O talento meteórico e prodigioso de Susan Sontag

por Lucas Brandão,    11 Fevereiro, 2023
O talento meteórico e prodigioso de Susan Sontag
Susan Sontag 1979 ©Lynn Gilbert – Wikimedia Commons

Susan Sontag é uma das mais notáveis referências literárias e artísticas do século XX. Cresceu na sociedade norte-americana, a mais influente no ocidente do globo terrestre, mas fez de si uma voz dissidente, sempre distinta, capaz de gerar intriga e introspeção individual e coletiva. O pensamento filosófico desta autora nascida a 16 de janeiro de 1933 (faleceu no fim de 2004 aos 71 anos) atravessou meios de comunicação, aparatos bélicos, ideologias políticas. Não obstante assuntos tão discutidos e prementes, sempre se sentiu algo de diferente, de fraturante, algo que perdurou durante toda a sua vida.

Susan Rosenblatt nasceu numa família de ascendência judaica europeia, de raízes lituanas e polacas. O pai de Susan faleceria aos cinco anos de idade desta e a sua mãe casar-se-ia com o capitão do exército estadounidense Nathan Sontag. O apelido seria adaptado por ela e pela sua irmã Judith, numa infância que foi vivida com alguma frieza em relação à sua mãe. Não obstante, Susan e a família correria o país de lés a lés, tendo vivido desde Long Island, em Nova Iorque, até ao sul da Califórnia, em San Fernando Valley. Foi aqui que começou a preparar o seu caminho para ingressar em Berkeley, na universidade. No entanto, o destino trocar-lhe-ia as voltas e levá-la-ia para a Chicago, cidade onde estudou Filosofia, História Antiga e Literatura. O seu talento meteórico e prodigioso levou-a a licenciar-se com somente 18 anos, algo que a encaminhou para se juntar à sociedade honorífica Phi Beta Kappa, que destaca os alunos mais proeminentes de todo o país.

Capa do livro “Contra a Interpretação e Outros Ensaios” (ed. Quetzal)

Um ano antes, também seria precoce no matrimónio, casando-se com o sociólogo Philip Rieff, que trabalhava na Universidade, com quem esteve durante oito anos e de quem teve David Rieff, futuro escritor e editor. Enquanto aprofundava os seus estudos académicos, nomeadamente na filosofia e na sociologia europeias, foi dando aulas na Universidade de Connecticut. De igual modo, mudou o sentido dos estudos para a teologia quando esteve em Harvard, aproveitando os ensinamentos de nomes como Paul Tillich ou Raphael Demos. O mestrado, porém, seria completo na área de Filosofia e seguiu para o doutoramento, ainda em Harvard, debruçando-se sobre o cruzamento da Filosofia Grega com o estudo das noções de metafísica, de ética e de teologia. Para a auxiliar, contou com o apoio do seu então marido — que viria a publicar o seu estudo “Freud: The Mind of the Moralist” em 1959, uma contextualização história da figura de Sigmund Freud e da psicanálise na história da humanidade, no qual Sontag colaborou exaustivamente — e do filósofo Herbert Marcuse, um dos nomes de referência da corrente filosófica da Escola de Frankfurt.

Sontag seria contemplada com uma bolsa vinda da Associação Americana das Mulheres Universitárias e seguiu para Oxford em 1957. Para esta cidade inglesa e para o St Anne’s College, partiu sozinha e teve professores de proa, como a escritora Iris Murdoch ou A.J. Ayer. Porém, tornou-se uma passagem fugaz, dado o seu desencantamento com Oxford, e seguiu para a Sorbonne, na qual experienciou os primeiros passos da consciência problematizadora que se ia fermentando em Paris. Aqui, estaria com nomes, como o filósofo francês Jean Wahl ou a cubana María Irene Fornés. Com ela, partiria para Nova Iorque em 1959, vivendo juntas durante sete anos. Neste período, deu aulas de Filosofia em universidades novaiorquinas, para além de ensinar Filosofia da Região na universidade de Columbia, e foi trilhando os primeiros passos em expedições literárias.

https://www.youtube.com/watch?v=3IwiBz5p3bo

Chegada ao ano de 1965, colocaria a sua carreira académica de lado para se dedicar em exclusivo à literatura. Contava com 32 anos e com muitas histórias por contar. Entre elas, forte destaque para a experimental “The Way We Live Now”, publicada na New Yorker”, história esta que aborda os princípios da crise de saúde e de sociedade despoletada pelo HIV, percorrendo as profundezas urbanas de Nova Iorque. Para além da coleção de pequenos contos “I, etcetera” (1978), um outro romance que fez bastante sucesso foi “The Volcano Lover”, de 1992, um romance mais encorpado e que viaja para Nápoles, para o pano de fundo do Vesúvio e para a figura da artista Emma Hamilton, o seu casamento, o seu caso extraconjugal e a sua decadência na sociedade e na vida. A inspiração para este enredo partiu de uma visita sua ao British Museum, no qual viu os registos feitos por Sir William Hamilton — esposo de Emma — de vulcões.

Em 2000, publicou “In America”, novamente baseado numa personagem que existiu, desta feita a atriz polaca Helena Modjeska — Maryna Zalewska no trama — e a sua vida na Califórnia, que a acolhe e que a vê brilhar no estrelato da atividade artística estadounidense. Esta obra viu-se envolta de polémica, sendo acusada de plágio pelas semelhanças com “My Mortal Enemy”, de 1926, da autoria de Willa Cather, em algumas das suas páginas, embora acabando por não beliscar a originalidade da sua escrita. Entre filmes e peças que escreveu, foi, de facto, na escrita de ensaios e de textos não-fictícios que Sontag, realmente, se tornou a referência presente na literatura dos Estados Unidos. Em muito contribuiu a sua presença em revistas de nomeada, como a New Yorker, a The New York Review of Books, a Times Literary Supplement ou a The Nation.

A arte foi sempre um dos seus temas prediletos, em especial na conjugação entre alta e “baixa” arte. Foi o tema que tentou escrutinar em 1964, com o ensaio “Notes on ‘Camp'”, onde abriu caminho para que o comum, o absurdo e o burlesco pudessem entrar na discussão quando se fala de arte erudita. São noções que volta a trazer para a sua coleção de ensaios de 1966, de título “Against Interpretation”, que não são mais do que uma crítica às convencionais críticas artísticas, onde a perceção estética acaba por ser compartimentada e não contemplada como uma novidade, como algo que causa impacto social e cultural.

“A interpretação não é (como supõem muitos) um valor absoluto, um ato do espírito situado em algum reino intemporal das capacidades. A interpretação também precisa de ser avaliada no âmbito de uma visão histórica da consciência humana. Em alguns contextos culturais, a interpretação é um ato que libera. É uma forma de rever, de transpor valores, de fugir do passado morto. Em outros contextos culturais, é reacionária, impertinente, cobarde, asfixiante.”

Against Interpretation (1966)

Sontag retorna à questão da crítica em “Under the Saturn” (1980, onde estão coligidos sete ensaios sobre o modernismo à maneira europeia, tanto na filosofia, como no cinema e a sua opinião sobre este) e em “Critique and Postcritique” (2017), no qual mostra várias novas formas de leitura e de interpretação do que é criado, ultrapassando as barreiras académicas e teóricas existentes. Igualmente impactante foi “Styles of Radical Will”, que volta a áreas fraturantes e polémicas, como a pornografia, ao mesmo tempo que discorre sobre cinema ou literatura.

Posteriormente, foram lançados os vários ensaios que compõem a série “On Photography”. Escritos entre 1973 e 1977 na New York Review of Books, viaja-se pela história da fotografia até aos seus dias, na década de 1970, no apogeu da sociedade capitalista onde enquadra a fotografia moderna. De igual modo, não esquece os valores nacionais dos Estados Unidos para interpretar os registos que se foram fazendo, para além da perspetiva cada vez mais voyeurista que recaiu no observador sobre os elementos captados e registados. São experiências que são nutridas e vividas por quem as vê, nomeadamente em passeio ou em lazer, e que são, simplesmente, captadas, sem poderem ser intervencionadas e/ou adulteradas.

Capa do livro “Histórias” (ed. Quetzal)

A fotografia moderna tornou-se, por si só, numa hiperprodutora de material visual, já que todo se tornou fotografável. De igual modo, alterou os pontos de vista de todos aqueles que veem a realidade, definindo referências sobre o que ver e como ver, constituindo, por si só, um código visual muito próprio. Um código que delimita acessos e que qualifica aquilo que deve ser mais ou menos visto, para além de amplificar o alcance de cada um conhecer e saber o que lhe rodeia. A fotografia é um agente de criação de experiências e de conhecimento, embora com o risco de poder assumir o lugar da própria experiência in loco.

Ao captar e ao criar estímulos visuais de lugares ou de situações, acaba por deslocar a humanidade da própria essência dos momentos, tanto para o bem — a contemplação, o deslumbramento —, como para o mal — o choque, o horror. A memória que perdura cinge-se à fotografia e não ao acontecimento que a despoleta e fragiliza a compreensão humana sobre as histórias associadas ao que é captado. Um ideário que foi aprofundado em “Regarding the Pain of Others” (2003), no qual aborda a fotografia de guerra como um meio de comunicação frágil, precisamente pelo facto do significado dos seus registos se tornar ausente da vivência e do contacto direto do que é captado. Este posicionamento fortaleceu aqueles que a associavam a uma postura proativa e, de certa maneira, ativista, tornando-se num exemplo para as próprias protagonistas dos movimentos feministas dos meados desse século XX.

Foi algo que procurou escrutinar em “Illness as Methaphor” (1978), quando trouxe as doenças para a praça pública. Ao cancro — na altura da escrita desta obra, ela própria debelava um cancro da mama — e à tuberculose, falou da sua associação com traços psicológicos pessoais, inclusive com sentimentos reprimidos. A paixão contida que fazia implodir o seu portador, uma metáfora que se tornava uma doença. Dez anos depois, faria o mesmo para o vírus da SIDA em “AIDS and its Metaphors”, para além de visar a própria sociedade como um todo nas reações de vergonha e de secretismo que despoletava em quem era afligido por este vírus. Sontag faz, assim, um exercício de desconstrução destas reações que partem de atitudes de repulsa e de puritanismo tomadas pela sociedade como um todo.

Numa fase em que a Contracultura subia de tom, Sontag manifestava-se, também, contra a guerra do Vietname. Assinaria o protesto Writers and Editors War Tax Protest, no qual contestavam uma proposta de uma sobretaxa aplicada aos estadounidenses em prol das despesas de guerra no Vietname. Para conhecer de perto a realidade deste país, deslocar-se-ia lá em 1968, ano em que se redigiu a petição, tendo escrito bem sobre a sua capital, Hanói.

“A fotografia, mais recentemente, transformou-se num divertimento tão praticado como o sexo e a dança, o que significa que, como todas as formas de arte de massas, a fotografia não é praticada pela maioria das pessoas como arte. É sobretudo um rito social, uma defesa contra a ansiedade e um instrumento de poder.”

On Photography (1977)

A sua atenção perante os confrontos bélicos esteve longe de ficar por aí. Encaminhou o PEN American Center, ramificada da PEN International — organização sem fins lucrativos composta por escritores e que visa a defesa da liberdade de expressão — a bater-se pelos “Satanic Verses” de Salman Rushdie, na data da sua polémica publicação aos olhos do governo iraniano. Aquando da Guerra dos Balcãs e do cerco de Sarajevo, Sontag viu uma peça sua ascender ao palco em plena cidade cercada, numa adaptação de “À Espera de Godot”, de Samuel Beckett. Tamanha façanha seria reconhecida pelo autarca da cidade, que a nomeou cidadã honorária. É um episódio que aborda em “Where the Stress Falls” (2001), a última coleção de ensaios da autora e que enriquece ainda mais a diversidade e a pluralidade de expressões culturais que traz para os seus livros.

De igual modo, foi visada por, ainda na década de 1960, culpar a raça caucasiana de ser a originária dos cancros do mundo, com o seu histórico de erradicações de civilizações humanas e de atentados ao equilíbrio ecológico mundial. É neste contexto que também aponta baterias ao governo do seu país aquando dos ataques do 11 de setembro, vendo-os como um ataque à superforça americana, provocados pelas alianças e pelos tratados perniciosos estabelecidos nos bastidores. De certa forma, foi um duro reality check, que mostrava aos cidadãos que não estava tudo bem com o seu país. Também foi visada pela própria esquerda — ela própria identificada com esta orientação política — quando abordou o comunismo como uma falácia e como um caminho destinado ao desastre e ao próprio fascismo. Acusaram-na de ser contrária aos seus próprios ideais radicais.

Capa do livro “Olhando o Sofrimento dos Outros” (ed. Quetzal)

O seu percurso de vida findaria a 28 de dezembro de 2004, aos 71 anos, vítima de uma leucemia. Para lá do seu filho, o seu legado perduraria nos escritos e numa vida que se quis sempre sem tabus e sem restrições. Apesar de ter casado e, desse matrimónio, ter tido um filho, Sontag sempre se afirmou como bissexual. Ainda antes de ser casada, já havia tido relações com mulheres. Futuramente, depois da separação, a própria convivência com a mencionada María Irene Fornés seria baseada numa relação passional entre ambas. Antes mesmo dessa, havia estado com a escritora Harriet Zwerling e, posteriormente, com a fotógrafa Annie Leibovitz, numa fase já madura da carreira ambas, em 1989, embora esta tenha aludido à influência instrutiva da sua parceira de então. No entanto, também esteve com homens, como o artista Jasper Johns ou o escritor Joseph Brodksy.

Susan Sontag deixou um legado rico e influente para as sucessivas gerações no Ocidente. Imersa no mundo da intelectualidade, por força dos seus ensaios e demais trabalhos académicos, fez da sua sabedoria caminho para o exercício crítico de um ativismo ardente e humanitário. Assim, desenhou novos limites para os horizontes da cultura estadounidense. Não obstante, também causou desilusão no seio de homólogos seus na escrita e na academia, acusando-a de petulante e até de excessivamente contestatária. De igual modo, as críticas visaram os seus modos de vida não eram de alguém que se pudesse compadecer tanto com os mais frágeis. Tudo isto não belisca, contudo, o contributo teórico para questões emergentes na sociedade, tão fraturantes como prementes. Susan Sontag trouxe, assim, arte e vida ao que mais necessitava e a quem mais necessitava.

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