Proust e os caminhos subconscientes da amizade e da literatura
É na trajectória das letras, palavras e frases que Marcel Proust permanece toda a sua vida, dedicando a totalidade da sua energia à literatura. Homem letrado e de letras, nascido no século XIX em Auteuil, parte em Paris nos inícios do século XX, com apenas 51 anos. Tornou-se célebre pelo seu extraordinário trabalho no livro “À la recherche du temps perdu”, publicado em sete partes entre 1913 e 1927.
Foi “Em busca do tempo perdido” que também nós nos perdemos; já Marcel encontrou-se e talvez nos tenha encontrado também, nestas reflexões. Desde cedo que o escritor francês demonstrou elevada sensibilidade pelo mundo que o rodeia. Para além da sua debilidade física, também aparentava alguma confusão mental, pois aquilo que observava trazia-lhe também alguma dor. Para Proust, a dor era uma forma de adquirir sabedoria, já que era a infelicidade que trazia força à mente.
É nesta erupção de ideias e pensamentos que surge uma grande questão que relaciona o mundo das letras e o mundo da amizade. O icónico autor francês partiu da ideia de que o cérebro era incapaz de se expressar pela conversa/diálogo tão correctamente como é capaz de o fazer através da escrita/leitura. Para ele a mente tenta responder quase que de imediato numa conversa para não se distrair ou perder o fio condutor da mesma. Devido a esta emergência falante do cérebro, Proust entendia que, quando conversamos, não estamos a ser propriamente nós, já que uma conversa não permite momentos mortos e exige uma continuidade de respostas, como diz Alain de Botton.
Durante uma conversa, a maioria das vezes só percebemos o que estamos a querer dizer quando já o fizemos efectivamente. Na escrita acontece o contrário: escrevemos e o mais importante nisso é a explanação e o aperfeiçoamento da nossa ideia até ela ser exactamente aquilo que queríamos que ela fosse.
É por isso que um livro nos permite destilar as nossas ideias que se vêm acumular com o tempo, e que o pensamento sobre elas é cada vez maior e não pára de crescer. Num livro nada tem de ser de imediato. Um livro dá-nos tempo e a mente desfila, divaga sobre o que lá está escrito.
Proust não era grande conversador; preferia escrever e ficar os dias entre os seus pensamentos, o papel e a caneta. Não compreendia a natureza do que estava a escrever até começar realmente a fazê-lo e a ponderar sobre o que tinha feito. Mesmo que tenha preferência pela escrita e pelos livros, Proust era também um homem com boas amizades.
Proust não era um homem que acreditasse no diálogo/conversa e tinha ideias um pouco dilacerantes em relação à amizade. Valorizava muito mais uma hora de trabalho que uma hora de conversa. Dizia que “o artista que abdica de uma hora de trabalho por uma hora de conversa com um amigo sabe que está a sacrificar uma realidade por algo que não existe”.
O icónico autor francês defendia a ideia de que falar era uma actividade altamente fútil: “A conversa, que é o modo de expressão da amizade, é uma digressão superficial que não nos transmite nada que valha a pena adquirir. Podemos falar uma vida inteira sem fazer mais do que repetir indefinidamente a vacuidade de um minuto”.
Para o autor francês, a amizade era um esforço em vão “cujo intuito é apenas fazer-nos sacrificar a única parte de nós próprios que é real e incomunicável (a não ser através da arte) a um ‘eu‘ superficial“. A amizade, para ele, não era mais do que “uma mentira que procura fazer-nos acreditar que não estamos irremediavelmente sozinhos”. Era uma maré de ideias subconscientes, em que ficamos submersos de nós mesmos, daquilo que os livros e a escrita nos deixam, e, por fim, daquilo que nos rodeia.
Marcel Proust pretendeu deixar-nos a noção de que “os nossos amigos não nos dão a oportunidade de exprimirmos o nosso ‘eu’ mais profundo, e que as conversas que temos com eles são um fórum privilegiado onde podemos dizer o que realmente pensamos e, por extensão e sem qualquer alusão mística, ser o que realmente somos.”
É com este entendimento do mundo que este grande pensador nos deixou. Agora, ficamos perdidos em mais umas horas de reflexão sobre o tempo no pensamento e sobre o subconsciente das dicotomias da vida. Será que Proust tinha razão?