Reportagem. Para além da cadeira de rodas: enfrentar o preconceito, partilhando-o
Cerca de 17% da população portuguesa tem uma deficiência ou incapacidade, segundo o Censos de 2011. Ainda assim, Catarina, Pedro e Inês ainda precisam de lutar contra o estigma, cada um à sua maneira, mas sempre com os olhos postos no público.
“Um dia vais sair dessa cadeira”. “Eu sou normal e não faço metade do que tu fazes”. “Namorar com alguém assim deve ser difícil”. “Vou rezar por ti e vais ficar normal e curado”. Estes são apenas alguns dos comentários que as pessoas com deficiência ouvem diariamente. Catarina Oliveira, uma nutricionista portuense de 33 anos, expõe-os através das redes sociais, na expectativa de despertar consciências.
Quando não está a dar consultas, Catarina é ativista dos direitos das pessoas com deficiência no Instagram. Hoje, a sua página conta com mais de 24 mil seguidores e o nome — “espécie rara sobre rodas” — reflete a forma como olham para si na rua.
Catarina nem sempre se deslocou sobre rodas. Em dezembro de 2015, viajou para o Brasil para visitar a melhor amiga. No avião, sentiu uma dor nas costas que desvalorizou e, ao aterrar, uma dormência nas pernas. Depois de três idas às urgências, os sintomas levantavam a suspeita de uma dor ciática. Passado uma semana, teve de ser internada. Noites sem dormir, sem melhorias, num país que não o seu. O diagnóstico? Uma inflamação na medula espinal ou mielite transversa com causa desconhecida, que fez com que Catarina ficasse paralisada nos membros inferiores.
Ao mês e meio de internamento somaram-se outros quatro em Portugal. O desejo de sair do hospital era maior do que as perguntas acerca do que aconteceria daí em diante. Chegado o momento, regressou a casa e começou o processo de adaptação. “Eu não tive um processo mau. Não tive nenhum momento de luto, de perguntar: porquê a mim?”, confessa. Mesmo assim, teve de reaprender o dia-a-dia e lidar com a irritação que sentia por demorar mais tempo a fazer as tarefas. Afinal, viveu 27 anos sem a deficiência.
“O meu humor vem do facto de eu ter sido uma pessoa sem deficiência durante 27 anos e, quando as coisas mudaram, pensei: ‘uma pessoa tem de rir para não chorar’.”
Catarina Oliveira
Como qualquer jovem, tinha também outras preocupações. Questionava-se se estaria no curso certo. Estava insatisfeita há vários anos. Em 2016, devido à fisioterapia, colocou de lado o Mestrado Integrado de Medicina no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto. No ano seguinte, continuou-o: “Foi mais um ano puramente infeliz. Ia para a faculdade infeliz, não tinha vontade de estudar, não queria que me perguntassem coisas sobre a faculdade”, revela. A forma como passava os tempos livres escondia a sua verdadeira ambição: estudar Nutrição, que concretizou em 2018 na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto.
Se na Nutrição transforma hábitos alimentares, no Instagram muda convicções. Em 2020, começou a partilhar o seu quotidiano na página e, ao ver a reação das pessoas, investiu mais tempo nas publicações: “Comecei a estudar mais sobre a deficiência e sobre o capacitismo. Foi com trabalho que se criou uma comunidade, mas não deixou de ser algo bastante espontâneo”, explica.
Catarina acredita que se as pessoas se lembrarem de uma piada que ridiculariza uma situação discriminatória, mais facilmente irão mudar as suas atitudes. “Eu ponho o dedo na ferida não com água oxigenada, mas betadine, porque assim arde menos, mas não deixo de o pôr”, detalha.
“Eu ponho o dedo na ferida não com água oxigenada, mas betadine, porque assim arde menos, mas não deixo de o pôr”
Catarina Oliveira
O humor que põe nas publicações é o mesmo que usa para lidar com o ridículo das situações por que passa. “O meu humor vem do facto de eu ter sido uma pessoa sem deficiência durante 27 anos e, quando as coisas mudaram, pensei: ‘uma pessoa tem de rir para não chorar’”, revela. As situações “ridículas” a que se refere são, no fundo, capacitistas.
A discriminação contra a pessoa com deficiência – ou capacitismo – infiltra-se no seu dia-a-dia. De acordo com os dados do Eurobarómetro sobre Discriminação na União Europeia de 2019, 58% dos portugueses consideram que no nosso país é “comum” ou “bastante comum” ocorrerem situações de discriminação. Prova disso é o número de queixas por discriminação com base na deficiência, segundo o relatório Pessoas com Deficiência em Portugal – Indicadores de Direitos Humanos 2020, do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos do ISCSP: 1274.
A discriminação nem sempre é intencional. A portuense relembra as vezes em que recebeu um “elogio” que era, na verdade, discriminatório: “És tão bonita que nem reparo na cadeira de rodas”. Mas Catarina não quer esconder a cadeira. Pelo contrário, quer que reparem nela para que haja mais acessibilidade. “Espécie rara sobre rodas” é a forma de a cadeira se fazer notar, para uma sociedade mais inclusiva e acessível.
Pedro Bártolo: ativismo em campo
À luta contra o preconceito junta-se Pedro Bártolo, de 30 anos. O jovem de Vila Nova de Gaia criou a primeira equipa de Basquetebol em Cadeira de Rodas vocacionada para a formação em Portugal, no Basket Clube de Gaia. Lançou o projeto em 2016, inspirado pela experiência internacional enquanto jogador profissional.
Aos três anos, Pedro teve uma lesão medular incompleta. A cadeira passou a fazer parte da sua vida e ajudou-o a ser autónomo, tal como a família. “A minha mãe e o meu tio sempre me incentivaram a fazer as coisas sozinho. Mesmo quando não era possível, eu arranjava maneira de contornar, nem que tivesse de subir de gatas um autocarro para ir ter com os meus amigos”, confessa o jogador.
Os objetivos que Pedro traçou foram alcançados graças à sua dedicação. Enquanto aluno da licenciatura de Ciências da Comunicação na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, entre 2008 e 2011, o desporto continuava a ser a prioridade. Mas nem por isso deixou de ser um dos melhores alunos do curso. Algo que lhe deu gozo, já que duvidaram da sua capacidade de fazer reportagens enquanto pessoa com deficiência. “Foi como uma bofetada de luva branca”, admite. Não foi a única vez em que questionaram o seu potencial — uma professora de Educação Física, também com uma deficiência, trocava as aulas de Pedro por trabalhos escritos.
Hoje, concilia a comunicação e o desporto. Enquanto membro do departamento de comunicação da Federação Portuguesa de Basquetebol, torna o desporto mais inclusivo, ao dar visibilidade a modalidades adaptadas.
Aos 12 anos, teve o primeiro contacto com o basquetebol em cadeira de rodas. Foi amor à primeira vista. Ou melhor, à segunda, porque os pais acharam o desporto “demasiado violento”. Com 16 anos, Pedro começou a jogar. Dois a três treinos por semana passaram a dez quando foi para Badajoz jogar profissionalmente aos 22 anos — “um choque de realidade” para o atleta. Depois de experimentar o basquetebol em diferentes países, conclui: “Nota-se uma cultura desportiva e sensibilidade geral muito diferente em relação ao desporto paralímpico noutros países”.
Nem sempre é ele quem marca cestos. Como treinador, Pedro notou que os seus alunos “estão muito mais capazes e sociáveis do que quando entraram; são mais autónomos em coisas básicas e encaram a deficiência de outra forma”.
Mas Pedro faz uma advertência: o desporto traz vantagens a jogadores com e sem deficiência. No caso do desporto paralímpico, as mudanças são mais visíveis, mas a integração dos jogadores não deveria depender apenas do esforço de cada um. “A sociedade é que tem de se ajustar às pessoas” e não o contrário, insiste.
Quando uma escada é uma parede
Quando a sociedade assume que todos têm as mesmas necessidades, não se garantem as acessibilidades e uma escada torna-se uma parede. Portugal é um país maioritariamente inacessível. Desde ser necessário planear viagens minuciosamente para poder ir à casa de banho, não conseguir chegar a um café ou até não encontrar condições nos estabelecimentos de ensino — as barreiras são várias e ditam o dia-a-dia. Pedro reage: “Ninguém está a pedir que as montanhas se tornem acessíveis. Estamos a pedir que as ruas da cidade, da vila e da aldeia o sejam. Porque o que é público tem que ser acessível”.
Em resposta, surge a vontade de ajudar. Mas Catarina acha que essa estratégia é apenas um ‘penso rápido’ e não uma verdadeira solução: “Queremos que se construa acessibilidade para que possamos entrar e sair dos sítios sozinhos. Não tem mal nenhum em pedir ajuda. A questão é que não se pode oferecer ajuda, quando o que se deveria oferecer era acessibilidade”.
“Ninguém está a pedir que as montanhas se tornem acessíveis. Estamos a pedir que as ruas da cidade, da vila e da aldeia o sejam. Porque o que é público tem que ser acessível”
Pedro Bártolo
Segundo o inquérito da Associação Salvador e do Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade (ICVM) de 2020, 70% dos municípios nunca planearam as acessibilidades, nem têm técnicos formados nesta área. 80% admitem não ter um único equipamento ou espaço público 100% acessível.
Devido à falta de condições, são cometidos erros absurdos. Em 2013, nenhuma residência da Cidade Universitária de Lisboa estava adaptada. A pedido, em 2015, foram colocadas uma rampa e barras na casa-de-banho numa das residências. Ainda assim, as barras foram colocadas ao contrário. Este é apenas um dos episódios que Inês Marto, uma escritora de 26 anos, natural de Coimbra.
Inês Marto: a mudança escreve-se com arte
Inês traz o verso na boca e sorri com os olhos quando fala das suas paixões: a escrita, o teatro, os amigos, o desenho. Mas ao lembrar o passado, o tom muda: “Na escola fui alvo de chacota. Começou com a turma, depois passou para todas as turmas do meu ano, depois para o corredor inteiro”. Se no início Inês se defendia dos comentários, mais tarde, fechou-se no seu próprio mundo e parou de falar com os colegas e professores: “Tinha professores a dizerem-me que não devia responder ou defender-me porque precisava mais dos colegas do que eles de mim”, desabafa.
Foi em Fátima que Inês foi alvo de bullying, que piorou a partir do sexto ano. Quando se mudou para Lisboa em 2013, já não sentia que a viam como um “extraterreste”. Na grande cidade, deu um passo em direção aos seus sonhos: licenciou-se em Estudos Artísticos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 2019; escreveu artigos para o seu blogue e para a revista dezanove, letras de canções, peças e dois livros, Combustão (2017) e Metamorfose (2019). Através do seu trabalho, Inês luta pela igualdade de direitos na área da deficiência, da sexualidade e da identidade de género. Ser atriz, bailarina e encenadora são projetos que, por enquanto, ficam no papel, devido à timidez e à dificuldade de falar em público.
A arte chegou cedo à vida de Inês. Começou por ser tanto um refúgio, como uma forma de viajar sem sair da cadeira: “Em criança, como não conseguia jogar à bola, correr ou trepar às árvores, procurava coisas que pudesse fazer sentada e acabava sempre por ir parar ao desenho, à escrita e à música, para mitigar aquilo que não conseguia fazer fisicamente”, confidencia a poetisa.
A cadeira acompanha-a desde sempre; Inês nasceu às 26 semanas de gestação com paralisia cerebral. “Ainda não tinha os dentes a nascer” e a fisioterapia já fazia parte da sua rotina. A autora recorda a frustração de andar no jardim de infância e não perceber o porquê de ter de ir à fisioterapia, enquanto as outras crianças brincavam. Hoje, sabe que foi para seu próprio bem.
“Se eu não conseguisse fazer certas coisas, quer fosse a andar, de pé ou sentada, internalizei que não era suficiente ou não ia ser aceite”
Inês Marto
No entanto, não deixa de se sentir como uma “máquina” que precisa de arranjo: “Se eu não conseguisse fazer certas coisas, quer fosse a andar, de pé ou sentada, internalizei que não era suficiente ou não ia ser aceite”, desabafa. Com a escrita, Inês consegue debruçar-se sobre si própria e aceitar-se, uma e outra vez. Prova disso é a sua obra Metamorfose – tal como uma borboleta, Inês teve o seu percurso de transformação que partilha em prosa.
Quando vemos uma cadeira numa pessoa e não uma pessoa numa cadeira
A verdade é que tolerar e aceitar a discriminação enquanto “normal” também é capacitismo, como explica Catarina. Isto é resultado da maneira como a sociedade retrata a pessoa com deficiência. Os três jovens estão de acordo: nos media, apenas duas visões parecem persistir — o “coitadinho”, que sofreu uma tragédia e está “preso” à cadeira, e o “herói”, que é uma fonte de inspiração e um exemplo de superação. “Acho que nos media perdura o prisma caritativo de que a pessoa com deficiência não é independente. Qualquer coisa que tu faças, seja tirar a carta ou ir ao supermercado, é um triunfo teu sobre a deficiência”, insiste Pedro.
Inês deixa um alerta: se a imagem que é passada é a de que há um final feliz porque as pessoas com deficiência conseguem superar os obstáculos, então a sociedade nunca perceberá onde está a falhar. E falha porque ainda vemos “uma cadeira numa pessoa e não uma pessoa numa cadeira”, como afirma. Para que isso mude é necessário que a pessoa com deficiência seja representada em todos os espaços. “Eu não preciso de um porta-voz, preciso de aliados com e sem deficiência”, sublinha Catarina.
Ser uma pessoa com deficiência é diferente para Catarina, Pedro e Inês. No entanto, têm algo em comum: a vontade de mudar a forma como a deficiência é encarada. Os seus projetos servem esse propósito. Insistem em fazer-se ouvir, até que haja mudança. Até que o preconceito, a discriminação e a falta de acessibilidades deixem de ser uma realidade.
Reportagem de Ana Catarina Félix, Inês Canhão e Leonor Parente, recém-licenciadas em Ciências da Comunicação da NOVA FCSH. Este trabalho foi elaborado no âmbito da unidade curricular de Atelier de Ciberjornalismo.