‘Viagem ao Sonho Americano’, através de livros fundamentais na literatura americana

por Miguel Fernandes Duarte,    30 Agosto, 2017
‘Viagem ao Sonho Americano’, através de livros fundamentais na literatura americana

Todas as narrativas acerca dos Estados Unidos da América acabam inevitavelmente por ir dar ao Sonho Americano, a noção de que um futuro próspero está à tua frente se te esforçares e trabalhares no duro. De que, não importa o teu passado, para poderes prosperar no país de todas as possibilidades. Inegavelmente ligada à ideia de migração, uma saída do local onde crescemos, em direcção a uma terra desconhecida, à procura de sucesso, o Sonho Americano está na fundação daquele que é, ainda hoje, provavelmente o mais poderoso país do mundo.

Isabel Lucas, jornalista do jornal Público, esteve durante cerca de um ano a viajar por este país, num projecto apelidado A América pelos Livros, consistindo numa reportagem por cada um dos doze meses do ano dedicada a uma geografia específica do país, partindo de uma obra literária que a esta geografia estivesse associada. Esses doze artigos, reportagens com sabor ensaístico, foram agora agrupadas e publicadas em formato livro com o nome de Viagem ao Sonho Americano, pela Companhia das Letras, juntando, aos textos publicados no Público (o primeiro no dia 1 de Maio de 2016, o último dia 2 de Abril de 2017), pequenos apontamentos ao longo da viagem, em jeito diarístico, que encerram, em poucas frases, pensamentos e relatos de Isabel Lucas em relação ao que se vai passando no seu dia-a-dia.

Os livros escolhidos para encabeçar cada um dos artigos vão desde clássicos da literatura americana do séc. XIX, como Moby Dick, de Herman Melville – que nos leva a New Bedford e à Nova Inglaterra -, a clássicos do séc. XX, como A Pastoral Americana, de Philip Roth – a herança judia de New Jersey -, ou A Piada Infinita, de David Foster Wallace – a modernidade, o entretenimento, Boston mas também a Califórnia -, a livros já deste séc. XXI, como A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao, de Junot Díaz, que, num texto onde é protagonista ao mesmo tempo que Beloved, de Toni Morrison, é usado para colocar o foco nas comunidades minoritárias, nomeadamente a hispânica e a afro-americana. Com eles vamos seguindo pelas costas este e oeste, pelo Alaska, pelo Midwest, pela zona fronteiriça com o México, quase tudo o que há para visitar neste país de dimensões enormes e de ainda maior diversidade. Infelizmente, mesmo estando essa diversidade nas fundações do próprio país, esta parece ser, para alguns, problemática e limitadora de um estilo de vida que, dado como garantido por uma parte da população, na realidade nunca existiu. A verdadeira maneira americana de viver, no fundo, não poderá ser nada se não aquilo que os diferentes grupos de imigrantes, vindos de todo o lado do mundo, formaram à volta da ideia de sonho americano.

Quase sempre usando também as estatísticas para nos situar nas condições socioeconómicas do estado ou cidade em questão, Isabel Lucas constrói, à volta de obras fundamentais da literatura americana, uma narrativa de sobrevivência, explorando e sublinhando os obstáculos (por entre a beleza) que marcam as vidas de quem habita nos Estados Unidos da América. Mais do que perceber o que motiva quem escreve as ditas obras literárias, interessa perceber o que motiva quem vive, formar um atlas literário, mas, acima de tudo, de vivências, questionar em que medida o que é escrito se aproxima à realidade. Dada a existência deste plano geográfico, às vezes, sente-se a falta de um mapa que, no início de cada texto, ajudasse na visualização espacial da zona dos EUA onde o foco está a incidir, sem ter de recorrer a outros meios, como a internet, para o fazer.

O momento para este projecto não podia, portanto, ser mais expressivo, com os artigos a serem feitos e publicados à medida que as eleições americanas progrediam, desde as primárias de ambos os partidos Democrata e Republicano, à tão infame eleição de 8 de Novembro, que viu Donald Trump subir à Presidência dos Estados Unidos da América. Não sendo o principal foco dos artigos, que estão acima de tudo preocupados em caracterizar a vida naquelas regiões, à boleia do que a autora vai observando e dos livros que descrevem o que por ali se passa ou passou, é interessantíssimo verificar como o tema das eleições se vai imiscuindo à medida que vamos avançando no livro e, portanto, na linha temporal, já que estão dispostos cronologicamente. De pequenos apontamentos em relação aos diferentes candidatos e à forma como isso é acompanhado (ou não) pelos locais, passamos ao desespero pelo resultado final e às interrogações que se espalharam por tantos (“como foi isto possível?”) e os esboços de resposta possíveis dos que escolhem falar sobre isso, obrigados a fazê-lo, acima de tudo, para tentar justificar a si próprios o cenário que se lhes afigura à frente. Muitos se arrependem de não terem votado por terem achado não ser necessário, outros vêm em Donald Trump a única maneira de abanar o establishment, simbolizando por Hillary Clinton.

O que todos os que habitam neste país têm em comum, não interessando o quão diferente é a vida no Alaska daquela que se tem em Nova Iorque, é uma certa crença no valor do próprio trabalho. Mesmo que seja agora visível o seu fundo decadente, num dos países com maior desigualdade do mundo, e mesmo que,  como afirma Richard Ford a certa altura quando fala com Isabel Lucas, seja uma criação europeia, é inegável que, num país completamente dividido com a eleição de Donald Trump, o que acabe por ligar todos, seja a ideia de Sonho Americano.

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