventualmente, “Último a Sair” (2021). Um forte pendor de samples vindos do jazz cruzam-se com letras ainda mais underground que o costume, redimensionando-se com a ajuda dos vários colaboradores que foi tendo. Há meses, o single “Cem Anos” conheceu o público, mantendo a tarimba a que nos habituou intacta, trazendo aquele jazz consumido e processado à boa maneira do hip-hop português.

Chegado à casa dos quarenta, Praso traz um estatuto urbano de topo, acolhendo, à data, jovens e emergentes talentos na sua editora Artesanacto — que provém do nome do disco dos Alcool Club -, entre eles Tommy El Finger (com quem fez “Sui Generis” em 2022), sanguiBom ou Sara D. Francisco. Apesar de estar a sul (ainda mais a sul que Lisboa), a simpatia e a admiração que tem conquistado mais acima, em especial no Grande Porto (fotografias que constam no seu Spotify são na Rua Fernandes Tomás), é evidente e é daí que o nosso próprio interesse nasce. Para nós, trata-se de um ícone do rap português, não necessariamente na acidez das suas rimas, mas antes no diálogo da musicalidade agradável e prazerosa com a arma da palavra. Para além disso, é alguém que não está nas correntes dos mais badalados artistas do género, acabando por estar presente mais nas entrelinhas e em momentos de menor dimensão mediática, mesmo que a sua qualidade seja inquestionável.

Com a KILATE RENAISSANCE responsável pela organização de um evento domingueiro que ultrapassaria as oito horas, tomamos conhecimentos de nomes como Ollie, Farofa — lembrámo-nos dele no festival MIMO, há dois anos — e Caan.Dunn iriam intervalar o concerto que queríamos assistir. São nomes que colocam música há uns bons anos em vários espaços noturnos portugueses e que encaixam em pleno no ambiente jovem e urbano que encontramos. Porém, às horas que chegámos, apanhámos já Farofa e Tommy El Finger em altas rotações, ainda com o pequeno recinto vazio. Os futuros espectadores reuniam-se no exterior, munidos da bebida e dos fumos que também entrariam no espaço do concerto.

Nota para o enorme atraso de Praso em relação à hora inicialmente escalonada — inicialmente, apontava-se o início por volta das 22h30 —, mas que pode ser justificado por força do dérbi de futebol FC Porto-Sporting, que só acabou a essa hora e que teria gente no próprio estádio a assistir à partida. Mesmo assim, poderia ter corrido melhor em caso de aviso às dezenas que foram enchendo a sala. Fora isso, Praso entrou como um rei consagrado entre aqueles que o aplaudiram e o aclamaram e o próprio agradeceu a presença de todos. Sara D. Francisco também esteve presente, mesmo que por breves instantes, dado que teve de abandonar ainda bem no princípio por motivos pessoais.

Ainda assim, Praso e Tommy El Finger chegaram e sobraram quando, durante a hora de atuação, se puseram a abrir o rol de “Sui Generis”, de 2022, com muitas das faixas a serem interpretadas ao vivo pela primeira vez. Não obstante, notava-se a familiaridade daqueles que o escutaram com as novas faixas, mas, obviamente, notou-se bem mais à chegada de “Dolce Sem Gabanna” ou de “Naquele Hotel” e “Qualquer Coisa E Um Pouco de Jazz”, ambas de referência no disco “Alma e Perfil”. Também gostamos muito da incursão ao disco “Livre e Espontânea Vontade” com “Tass Bem, Sou” e ao “Caçador de Sonhos” com “Tempo Amor e Saúde”. Porém, um tanto ou quanto de desilusão ficou por não haver visitas ao incrível repertório dos Alcool Club, que poderia ter recheado ainda mais a qualidade do concerto.

Fomos com gosto escutar Praso ao Ferro Bar e aguentamos a hora de atraso para ouvir aquele que, de forma mais ou menos discreta, se posiciona como um dos mais incríveis músicos de hip-hop em Portugal. Os freestyle (ou verso livre) com os quais terminou a sua prestação, em especial dedicados ao Porto e àquele concerto, mostraram o seu engenho e a sua arte em fazer da ocasião poesia e consequente música. Mesmo que se tenha ficado pela expectativa ouvir aquilo que nos marcou com os Alcool Club, valeu a pena vencer o cheiro combinado a haxixe e tabaco que se concentrou naquela pequena sala recheada de fãs do férreo legado de Praso. Um legado vivo, sem prazo, que continua criativo e pleno em musicalidade e em genialidade, e que merece ser apetrechado com mais gente a admirar a sua lírica.

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