Sambar para não chorar com Cartola: como o samba começou

por Ana Monteiro Fernandes,    9 Dezembro, 2019
Sambar para não chorar com Cartola: como o samba começou
Cartola / DR
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Boémio na vida e poeta de rosas, moinhos e alvoradas por vocação, Cartola ― de seu verdadeiro nome Angenor de Oliveira ― representa a génese do samba, aquele intrinsecamente ligado à forma carioca de viver e aos estilos musicais de raízes africanas e indígenas.

Ou seja, sem correr o risco de ser insuficiente ou incompleta, o samba brotou do Rio de Janeiro mas resultou da junção de vários géneros musicais e danças regionais do povo e da comunidade africana,um pouco por todo o Brasil, ainda no tempo do esclavagismo, essencialmente. Era o batuque,  o maxixe, o lundu ― géneros aos quais a pianista Chiquinha Gonzaga, a autora da primeira marcha carnavalesca, Ô abre alas, também foi beber influências ― mesclado com a roda de samba típica da Bahia. Assim era este género musical no seu início, diferente do actual, e ao qual Cartola pertenceu e ajudou a edificar. Recorde-se que os primeiros sambas tinham um ritmo mais pausado e eram dominados, essencialmente, por instrumentos de sopro e cordas, como a flauta, o cavaquinho, o violão e a viola. Orgânico e visceral, as letras das suas músicas eram autênticos poemas ― os versos de As Rosas não Falam e O mundo é um moinho constituem, apenas, alguns exemplos de como se podem cantar as maiores tragédias à luz de uma música popular que se pensa ser só alegria. Aliás, numa entrevista sua, enfatizou que não sabia compor samba em que só se cantasse “lalalalala, lelele ou lololololo”. Dia onze do mês passado [Outubro], o sambista faria 111 anos. É, então, a altura ideal para lembrarmos quem foi o poeta das rosas e fazermos uma viagem, ao início do século XX, para recordamos como o samba brasileiro começou.

Se fizermos o exercício de olharmos para a história dos vários estilos musicais que são, na realidade, o grande berço dos estilos que tanto gostamos de ouvir hoje em dia ― falo do jazz, do rock & roll e por aí adiante ― o que é que aprendemos? Pois bem, aprendemos que a maior parte evoluiu das raízes populares, maioritariamente negras, e daí, só passado algum tempo, é que conseguiram o reconhecimento por todos e pelas elites. O Samba, por esse prisma, não foi excepção. O esclavagismo, no Brasil, que  podia abranger, além das comunidades africanas, os indígenas, só terminou oficialmente em 1888, com a Lei Áurea, levada a efeito pela então princesa Isabel, e daí se explica a grande miscigenação e pluralidade que há na cultura popular musical brasileira. Géneros como o lundu, o maxixe ou o samba de roda têm aí a sua génese e é, por isso mesmo, que não podemos destituir o samba do seu lado subversivo e do seu contributo para a resistência negra após o fim da escravatura. Segundo um artigo do historiador Luiz Antonio Simas, por exemplo, vem descrito que “a década de 1920 no Rio de Janeiro (RJ) foi marcada por um dilema que envolveu as camadas populares urbanas ― especialmente as comunidades afrodescendentes ― e o Estado republicano.

Enquanto os negros buscavam pavimentar caminhos de aceitação social, o Estado procurava disciplinar as manifestações culturais das camadas populares ― uma forma considerada eficiente para controlá-las. E foi dessa interação entre o interesse regulador do Estado e o desejo de aceitação social das camadas populares urbanas que surgiram as primeiras escolas de samba.” Há um nome que não podemos olvidar, a Tia Ciata (pioneira do samba que deu origem ao rancho carnavalesco denominado Rosa Branca), mãe de santo Baiana mas que acabou por se radicar no Rio de Janeiro. Além de ter trazido a roda de samba para a cidade maravilhosa, a variante do samba mais tradicional e proveniente da Bahia, disponibilizou a sua casa para as reuniões dos  sambistas ― prática, na altura, proibida por lei ― e assim nasceu aquele que é tido como o primeiro samba gravado em disco, Pelo Telefone, em 1916, de Donga e Mauro de Almeida. Comumente, este costuma ser considerado o primeiro samba registado pela sua ampla fama. Há, no entanto, dois ainda mais antigos: Em casa de baiana (1913), de  Alfredo Carlos Brício, e A Viola Está Magoada (1914), de Baiano. 

Era este o clima musical que se respirava no Rio quando Cartola nasceu, a 11 de Outubro de 1908, no bairro do Catete. Ainda criança mudou-se com a sua família para o Bairro da Laranjeiras [Buraco Quente] e, posteriormente, para o morro da Mangueira ― na altura uma favela em construção. Proveniente de uma família operária sem condições monetárias, desde cedo se interessou por música, até porque o seu pai sabia, muito bem, tocar cavaquinho e violão e, por isso mesmo, foi o seu primeiro grande mestre. Avesso aos estudos, só concluiu a instrução primária e, após a morte prematura da sua mãe, teve não só de abandonar a escola mas também a sua casa, expulso pelo próprio progenitor. Isso não o impediu, no entanto, de alimentar a sua sensibilidade para grandes letras e composições. Assim era Cartola, um miúdo travesso que gostava do lado boémio e romântico da vida (na sua juventude, amou muitas mulheres) e que, além da sua música, teve de passar, ainda muito cedo, pelas mais diversas profissões. Aliás, é preciso relembrar que só muito tardiamente é que conseguiu gravar o seu primeiro disco de um leque de quatro ― isso aconteceu quando tinha já 66 anos – e que, ao longo da vida adulta, passou, igualmente, por várias situações de pobreza, tendo sido descoberto e redescoberto uma e outra vez. Mas quanto à sua resiliência ao estudo, há uma citação bastante curiosa e engraçada do próprio, “[o meu pai] chegou a dar-me lições em casa. Chegava a noite e chegava a dar-me duas horas de lição. Mas eu pouco prestava atenção às lições. Ele me dava lição e estava tocando violão. Então eu não sabia se aprendia a ler ou a tocar violão.”

O mestre do Samba começou por trabalhar numa gráfica logo aos onze anos de idade para ajudar a família, depois foi pedreiro (é daí que vem a alcunha Cartola, porque usava um chapéu de coco para proteger o cabelo), mas já frequentava os bares e as bocas da Mangueira (lugares de culto de Deuses afro-brasileiros onde se dançava). Após a morte da mãe, o pai, bastante severo, expulsou-o devido ao seu estilo de vida e atritos vários crescentes. Foi nessa altura que começou, literalmente, a “vadiar” e a perambular pelo bairro, a frequentar casas de prostituição, num estado totalmente enfraquecido e sem condições. É, então, que, para sua sorte, encontra a sua primeira esposa. A união seria bastante peculiar porque Cartola deveria estar a fazer a transição dos 17 para os 18 anos e Deolinda [com aproximadamente 25], casada, tinha já uma pequena filha. O que aconteceu foi bastante simples, Deolinda reparou no estado miserável de Cartola e, mesmo já atingindo a maioridade, adoptou-o como um filho e cuidou dele ― foi dessa forma que a relação começou. Não obstante o elo maternal, os dois apaixonaram-se e Cartola ganhou, precocemente, uma família ― mulher e a respectiva filha.

Embora fosse eficiente como pedreiro, do que Cartola gostava mesmo era do seu samba e violão e era na música que se perdia mesmo. Quando a família do sambista se mudou para a Mangueira, na altura uma favela no seu começo, vários outros afro-descendentes assim o fizeram devido às dificuldades sócio-económicas. A efervescência musical do morro era, por isso mesmo, inegável. Ainda muito antes de Cartola, já a mãe-de-santo baiana Tia Fé era uma referência na Mangueira (sim, o início do samba está intrinsecamente ligado aos cultos africanos, muito em especial o Candomblé). É a ela que de deve a fundação dos rancho carnavalesco Pérolas do Egito e o Bloco da Tia Fé da Mangueira. A música sempre foi, por isso mesmo, indissociável de Cartola e, na Mangueira, essa ligação tornar-se-ia ainda maior. Desde cedo conquistou a amizade do poeta e compositor Carlos Cachaça, seu padrinho de crisma, com elaboraria várias parcerias. Quando Angenor tinha 14 anos, os dois criaram a sua primeira música em conjunto, isto, porque tal como Carlos afirma no documentário Cartola ― Música para os Olhos, “há coisas que não foram registadas e que não apareceram nas composições que fizemos. Era assim… ele fazia um verso, eu fazia o outro…” Foi, aliás, com Carlos, Saturnino Gonçalves e outros seus amigos que criou, em 1925, o Bloco dos Arengueiros, que mais tarde deu origem à segunda escola de samba carioca, Estação Primeira de Mangueira, para quem compôs o samba, o primeiro da escola, Chega de demanda. “Chega de demanda/Chega!/Com este time temos que ganhar/Somos da Estação Primeira/Salve o Morro de Mangueira”. O objectivo de então era agregar os blocos já existentes na localidade num só.

Foram os blocos carnavalescos que deram origem às próprias escolas. Como curiosidade, a primeira escola de samba chamava-se “Deixa Falar” e nasceu em 1928 no bairro carioca Estácio. Como já havia referido e como o próprio Cartola afirma, o samba da altura era mais lento e mais depurado. A verdade é que quando se compunha um samba, era para o ouvinte sabê-lo para a vida, não para esquecê-lo no dia seguinte. A década de 30 trouxe-lhe novas parcerias e projecção além da Mangueira. Aliás, já casado com Deolinda, recebia imensas pessoas e artistas em sua casa, entre os quais o ilustre Noel Rosa, com quem viria a estabelecer, igualmente, parceria. Para quem desconhece, Noel Rosa foi outro grande artista brasileiro do início do século XX: um enfant boémio perdido cheio de sensibilidade, como se vê na música Último Desejo. Com Cartola, Noel Rosa compôs o tema “Tenho Um Novo Amor”, interpretada por Carmen Miranda, “Não Faz, Amor” e “Qual Foi o Mal Que Eu Te Fiz”,  ambas interpretadas por Chico Viola. 

Foi por essa altura que conseguiu vender o seu primeiro samba para ser cantado por Mário Reis, cantor popular da época, Que Infeliz Sorte. Acabou, no entanto, por ser interpretado por Chico Viola ― outro grande cantor popular do início do século transacto. Passado pouco tempo, mais propriamente um ano após, em 1933, viria o seu primeiro sucesso comercial consagrado com Divina Dama, mais uma vez na voz de Chico Viola. Após esta projecção, que o levaria a formar um grupo de sambistas ― entre os quais se encontrava Donga (autor de Pelo Telefone), não tardaria a chegar mais um tempo difícil para o cantautor que começou a participar pouco ou a excluir-se da comunidade artística do Rio. A sua mulher, Deolinda, que o salvara uma vez, viria a falecer de ataque cardíaco, surgiriam desentendimentos com a Escola de Samba que ajudou a erguer e, monetariamente, voltaria a estar em crise, voltando a ser o mesmo da altura em que saiu da casa do seu pai. Desta vez, no entanto, acabou por abandonar a sua Mangueira.

Tendo de trabalhar como lavador de carros ou segurança de prédios, perdido e num estado físico lastimável, acabou por cair no esquecimento, mas também seria o momento em que conheceria o seu novo e último amor até ao fim dos seus dias ― Dona Zica. A sua nova mulher devolveria Cartola à Mangueira, passando ambos a morar na localidade, e o jornalista Sérgio Porto devolveria o cantautor ao público brasileiro. Devido à falta de produção e consequente desaparecimento, havia, até, quem tivesse dado o músico como morto. É então que o jornalista Sérgio Porto decide ajudar Cartola, redescobrindo-o, e fazendo a ponte entre o artista e a imprensa. As coisas voltavam ao lugar e eis que surgia um novo empreendimento na vida do artista, além do retorno da produção musical ― o restaurante ZiCartola. Sem dúvida que o restaurante foi um autêntico espaço de encontro e reunião para a comunidade artística, pois, enquanto Zica trabalhava como cozinheira ― os seus dotes culinários eram sobejamente conhecidos ―, Cartola tratava de reunir autores, cantautores da música popular e de bossa nova, poetas e até jornalistas musicais. Além da música, o poeta das rosas, como também era conhecido, participou em alguns filmes. Um deles, mesmo que fugidiamente, foi o aclamado Orpheu Negro, de Marcel Camus, para o qual Jobim também contribuiu com composições suas. 

Após este período áureo, viria outro complicado devido às dívidas e falência do Zicartola. Sem grande escape, o poeta sambista, desta vez, voltou a morar com seu pai, aquele que o havia expulsado no passado, contribuindo tal para uma boa aproximação entre os dois. Desse tempo, resultou uma gravação em que o filho cantou e tocou O Mundo é um moinho, a pedido do seu progenitor ancião. 

Como já afirmado, a vida de Cartola não foi pautada pelo facilitismo nem pelo sucesso ascendente. Numa altura veloz em que todos procuram, em todas as áreas, os seus fáceis cinco minutos de fama e se insiste, ao mesmo tempo, numa infantilização e perpétua jovialização da sociedade ― como se isso fosse possível e saudável ― custa-nos a querer que um artista e poeta do seu calibre tenha gravado o seu primeiro álbum aos 66 anos de idade. Só então é que conheceríamos as gravações dos seus maiores sucessos, “Alvorada”, “O Mundo é um moinho”, “As Rosas não falam” e “Preciso de me encontrar” Esta última uma excepção, porque foi escrita por outro grande do Samba ― Candeia. Se Benigni afirma que, além da poesia escrita, quem vive a vida como um poema também é poeta ― então Cartola teve os dois mundos do seu lado e transformou os seus abismos em autênticos romances. Orgânico, com pouca escolaridade e proveniente de uma família pobre, alimentou a sua sensibilidade à mesma e chegou ao leque dos grandes cantautores e letristas. Quando escrevia os seus versos fazia-o de forma segura, correcta e sem emendas posteriores. Eram os tais que diferiam dos “lalalala” e “lelelele” que levamos para vida.

Era a tragédia contada e cantada à luz de um estilo que se pensa ser totalmente alegria, mas que não deixava de devolver o outro lado. Se reparamos, foi isso mesmo que fez com O Mundo é um moinho, cuja letra foi pensada para a sua filha adotiva do primeiro casamento com Deolinda, de quem não perdeu o rasto (com Zica não teve filhos), e não deixa de retratar uma história. O que temos aqui? Uma bela balada, lenta, pautada por cordas que arrepiam num trinar perfeito em que penso que o bandolim impera. É bastante fácil deixarmo-nos levar pelo fagote grave de Preciso de me encontrar, tema mais rápido mas muito melodioso e harmónico, em que se reitera a necessidade de alguém se encontrar consigo próprio. Mas há mais, é preciso escutar o verdadeiro fado que se esconde num tema composto rítmica e instrumentalmente à luz dos primeiros sambas, como o em As Rosas não falam, mas que afinal falam sim, e é de saudade. Há várias gravações e interpretações das suas músicas. O Mundo é um moinho cantado por Cazuza é, apenas, um exemplo. Ou, até, as primeiras gravações e regravações destes mesmos temas por Beth Carvalho.

O Cartola morreu aos 72 anos vítima de neoplasia (cancro), e só numa idade tardia conheceu a sua consagração e a sua paz, numa vida rotineira mas boa em que tinha de dormir a sua sesta. Esta fase final foi passada fora da mangueira, na sua primeira casa em nome próprio, em Jacarepaguá. A sua neta adoptiva assim o descreve, bom, com valores e protector, mas muito reservado. Quanto à imprensa, detestava que lhe fizessem a pergunta cliché, “porque é que o senhor tem a alcunha Cartola?” Para trás ficaram as rosas. Certo dia, o poeta decide plantar mais rosas no jardim. Quando estas começam a despontar, Dona Zica, a sua mulher, pergunta-lhe, “Cartola, venha aqui! Venha ver o jardim! Por que é que nasceu tanta rosa?” Cartola responde-lhe, “Não sei, Zica. As rosas não falam!”

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