Sónar Barcelona 2022: o glorioso regresso de um dos festivais mais completos do mundo
A maior pista de dança do mundo voltou a Barcelona. Depois de dois anos de pausa e de um evento-piloto em Lisboa, o festival Sónar teve a sua 29.ª edição na terra que o viu nascer. Foram três dias intensos, em que se cruzaram música, audiovisual, tecnologia, realidade virtual, palestras e muita criatividade. Cerca de 122.000 pessoas passaram pelos diferentes cenários do Sónar, sendo que 70% delas provinham de Espanha — comprovando a reverência do público por um dos festivais espanhóis mais acarinhados.
A verdade é que há uma razão de ser para isso. É que, para quem se interesse por música electrónica e por tecnologia adjacente à criatividade, dificilmente haverá uma melhor experiência. O festival apresenta uma oferta diversificada, relevante e muito coerente. Como tal, o público que vai ao Sónar Barcelona não procura apenas uma mega-festa ao ar livre ou uma quebra de rotina das noites de discoteca, nota-se um verdadeiro interesse no que é apresentado e uma apreciação por aquele que é um dos maiores eventos do género no mundo.
Essa foi uma das principais diferenças que se fez notar para o evento de Lisboa, cuja distribuição de eventos dificultava a interseccionalidade, dividindo o público por espaços distantes e limitando o seu acesso a novas experiências, dando-lhe mais daquilo a que já está habituado sem quase o forçar a sair da zona de conforto — ainda que o tenham feito com brio e extrema qualidade.
Neste sentido, o Sónar Barcelona permite uma maior exploração de novos campos — particularmente, no que toca ao Sónar by Day, decorrente na Fira de Barcelona, ao pé do majestoso Palácio de Montjuïc. A sua enorme variedade implicou que, logo no primeiro dia, pudéssemos assistir ao concerto de um duo inspirado no canto gregoriano, perder-nos nos mundos imaginados da Realidade Virtual e da criptoarte, depois sair à rua para uma quente (e bem quente) festa de música electrónica ao ar livre e pelo meio ainda passar por uma sessão de apresentação de projectos na área da ecologia acústica.
Tudo isto no mesmo recinto, a passos de distância e sem grandes entraves, favorecendo a acessibilidade para todos os festivaleiros. Aliás, a quantidade de pessoas em cadeiras de rodas ou com outro tipo de dificuldades motoras foi surpreendente. O testemunho de uma delas quando questionada sobre a acessibilidade foi maioritariamente satisfatório, tirando pequenos incidentes de falta de staff para ajudar em algumas situações. Quando comparado com os “mínimos olímpicos” feitos pelos festivais de música portugueses, a diferença é notória.
No primeiro dia de três dias de festival, apenas houve Sónar by Day — uma espécie de amuse-bouche para os longos dois dias que se seguiriam. Os espectáculos maiores do alinhamento deste primeiro dia focaram-se mais em sonoridades experimentais e discordantes, numa clara afirmação do vanguardismo do festival.
O já mencionado duo catalão de canto gregoriano progressivo são as Tarta Relena — que estiveram recentemente no Musicbox, em Lisboa. Aqui, apresentaram um espectáculo especialmente desenhado para o Sónar, fazendo-se acompanhar de um coro e de um aparato de luzes desorientante e muito adequado às suas experimentações vocais e electrónicas. Envergando trajes meio futuristas, meio clássicos, Marta Torrella e Helena Ros usavam o seu instrumento principal — a voz — para criar fabulosas camadas de som estonteantes. Por trás das mesmas, uma instrumentação simples: palmas, estalar de dedos, batidas electrónicas e o retinir de uma taça de metal. Se todas as missas fossem assim, haveria mais acólitos. Para começar, foi logo uma grande prova do calibre de espectáculos que se podia esperar.
Os finlandeses Amnesia Scanner levaram a sua electrónica barulhenta com toques de dubstep e noise ao palco mais alternativo, o SónarHall. A ideia é paralela à das Tarta Relena, a de somar camadas de som, mas estes fazem-no até à distorção, levando a música ao limiar da repelência e, com isso, tornando-a mais atractiva — como se nos conduzissem ao abismo. A sensação de perigo é permanente devido ao inesperável das suas composições, ampliada pelas imagens horrorosas e luzes faiscantes mostradas em palco. Ocasionalmente, as bases da sua música soam familiares, pois pegam em ritmos de música urbana e cunham momentos como “AS Faceless” ou “AS Too Wrong”, aproximando-se de um noise reggaeton ou dancehall.
Outro dos concertos da noite foi, para júbilo nosso, o de Pongo. A luso-angolana representou Portugal da melhor maneira, com um concerto enérgico em que homenageou os géneros que dão origem à sua música: um cocktail de kuduro, zouk, bass, pop e música electrónica. O público claramente aderiu em força, enchendo o espaço em frente ao maior palco do recinto e acompanhando Pongo nas suas danças irrequietas — até mesmo em palco, ao qual uma dezena de intervenientes subiu para dançar o hino “Kalemba (Wegue Wegue)”, canção dos Buraka Som Sistema que liderou os tops de Espanha em 2009. Pelo meio, ouvimos, entre outras, a combativa “Começar” e a amorosa “Doudou”, que fazem parte de Sakidila, álbum lançado este ano.
Nem todos os concertos foram tão cativantes. Os ícones de culto da alt-pop queer Eartheater e Sega Bodega deram o mínimo possível nos seus espectáculos. A primeira confiou demasiado em vocais pré-gravados, entregando-se a uma performance ébria em que passou a maior parte do tempo ou a rebolar ou de joelhos. Poderia entender-se como algo emotivo, mas transpareceu mais uma falta de brio pela sua própria criação. As batidas de “Scripture” ou “Supersoaker” sempre deram azo a momentos mais inspirados, mas isso tem que ver com o trabalho de estúdio. Por outro lado, Sega Bodega escondeu a sua emoção atrás de instrumentais difusos e efeitos de voz sufocantes, numa pop distorcida que não pareceu tão transgressora como narcoléptica. Estando ele estático debaixo de feixes de luz, a performance também não ajudou. O efeito visual era interessante, mas a verdade é que não fez favores pela sua música.
Pelo meio, segmentos de outros sets ou concertos iam saltando à vista entre palcos. Quase por acidente, vimos o set de Paranoid London. Ainda bem, pois o seu techno industrial e nervoso trouxe à mente os melhores momentos da música club dos anos 90, completos com uma performance dedicada de Mutado Pintado. O novo hit de Uniiqu3, “Microdosing”, foi um dos momentos mais divertidos do festival. É uma canção destinada a ser um sucesso, com o seu ritmo house aceleradíssimo e rap viciante. A neozelandesa Lady Shaka passou remisturas de clássicos dos anos 2000 e fez-se acompanhar de duas dançarinas da ilha. O espanhol Chico Blanco fez um set híbrido, cantando por cima de uma mistura de ritmos techno e house. Para finalizar, Jayda G animou o público com clássicos soul reimaginados sob o jugo do house.
O segundo dia já foi mais longo. Nesse, passámos mais de 15 horas no festival. É fácil fazê-lo se se tiver energia para tal, pois os alinhamentos quase sempre convidam a isso. Logo depois de almoço, os madrilenos VVV [Trippin’ You] levaram a sua marca de neo-bakala ao Sónar. Género espanhol surgido nos anos 90 em Valencia, o bakalao cruzava música gótica, pós-punk, techno e synthpop. O seu revivalismo pelas mãos dos VVV é negro, industrial e com um toque de cyberpunk, patente nas projecções de videojogos que se viam por detrás da banda. Trazem à mente uns HEALTH menos ruidosos.
As suas batidas mecânicas de caixas de ritmo convidam a um misto entre dança de discoteca e o desprendimento do punk, como o provam a frenética “Invierno Nuclear” ou a apocalíptica “Destrucción”. Depois de um agradecimento ao “melhor festival que se faz em Barcelona em Junho” (ups, Primavera Sound), procedem a tocar a última canção, pois dizem que não lhes pagam para mais. Tudo isto poderia soar desnecessariamente amargo, mas a verdade é que a atitude niilista encaixa que nem uma luva no seu som. A banda tocará no Festival Impulso, nas Caldas da Rainha, ainda esta semana.
Por falar em niilismo, um dos espectáculos mais marcantes que vimos no Sónar foi a apresentação audiovisual “S.A.N.D. (Somatic Acoustic Neolithic Dust)”, de Monira Al Qadiri e Raed Yassin. Partindo de um futuro distópico em que o planeta é assolado por tempestades de areia constantes, Monira lê um texto sobre o dia-a-dia desta sociedade enquanto Raed musica o texto com paisagens sonoras desoladoras. O projecto suscita comparações com a nossa emergência climática pela representação de um apocalipse que chega lentamente, mas também faz críticas à religião e à idolatria sem sentido, representando o desespero de uma sociedade que agiu tarde demais.
Uma das coisas que fica na mente é o facto de as imagens mostradas atrás serem reais — até porque este futuro “imaginado” já acontece em sítios como o Iraque, onde as pessoas vivem debaixo de uma atmosfera pejada de areia 270 dias por ano. Lembram-se das poeiras do Saara? Ainda não é a nossa realidade constante, mas poderá ser. Esta apresentação certamente não será a mais animada para um festival, mas a sua pertinência é incontornável e, de qualquer forma, o Sónar não é um festival como os outros.
É por isso que logo de seguida vemos o “Concert de Músika Festera” de Niño de Elche, uma reinterpretação de concertos de música popular com direito às batidas electrónicas de Ylia e literalmente a uma orquestra (a Banda “La Valenciana”) em palco. O espectáculo desenhado para ser apresentado no Sónar pega na intensidade da música popular e aplica-a a tudo o que ouvimos: as batidas vão beber ao techno mais possante, as trombetas parecem directamente saídas de uma tourada e o flamenco da voz do Niño de Elche transmite uma emoção inigualável. Só não entendemos as constantes quebras na música. Provavelmente tinham uma razão de ser, mas tornavam-se irritantes.
Este concerto é um espaço de ambiguidade sexual, em que toda a gente é peculiar e onde a vida toma a forma de uma discoteca e de um bacanal livre. Representa bem o público do Sónar: variado e com inúmeras expressões de género, livre de viver e existir sem receio de julgamento ou represálias. A organização pretende reforçar essa ideia, através da sinalização de casas de banho livres a pessoas não-binárias e transgénero e da instauração do “Punto Lila”, onde se pretendia combater e alertar o público para o assédio e outro tipo de violência.
Por entre estes espectáculos, ainda houve tempo para uma das novas promessas do trap espanhol: Juicy Bae. Visivelmente desiludida e surpresa pela falta de público no seu concerto, ainda assim dedicou-se à sua performance de canções de ritmos urbanos que soaram surpreendentemente suaves. A produção de trap e reggaeton não costuma ser tão convidativa. Também vimos um showcase de amapiano pela voz e corpo da jovem sul-africana Kamo Mphela, uma estrela em ascensão no seu país. Pelo que vimos, poderá facilmente conquistar muito mais públicos, tendo em conta a energia vibrante da sua música nascida nas townships de Joanesburgo — uma espécie de favelas resultantes do apartheid.
Entretanto, uma curta viagem de comboio separava-nos do Sónar by Night, na Fira Gran Via, já em L’Hospitalet de Llobregat, um subúrbio de Barcelona. O recinto era um complexo massivo de edifícios em que os quatro palcos estavam habilmente distribuídos, de forma a aproveitar ao máximo o espaço sem haver cruzamento de som entre os mesmos. Ainda assim, tamanha área pareceu ser pequena para albergar a enorme chusma de gente que marcou presença na versão nocturna do festival. Faziam-se filas para tudo e mais alguma coisa, revelando alguma falta de staff e de oferta para distribuir melhor o público. Foi a mais gritante falta de organização de um festival que até então havia sido impecável em termos de logística.
O primeiro grande espectáculo do Sónar by Night é o do fenómeno C. Tangana. Cinco anos depois da sua estreia no festival catalão, regressa agora como uma estrela internacional dedicada a apresentar e modernizar os estilos clássicos espanhóis e latinos para as novas gerações. Com isso, revisita também outras tradições, como a de juntar amigos e família à mesa, para comer, beber e cantar em conjunto. É esta “sobremesa” que apresenta ao vivo, aqui num formato ligeiramente reduzido relativamente aos seus concertos em nome próprio. Mesas de restaurante dispostas em palco, empregados de mesa (incluindo um discreto Alizzz, produtor regular de C. Tangana), convidados que vão fazendo as suas aparições, uma banda completa e até o público; todos fazem parte de um espectáculo glorioso, envolvente e dinâmico, filmado em alta resolução como se de um filme se tratasse, passado nos ecrãs gigantes do palco, para que ninguém perca pitada.
A música passa principalmente pelo seu fabuloso disco de 2021, El Madrileño. “Comerte Entera” surge logo no início, aliando o swing da bossa nova às batidas do funk. “Demasiadas Mujeres”, o seu maior hit do momento, teve direito a uma introdução orquestral estendida, tornando ainda mais épica uma canção que parece não deixar de crescer. A mesa mais alta do palco serviu para revisitar “Me Maten” e “Los Tontos” nas versões do maravilhoso Tiny Desk de 2021, evento de coroação de Pucho como o artista do momento. Nathy Peluso, envergando um elegante vestido azul, veio trazer o seu charme à bachata de “Ateo” antes do seu próprio concerto no festival. Há uma sessão de flamenco que parece improvisada, desde a música às letras, passando pelas reacções genuínas de quem está em palco, próximos como se numa pequena bodega andaluza se encontrassem. Enfim, é um concerto mais que completo, uma ode de amor à cultura espanhola e latina que é feita com tanto carinho que não pode deixar de espoletar genuína alegria no público. O artista actuará no Super Bock Super Rock em menos de um mês e podemos garantir que vale a pena vê-lo.
Depois deste concerto que já por si parecia um grande evento, ainda havia muitas coisas para se ver, mas a verdade é que o efeito Tangana perdurou toda a noite, desnorteando-nos um pouco. Vimos a rendição mais latina da argentina Nathy Peluso, pronta para dominar o mundo com viciantes canções como “DELITO”, “VIVIR ASÍ ES MORIR DE AMOR” ou a sua colaboração com o rapper Bizarrap. Noutro espectro, o rapper britânico Headie One atirou-se ao jungle e grime que caracterizam a música feita no Reino Unido. Apesar do curto set, não deixou de se tornar algo repetitivo devidos às batidas sem grandes variações e uma interacção que se limitava a introduzir literalmente todas as canções com “one, two, three, four”. O seu flow é inegável, como prova “Back to Basics”, mas a canção realmente tornou-se mais interessante depois do retratamento do mago Floating Points — revelando assim as debilidades da sua produção.
Os co-cabeças-de-cartaz deste dia eram os Moderat. A verdade é que o seu espectáculo pareceu nunca descolar totalmente, estando num eterno crescendo que não era favorecido por uma qualidade de som abaixo do desejado e que deturpava o sentido melódico que as suas canções costumam ter. Nesse sentido, o Sónar Lisboa foi rei, particularmente considerando a qualidade do sistema de som do Centro de Congressos de Lisboa — espaço similar àquele onde vimos os alemães Moderat.
Numa reviravolta surpreendente, foi o concerto ao vivo de Bonobo que levou a melhor quando comparado com os massivos Moderat. A sua música, que tem tendência a virar-se para o ambiente ou até música de festas de piscina, ganhou muita potência graças a um baixo pujante que ancorava as batidas e impelia a dançar. Isto foi particularmente notório no seu maior sucesso, “Cirrus”, que transcendeu o seu estatuto de chill-out e arrancou-nos do estado de marasmo em que tínhamos ficado devido aos 3 C’s: o calor, o cansaço e o C. Tangana. Debaixo de uma Lua quase cheia, a longa “Outlier” populou-se dos sintetizadores rodopiantes que a caracterizam, mas chamou principalmente a atenção pela acerbidade do seu outro distorcido, aqui tocado em versão clubbing de 3 da manhã.
Antes de fechar a loja, havia ainda um dos DJs mais entusiasmantes e subvalorizados para se ver. A retirada do catálogo de Skee Mask do Spotify conferiu-lhe um estatuto de respeito na cultura clubbing, algo que já era potenciado pelos seus lançamentos, nomeadamente o tremendo disco de 2018, Compro. O produtor de Munique apresentou um set bem à sua medida, sempre com elevadas octanas e sem nunca acusar falhas ou quebras de energia. É delirante como Bryan Müller consegue manter o seguimento nas transições entre breakbeats nervosos e batidas mais constantes — é difícil de explicar, mas esta canção representa-o na perfeição.
Após um parco descanso, o regresso ao Sónar by Day para a despedida foi como um bálsamo depois da noite caótica do dia do meio. O alinhamento também contribuiu para isso, começando com um dos melhores e mais agradáveis concertos que vimos nos últimos anos: o de Eli Keszler. Com apenas um kit de bateria e alguns sons pré-gravados de sopros e sintetizador, o americano deu um espectáculo mágico composto por uma única peça musical que se ia transformando delicadamente, como uma improvisação de jazz. Atrás de si, imagens amadoras de cenas do dia-a-dia quase que oficializavam a sua música como a banda sonora de uma marcha do quotidiano, marcada por sons reconfortantes e ritmos intrincados e inesperados, emulando a complexidade da vida. O som envolvente e as luzes pachorrentas contribuíam para uma atmosfera de tranquilidade, sentida no pouco público que teve o privilégio de assistir a algo assim.
Sair para a luz e calor de Barcelona foi quase chocante, mas felizmente a voz frágil e espiralada de Josiah Wise, mais conhecido como serpentwithfeet, manteve um certo feitiço conjurado por Eli Keszler. Atirando-se a uma cover de Stevie Wonder e ao seu R&B experimental, a sua música soou envolvente como em disco e a sua personalidade calorosa ajudou a que rapidamente nos tornássemos amigos, agradecendo-nos na última canção do concerto, “Fellowship”.
Infelizmente tivemos pouco tempo de contacto com ele, mas ficámos para o espectáculo “Hiperutopia”, criado por Maria Arnal i Marcel Bagés, que estavam a jogar em casa. Isso notou-se na sala bem cheia que os recebeu, se bem que o público esteve particularmente barulhento. A verdade é que a avant-pop angulosa e experimental do duo catalão não deverá ser o estilo preferido do público do Sónar e talvez merecesse um espaço mais formal, mas o espectáculo à “American Utopia”, de David Byrne, tem tudo a ver com o experimentalismo do festival e concentra em si a energia necessária para encher o palco. Um coro de vozes quebrava a rigidez da chamada música erudita, movendo as mãos e serpenteando-se de forma progressivamente mais solta, até ao catártico final ancorado por uma batida techno intensa. Será a hiperutopia titular a festa e a libertação do corpo?
Até lá, o duo apresentou maioritariamente as canções de CLAMOR, o seu aclamado último álbum, com destaque para a feroz “Fiera de Mí”, a paranóica “Ventura” e a experimentação vocal de “Cant de la Sibil·la”, inspirada no canto gregoriano que se mantém muito presente na tradição catalã. Para esta última, usaram uma foto de Holly Herndon como pano de fundo, ela que faz parte da versão em estúdio.
Um dos espaços que ainda não havíamos visitado no festival era o SónarMatica, uma área curada pela Tezos e dedicada à criptoarte, instalações audiovisuais e à realidade virtual (RV). Ironicamente, muitas das peças alertavam para os perigos ecológicos das tecnologias, como o consumo de energia e geração de CO2 dos NFTs (“NAN (Not an NFT)”, do Barcelona Supercomputing Centre) ou o lixo visual e impacto ambiental das cookies da Internet (“Carbolytics”, de Joana Moll). Em termos de RV, destacamos a fabulosa experiência “Samsara”, de Hsin-Chien Huang, em que nos colocamos na pele de um sobrevivente de um apocalipse nuclear em busca de um novo planeta para habitar. É tecnicamente impressionante, para além de narrativamente cativante.
Para nos despedirmos do recinto diurno, ainda dançámos com DJ Python (que vimos pela terceira vez em duas semanas) e o seu set híbrido de house, techno e reggaeton, muito celebrado pelo público. Para terminar, o grupo italiano Nu Genea trouxe um cheirinho de Nápoles a Barcelona. O seu último álbum, Bar Mediterraneo, é uma delícia de funk, jazz e música popular. Ao vivo, a banda manteve um espírito animado e contagiante, impossível de evitar quando se tocam canções como “Marechià” ou “Vesuvio”. Os Nu Genea darão um concerto no Festival Paredes de Coura, em Agosto.
Já no recinto de noite, o nome maior era o dos Chemical Brothers, que levaram um imponente espectáculo audiovisual, com projecções dinâmicas e divertidas, balões e até os dois gigantes robôs sempre usados para enriquecer a clássica “Under the Influence”. O início do concerto foi bem forte, com longas versões de alguns clássicos (“Hey Boy Hey Girl” foi logo tocada no início”) e de músicas do mais recente No Geography, como o strut de “Got to Keep On” ou a mecânica “Eve of Destruction”. Cada canção era introduzida de forma épica e desenvolvida com os drops no ponto certo, desenhados para levar o público ao delírio — o que realmente aconteceu.
No entanto, à medida que avançávamos no concerto, as técnicas repetiam-se e parecia que a satisfação do início já não se atingia tão facilmente. Para além disso, com o tempo a esgotar-se, notámos a entrada num modo de rapsódia. Singles dos anos 2000 foram tocados em mini-versões (como “Do It Again” ou a incontornável “Galvanize”, começada já no meio da ponte da canção, perdendo grande parte da sua força). Outros foram completamente ignorados, como as fabulosas “Believe”, “The Boxer” ou “The Salmon Dance”. Claro que não havia tempo para tudo, tendo em conta a larga carreira dos Chemical Brothers, mas o final apressado deixou um sabor agridoce particularmente considerando a primeira metade potente.
Já a terminar, apanhámos o final de mais um set da venezuelana Arca. Tendo em conta as suas enormes capacidades de produtora pioneira, chegamos sempre aos seus espectáculos com a esperança de sermos arrebatados. No entanto, a sensação que fica é a de que falta algo. Parece que o set procura mais os momentos “yas queen” do que realmente criar uma experiência coerente e musicalmente interessante. Ouvimos uma canção latina acelerada, um techno hiper-rápido e, num momento abrupto, uma improvisação em piano que lembrou as texturas de Mutant, de 2015, mas de forma tosca e francamente não muito bem preparada.
Para fechar o festival, o alinhamento foi bem mais focado em géneros musicais que caracterizam o festival, nomeadamente no hard techno e no acid que normalmente são usados para fechar as noites de discoteca com intensidade característica. Houve muitos representantes dessa corrente, como a apocalíptica Helena Hauff; o duo inglês que normalmente mistura punk, noise e techno mas aqui voltou-se para o clubbing puro e duro, Giant Swan; a sensação holandesa Reinier Zonneveld, que criou as batidas mais desenfreadas do festival ao vivo; e a favorita do público, a belga Charlotte de Witte, cujo satisfatório set foi virtualmente igual ao de Lisboa, mas sem o condão do som perfeito que já mencionámos termos ouvido no Centro de Congressos de Lisboa.
No final, com as pernas em papa e ouvidos a zumbir, mas de coração cheio, vemos o anúncio da celebração do 30.º aniversário do Sónar Barcelona em 2023, entre os dias 15 e 17 de Junho. Tendo em conta a riqueza de tudo o que vivemos este ano, não temos dúvidas de que a edição de aniversário será ainda mais especial. Da nossa parte, estaremos de volta. Até lá, vemo-nos no Sónar Lisboa, entre 31 de Março e 2 de Abril.