Vizela pelos sinuosos caminhos da autonomia
“Vens a minha casa e conversamos sobre essa coisa com “C” grande.” Num primeiro contacto – através de uma chamada telefónica – Francisco Ferreira, primeiro presidente da Câmara Municipal de Vizela, acedeu prontamente ao convite. Descerradas as portas da sua casa, instalou-se no sofá e perguntou se alguém me tinha posto a par do momento da criação do concelho. Respondi que não. Recostado na almofada, de perna cruzada, sublinhou que Vizela só foi concelho porque a parte política foi devida e habilmente contornada. “O truque era arranjar outro partido que votasse a favor, porque o António Guterres já tinha prometido. Aqui, foi preciso fazer trabalho político”.
O ato de privar com Francisco Assis e com José Junqueiro – líder da bancada parlamentar do Partido Socialista (PS) e antigo presidente da Comissão do Poder Local e da distrital de Viseu, respetivamente – acelerou a condecoração esperada há anos. Francisco Ferreira deslocou-se, por diversas vezes, a Amarante e a Viseu a fim de apontar e propelir balas para o alvo da amizade. A caça era o desporto agregador. O almoço ou o jantar, juntamente com as esposas, transformou a ocasião em compromisso quase semanal.
O colóquio deu lugar ao desabafo e o dia 16 de julho de 1997 foi pincelado, não olvidando qualquer linha ou contorno digno de registo. “Na altura, o PS tinha 150 deputados. Ele disse que Vizela não seria concelho antes das eleições porque já se tinha comprometido com o presidente da Câmara de Guimarães. As eleições eram em outubro. Aí, num dos chumbos, o PS votou contra e o PSD absteve-se, tipo hiena. Ainda fui à sede do PSD com o meu tio, mas de nada serviu. Até prometemos uma Câmara…”. De repente, perfurando o embevecimento mental e o raciocínio relâmpago, divulgou uma informação que diz ser secreta. “Passado um ano, fomos à sede do PS falar com o Jorge Coelho, o número dois. Ele disse “palavra de Jorge Coelho, Vizela vai ser concelho”. No dia 8 de março, a um domingo, eu e o Domingos Pedrosa fomos a Lisboa. Isto ninguém sabe”.
Seguiu-se o telefonema de Francisco Assis e a promessa de uma reunião com Manuel Monteiro e Maria José Nogueira Pinto. Ficou tudo agendado para dia 10 de março de 1998. “O individuo do PSD saiu da reunião porque cumpria ordens do Eurico de Melo e do Fernando Alberto. Mesmo este Marques Mendes era contra nós, afilhado do Fernando Alberto na política. Ficou agendado para quinta-feira o plenário para a criação do concelho. Ligaram-me e eu fiquei tolo.”
Inicialmente, o concelho de Vizela estava edificado com nove freguesias: Santa Eulália, Santo Adrião, Tagilde, São Miguel, São João, São Paio, Barrosas, Infias e Regilde. Contudo, a alteração à Lei-Quadro proposta pelo CDS-PP, PS e PCP aprovou os 24 quilómetros quadrados (ao invés dos 30) exigíveis e a cedência perante a pressão exercida pela Câmara de Felgueiras diminuíram para sete as freguesias integrantes do concelho, excetuando Barrosas e Regilde.
“Voltamos já! Fomos buscar o concelho”. A grande maioria dos estabelecimentos da cidade de Vizela, a 19 de março de 1998, tinha inscrito na sua porta de entrada o bordão descrito. Em letras garrafais, o semanário extinto Notícias de Vizela edificava a sua capa 27 de março de 1998. “VENCEMOS!”. O país não ficou indiferente e até Amália Rodrigues autografou bandeiras. António Guterres, à altura primeiro-ministro, cumpriu a promessa realizada nas instalações da AMAVE. Manuel Monteiro, antigo líder do CDS-PP, reverteu a situação e foi herói só para alguns. Foi preciso fazer política. E ser persistente.
O reconhecimento estava alcançado. A vontade generalizada de uma população concretizada em sucesso e a independência política, económica, social e cultural de Guimarães alicerçada. Era tempo de instalar todos os mecanismos e ferramentas úteis ao funcionamento do novo concelho. Para que tal se verificasse, nada melhor do que uma equipa designada por Comissão Instaladora composta por um elemento do MRCV, três do Partido Socialista (PS) e um do Partido Social-Democrata (PSD). Nesse período, Francisco Ferreira experimentou a encarnação em D. João I, Mestre de Avis. ” Inclusive eu depois até fui “empurrado” porque na sede do PS o Jorge Coelho perguntou se tinham um bom candidato à Câmara e apontaram todos para mim. Era médico popular e tinha visibilidade. Tinha muito capital e, se concorresse, ganhava as eleições. Eu disse que alinhava. Na altura tinha uma fábrica, era médico e tinha a minha clínica. Eu ia ser o presidente da CI e escolhi dois nomes, mas mal chegou a Braga foi tudo alterado. Eu disse que não alinhava com aquilo. Mandaram para Lisboa o meu nome e mais dois. Ninguém aprovou a lista por não constar o meu nome. Aqui em Vizela, havia uma fação do PS contra mim. O Dinis Costa e essa malta. À 00:00H, ligou-me o Francisco Assis e eu disse-lhe que não alinhava com quaisquer pessoas. No dia seguinte, telefonou-me o António José Seguro a pedir uma solução porque tinha de aceitar um elemento da outra parte e eu disse que da minha parte colocavam o Joaquim Costa e da outra parte o senhor Pedro Marques. Resolveu-se assim”.
Para o antigo médico [Francisco Ferreira], a preponderância e o ímpeto do Movimento da Restauração para o Concelho de Vizela (MRCV) e do grupo da PESADA são aspetos inegáveis durante o processo autonómico de Vizela, quer na mobilização da população quer no desencadear de ações capazes de solicitar a vinda da comunicação social à região. Contudo, colocou freio na atribuição de “pai do concelho” a Manuel Monteiro ou a Manuel Campelos: “O pai do concelho não foi o Manuel Monteiro porque o CDS só tinha dez deputados. Vizela foi concelho com os votos do PS, PCP e CDS. Além disso, O Manuel Campelos também não pode ser o pai do concelho. Foi, sim, a pessoa que mais lutou. Efeitos práticos disso? Não teve”. Vincou o contorno político, dobrando milimetricamente as mangas de cada um dos lados da camisa que vestia.
Nas instalações do Pão de Ló Delícia, Joaquim Lopes Vaz conduziu a conversa para a sala da conspiração (por si designada) já que aí se realizaram as reuniões do Movimento para a Restauração do Concelho de Vizela (MRCV) durante vários anos. Sob a sua asa, constavam documentos relativos à cidade e ao respetivo processo da luta autonómica. Chegado a uma mesa abeirada de uma janela, sentou-se, baixou a persiana pela pirraça que a luz solar lhe causou, sorriu e prometeu acrescentar “verdade” e “objetividade”.
Na política, caso tivesse que escolher um ídolo, incidia sobre Olof Palme. Afirmou ser social-democrata por causa do líder sueco. A lágrima no canto do olho teimava em não escorrer pelo semblante. E, comovido pela lembrança, declarou que era o próprio que recebia os emigrantes quando estes andavam a desertar pela fronteira. Contudo, na peleja encabeçada por Vizela, abraçou e abeirou-se junto da postura e do discurso unidirecional do Partido Comunista Português (PCP) por ter sido “o melhor partido de todos a trabalhar e a colaborar com a criação do concelho e por ter feito propostas que ninguém fez”: segundo o empresário, Manuel Campelos podia ter subido à Assembleia da República pelo partido sempre que se falasse da questão vizelense e, após a criação do concelho, o PCP propunha que um elemento do MRCV integrasse a Comissão Instaladora. “O PSD estava no polo oposto da luta”, dizia.
A sala da conspiração acolheu a primeira reminiscência da criação do concelho de Vizela e Manuel Ribas foi o autor escolhido para que se iniciasse o flashback em catadupa. Com a voz embargada, Joaquim Lopes Vaz reproduziu: “Vizela foi concelho até 1408 e durante 50 anos. Mas, não se sabe porquê, ou a história não diz, deixou de o ser”; referiu o primeiro pedido realizado na colheita do salazarismo ao Ministério do Interior no Governador Civil de Braga a 27 de outubro de 1964, franziu com um olhar a data de criação do MRCV datada de 8 de julho de 1965 e esboçou um sorriso amarelo assim que lembrou a tentativa de englobar Vizela nos limites da cidade de Guimarães no ano de 1970. Aos olhos de Manuel Campelos, na obra A luta autonómica de Vizela na última década do regime de Salazar, a jurisdição instituída antes de 1974 quis tapar “o sol com a peneira das pretensões vizelenses” e resolveu aceder ao pedido de Manuel Campelos dirigido ao general Spínola para que designasse por “Nova Vizela” uma região da Guiné. A mudança de regime viria a resolver a questão, mas apenas quando a democracia roçava as bodas de prata. Até aí, “muita água correu debaixo da ponte” e “o período pós-PREC, nomeadamente o início dos anos 80, foi conturbado para quem lutou pela autonomia e independência de Vizela em relação à cidade de Guimarães.
Aos seus olhos, Manuel Monteiro e o CDS foram os promotores da criação da vontade de todos os vizelenses: a alínea que impedia a criação do concelho de Vizela foi eliminada da lei-quadro graças ao esforço conjunto de Gonçalo Ribeiro e Ismael Pimentel. Francisco Assis só apareceu na luta autonómica apenas quando a contenda estava assegurada. Depois, repartiu louvores pelo MRCV e pela sua capacidade de administração política, pela PESADA e pelas ações desencadeadas ao longo de todo o processo, pela imprensa nomeadamente ao ex-presidente da RTP, José da Silva, e pela capacidade de sofrimento do povo vizelense.
Como membro do MRCV, Joaquim Lopes Vaz exaltou o grupo pela capacidade de trabalho e de organização. A sua fala calcorreou mais uns metros e veio à baila um “espírito parasitário, mas sem maldade” porque o tempo impelia ao (re)aproveitamento todo e qualquer material ou dizer para estremecer as psiques da região do Vale de Vizela, relatou a concessão do código-postal a cada uma das freguesias abrangidas pela região como a primeira conquista de um abril distinto e de menor dimensão e lembrou que Manuel Campelos foi o “burro de carga apenas porque liderava e era o rosto de uma equipa persistente, apesar dos pontos altos e baixos que se viveram ao longo do período do processo autonómico”. A incompreensão cobriu o seu semblante quando posicionou a importância do grupo PESADA na luta de Vizela. “A Pesada agia em conformidade e em dependência do MRCV. O MRCV nunca foi reconhecido, enquanto a Pesada já foi”.
Porém, deixou escapar a mágoa sentida relativa às freguesias integrantes do Vale de Vizela que não quiserem fazer parte do processo autonómico. “Em Moreira de Cónegos, tanto se estava dentro como fora do processo de Vizela. Se Guimarães ajudasse e construísse umas coisas para lá, Moreira de Cónegos estava do lado deles. Se demorasse ou faltasse à palavra, ameaçava pertencer a Vizela. Em Vilarinho, Costa Andrade (ex-AD) era a favor da criação de concelho. Contudo, quando a junta mudou e ganhou o PC, o líder disse que tinha de proceder de modo antagónico ao antecessor. Portanto, Vilarinho não integrou o processo de Vizela. Quanto a Barrosas, foi estupidez pura. Barrosas está a 12 quilómetros de Lousada. Só tinha transporte de 15 em 15 dias por altura da feira e tinha que se apanhar a camioneta no Mosteiro, em Felgueiras. Absurdo!”.
José Manuel Couto apanhou-me num banco pregado à calçada da Praça da República. Fez sinal de luzes com a carrinha de trabalho por si designada e conduziu em direção à sua oficina. Estacionou-a junto de um portão vermelho, deixou a porta percorrer o seu destino e abriu a mala. De lá, retirou uma caixa de cartão à semelhança daquelas residentes em mercados pequenos e pediu-me que segurasse naquilo enquanto destrancava a fechadura. Consequentemente, adentrou pelo seu escritório num movimento apressado, depositou a caixa em cima de uma mesa, pegou nos documentos que ocupavam a pole position e leu-os atentamente. À medida que a leitura se efetuava, assenhoreava-se de si um turbilhão de lembranças e histórias por narrar. “Em 1980, junto do antigo cinema, Mário Soares disse em Vizela que era o advogado de defesa número um. E depois virou-nos as costas. O mesmo Mário Soares que nos fugiu numa feira em Lisboa. Tentaram falar com ele, mas mandou falar sempre com o Governador Civil de Braga”.
Em 1981, o Partido Popular Monárquico (PPM), liderado por Gonçalo Ribeiro Telles, apresentou na Assembleia da República um Projeto-Lei relativo à criação do Município de Vizela. “Quando o PPM começou a avançar com o projeto, o Freitas do Amaral falou com o António Monis (advogado e membro do MRCV) num jantar em Lisboa”, declarou Joaquim Lopes Vaz num esgar sintomático de discrição e sigilo. As partículas de suor interromperam mais uma confissão, obrigando-me a acelerar o passo na demanda de uma garrafa de água. Regressei à cadeira da sala da conspiração e o diálogo foi prontamente imitado:
Diogo Freitas do Amaral – Ó Dr. António Moniz, eu sei que você está com aquela coisa de Vizela, mas eu fiz uma promessa ao meu pai de que estaria sempre contra. E, não queria de deixar cumprir a promessa. Queria que o senhor desistisse disso.
António Moniz – Eu também fiz muitas promessas ao meu pai no que diz respeito a terrenos baldios. Mas existe uma grande diferença entre nós: enquanto eu fiz promessas à minha custa, você fez promessas à custa do povo de Vizela.
Diogo Freitas do Amaral – Já agora, até lhe digo mais… Vizela só será concelho por cima do meu cadáver!
José Manuel Couto encerrou o capítulo que comportava a presença do líder mais carismático do Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP) com a menção de um funeral simbólico realizado pelo grupo da Pesada. Com direito a caixão e cortejo. Contudo, absorto por aquele que parecia ser um livro que se devora num ápice, folheou a conversa rumo a outro capítulo: o da luta de rua perpetrada pelo povo de Vizela e das mobilizações/ações desencadeadas durante todo o processo que concerniu à luta autonómica da cidade minhota, exemplificando de várias formas as tentativas, mais ou menos frutíferas, de levar avante e de vencida a casta política de Portugal dos anos 80 e 90 do século XX. “Os políticos deste país ignoraram algo extremamente importante neste grupo da PESADA: nós estávamos na casa dos 30 e dos 40 anos, tínhamos feito o serviço militar há pouco tempo: havia pessoas ligadas aos comandos, aos rangers, atiradores, sapadores. Eu tinha o curso de minas e armadilhas. Nós tivemos preparação militar antes de irmos para Angola, Guiné ou Moçambique. Foi extremamente útil. A força policial e os políticos desvalorizaram-nos. Ficamos contentes, na verdade”.
O episódio mais hilário – por si classificado e presenciado – não tem data na memória pessoal. Talvez porque a psique tivesse sido inundada, desde o momento da criação do município de Vizela, por uma alegria refletida no brilho do seu olhar. O pequeno empresário pertenceu a uma fação do grupo da PESADA que furtou a pasta da cobrança da água proveniente de Guimarães. Da água, para que não restem dúvidas. “Existia um senhor de Vizela a fazer a cobrança da água pelas ruas da cidade. Era funcionário da Câmara de Guimarães e entregava lá o dinheiro que recolhia diariamente. Uma vez, à entrada do antigo hospital de Vizela, apanhamo-lo e roubamos-lhe a pasta das cobranças. Tinha dinheiro e documentos. Dissemos que a partir daquele dia não entrava mais dinheiro vizelense em Guimarães. Entregamos a um elemento da junta de freguesia. Depois, a Câmara começou a mandar cartas às pessoas. Tomávamos posições radicais”.
A caixa que continha os seus documentos pessoais, os recortes de jornais, as fotografias que retratavam fielmente a época e alguns exemplares dos comunicados efetuados pelo grupo da PESADA durante esse período foi remexida vezes sem conta à medida dos dizeres, quase como se ainda sentisse uma inquietação diminuta ao relembrar tempos de alvoroço com letra capital. Apesar disso, José Manuel Couto não perdeu o ritmo e pedalou em marcha-atrás, até 1982”. A 30 de abril de 1982, na AR, o PSD e o CDS retiraram-se do hemiciclo por forma a provocar a falta de quórum para a questão de Vizela. A 11 de maio de 1982, a questão de Vizela voltou ao Parlamento e perdemos apenas por 11 votos. Foi-nos dito que Vizela seria concelho quando a regionalização estivesse concluída. Ora, ainda hoje não existe regionalização. Imagine se estivéssemos à espera este tempo todo… era uma forma de atirar para as calendas gregas a questão de Vizela. Depois, criaram uma lei-quadro para regulamentar os municípios. Mas nós não desistimos!”.
Os papéis estavam firmados à sua mão. Um martelo e meia dúzia de pregos, provavelmente, prendiam com menor segurança qualquer objeto na parede. E continuou:
“No dia 1 de maio de 1982, a seguir à primeira votação, eu fiz uma chave de desapertar os parafusos dos carris dos caminhos de ferro. Ali junto à fábrica do Varela Pinto. Por volta da uma da manhã, já tínhamos desapertado quase tudo. Veio a GNR e o falecido cabo Bernardo que era o responsável pelo posto, mas nós fugimos. No dia seguinte, constou-se logo que a linha estava impedida e que tinha sido obra nossa. Isso foi o mote para o que acontecera no dia 11”.
Francisco Sousa Tavares, à altura líder da bancada parlamentar do Partido Social Democrata (PSD), interrompeu o debate que decorria na Assembleia da República e prometeu a realização da Lei-Quadro para a Criação de Municípios num prazo de 60 dias. O mote foi lançado e serviu de rastilho para que se incendiasse o Parlamento.
“No dia 11 de maio de 1982, quando perdemos por 11 votos, fizemos trinta por uma linha lá dentro. Moedas, sapatos, relógios foram atirados aos deputados. Houve um que se quis atirar lá abaixo. No interior da AR, toda a gente que estava nas galerias partiu tudo. Até nas casas de banho. A água escorria pelo chão. Rebentamos a canalização. Cá fora, ainda tivemos um desaguisado com dois deputados do PSD. Um saiu com o maxilar partido e com o passo acertado. No dia 12, quando regressamos de Lisboa, o povo levantou a linha em direção a Guimarães e a Moreira de Cónegos com o comboio retido em Vizela”.
A “malta do PCP” disse inúmeras vezes a Joaquim Lopes Vaz que, pelo partido, tinha tudo tratado e mais do que resolvido, mas que necessitava de falar com os outros [partidos]. O engenheiro Eurico de Melo e Fernando Alberto Ribeiro da Silva não só pertenciam ao PSD, como eram figuras proeminentes e de elevada influência no seio do partido: por essa razão, constituíam os principais óbices à criação do concelho de Vizela. “O poder político em Lisboa estava, de certa forma, controlado. O PSD e o CDS-PP estiveram sempre contra a nossa luta. Digo isto com muita mágoa porque a minha ideologia resvala na social-democracia, embora não me reveja no PSD atual e também pela questão de Vizela. Todos aqueles que foram presidentes do PSD estavam subjugados a Guimarães. Quem estava no PSD de Guimarães? Era o Fernando Alberto Ribeiro da Silva (Governador Civil de Braga) e esse tocava o Engenheiro Eurico de Melo que mandava quase tanto como um Sá Carneiro, um Cavaco Silva ou um Durão Barroso. Eles diziam que Vizela não avançaria e eles não avançavam. A lei-quadro, como já lhe disse, era um mecanismo dos opositores”, sintetizou o ex-membro.
José Manuel Couto parecia ter acionado o botão que o desinibia o amarfanhar dos papéis. A documentação e toda a parafernália de registos foi depositado, de vez, na caixa pertencente enquanto a cabeça disparava balas enformadas em memórias de um tempo longínquo e que visavam os três “ódios de estimação” eternos das pessoas que pretendiam a emancipação vizelense do Município de Guimarães. “Uma vez também, o governador civil de Braga disse que se imolava pelo fogo se Vizela fosse concelho. Então, a PESADA pensou em colocar um bidão com 200L de gasolina e uma caixa de fósforos. Ainda bem que desistimos da ideia, porque podia aparecer alguém que nada tivesse que ver com aquilo e ferisse pessoas inocentes. Também fizemos um enterro simbólico ao Freitas do Amaral na Praça. Dois grupos de Vizela, na Póvoa de Varzim, tentaram raptar o Eurico de Melo. Com elementos da PESADA também”.
Naquele pequeno cubículo [no interior da oficina] parecia não correr uma ponta de ar. Contudo, o calor não abafava as palavras que adornavam, sem muito esforço, o cálido e tórrido agosto de 1982. Vizela foi fogo que ardeu e que se contemplou, para desgraça de alguns. “No dia 5 de agosto, mandaram carros blindados e homens a cavalo para amedrontar a população. Abriram fogo. Atiraram granadas de gases lacrimogéneos. Mas não adiantou nada. Em frente ao edifício de turismo, existia uma bomba de gasolina. Estavam lá uma série de motas e eu entrei por lá fora. Onde tem agora a imobiliária, era um café. Entrei e fui buscar garrafas vazias para fazer cocktails molotovs. A bomba estava fechada. Comecei a tirar a gasolina das motas. Estivemos entrincheirados perto da passagem de nível para atacar a GNR. Atacamos. Eles vieram por cima e, de G3, abriram fogo. Estávamos metidos dentro de uma casa. Houve feridos. Mesmo aí, não desistimos. E, no dia 27, chegou uma carrinha pão de forma junto de um grupo da PESADA que atiramos à linha para o comboio não passar. Naquele mês de agosto, a vila esteve em estado de sítio. Esteve”.
Setembro trouxe o impensável e a segunda vaga da maior estirpe da diplomacia a Vizela: o Vice-cônsul dos Estados Unidos da América (EUA) visitou Portugal, a pedido de Ronald Reagan, com a pretensão de entender a reivindicação de Vizela e sob o pretexto de que poderia ter implicações na vida e segurança da nação. “Quando colocamos a forca, os incidentes da GNR, a colocação da bandeira americana, os boicotes e tudo isso, o presidente dos EUA enviou o Vice-Cônsul no Porto inteirar-se da situação de Vizela. Nessa altura, existiam duas forças: as da NATO e o Pacto de Varsóvia. E, sabendo que Portugal constituía um ponto estratégico do ponto de vista político-militar pela Base das Lajes no caso de um conflito, queria saber se a revolução que estava a acontecer era manobra de comunistas. O caso de Vizela mexeu com o presidente dos EUA! Imagine…”.
Para dezembro do longínquo ano de 1982, ficou traçado no horizonte vizelense a marcação de eleições autárquicas. Motivada pela agitação da tarja “sem concelho, não há eleições” e pelo ribombar dos sinos e das sirenes, milhares de civis correram em direção ao jardim público e trataram de sepultar o ato eleitoral que faria o município de Guimarães esfregar as mãos de contentamento. “Também houve boicote às eleições nesse ano, em novembro ou dezembro. Destruímos as urnas. Voltaram-se a marcar eleições na semana seguinte. Pusemos a sirene a tocar, os sinos a rebate e a população veio para a rua. Destruíram tudo. Remarcaram-se eleições novamente. Aí, pegamos na sirene, colocamo-la junto da Caixa Geral de Depósitos, lá no alto. Fomos ter com os jornalistas ao hotel Sul-Americano e eles estavam a jantar. Estavam lá os jornalistas Carlos Magno e Afonso Camões, que muito admiro. E pedimos que não fotografassem individualmente para não incriminar ninguém. O Carlos Magno perguntou se íamos fazer eleições no dia seguinte e eu disse que não existiriam eleições em Vizela até à criação do concelho. Ele inquiriu-me sobre o porquê e eu respondi-lhe “porque o Governador Civil de Braga já disse que se existir boicote amanhã, se demite. Então, fica já demitido por natureza. Nessa madrugada, a partir da 01:30h, Vizela ficou sitiada com forças da GNR. De Moreira de Cónegos, de Paços de Ferreira. Vieram pelo lado de Lagoas para se fazerem as eleições. Às 07:30h, a sirene tocou e povo aglomerou-se na rua. Eu estava a passar no hotel, curiosamente, e vi jornalistas a correr, ainda com as calças por atacar, para apanhar os melhores momentos. Vencemos, porque ele se demitiu. Depois desse boicote, fizemos um magusto na praça e andávamos a servir as castanhas com as urnas. Mas, antes disso, houve uma reunião no edifício do turismo, chamou-se o comandante da GNR e foi lhe pedido para que retirasse a sua equipa do território de Vizela. Vocês estão aqui e já cheira a provocação e só estamos a pedir isto para evitar um banho de sangue. Tínhamos escondidos foguetes no parque, com garrafas de plástico com gasolina para atacar a polícia. O comandante ligou para o Quartel do Carmo via rádio e comunicou a diretiva que lhe foi dada. E os GNR acabaram por sair”, detalhou José Manuel Couto.
Volvidos cerca de nove meses, celebrava-se mais uma edição das Festas da Vila de Vizela, um dos múltiplos eventos capazes de agregar a população em prol de um objetivo e querer comum: a conquista da autonomia político-partidária. De maneira a semear quietude e placidez num povo personificado por um barril de pólvora, o Ministro da Administração Interna [à data, o Engenheiro Eduardo Pereira] deslocou-se a Vizela e solicitou a reposição da legalidade democrática. “Nas festas de Vizela, a 15 de agosto de 1983, o ministro da Administração Interna que era do PS, veio a Vizela prometer a criação do concelho se repuséssemos a designada “legalidade democrática”. Ou seja, a linha do comboio no devido lugar e realizar as eleições para a Câmara de Guimarães porque estavam suspensas. Dizia que uma autarquia não podia funcionar sem estar completo o ato eleitoral. Era isso que dizia estava na lei, na ocasião. A Câmara de Guimarães esteve meses suspensa. E foi uma forma de insistir no estado de acalmia do povo de Vizela”.
O Município de Vizela calcorreou todas as arestas do labirinto que concernia à Lei-Quadro para a criação do concelho e só vislumbrou a saída a 15 de maio de 1985, quatro anos após o projeto-lei ter trespassado as portas da Assembleia da República. Contudo, a locomotiva que transportava o ensejo vizelense foi impelida a uma travagem brusca: o PSD introduziu, no processo, o ponto 4º, alínea A, do artigo 14, que mencionava a edificação do Município de Vizela só poderia ser efetivada quando estivesse cumprida a regionalização ao longo de todo o país. “Na altura da criação da lei-quadro, fomos a Lisboa assistir à discussão e votação. Fomos avisados pelo chefe da polícia (era nosso amigo) que se houvesse distúrbios nas galerias, íamos todos presos. No interior e nas zonas de acesso, tinham trancado uma série de portas e pregado tábuas: íamos ser encurralados para um salão e apanhados um a um. A PESADA esteve em todos os atos”, relembra o ex-membro.
Naquele tempo [em 1988], a correspondência formal ainda não conhecia o aspeto da caducidade. Vários foram os alvos com os quais o MRCV se propôs a dialogar e ultimar a “questão de Vizela”, como lhe chamavam. Cavaco Silva, à altura primeiro-ministro de Portugal, também foi interpelado. “A única solução que vocês têm é começar pelos deputados de Braga. Não estou a ver que interesse podem ter os deputados do Algarve, por exemplo”, reproduziu Joaquim Lopes Vaz com um tom coloquial. Resultado da reunião que parecia encaminhar a criação do Município? Todos os deputados do PSD acenaram afirmativamente com a cabeça, convencido pelo ímpeto da argumentação vizelense, e a unanimidade tomou conta da sala. “No dia seguinte, via telefone, o Engenheiro Eurico de Melo e o Fernando Alberto Ribeiro da Silva resolveram a situação. Tudo por água abaixo, uma vez mais”, remata José Manuel Couto num tom áspero, acompanhado de vernáculo.
A luta da população vizelense não esmorecia. Com o urgir do tempo, os civis vestiam o fato característico dos movimentos de rua e puxava da lapela o lenço da “destruição” naquilo que concernia a espaços públicos e a veículos ao serviço de entidades da terra. “Uma vez, prendemos uma carrinha saída do posto de correio e tiramos-lhe as rodas fora. Destruímos uma barraca de impostos (aberta na altura da feira). Viramos uma carruagem ao contrário. Pusemos uma forca aqui. Um ato simbólico dirigido aos políticos que quisessem visitar Vizela”. A elite política da altura tentou, uma vez mais, fazer com que as pessoas do agora concelho “renunciassem” à contenda que há pouco haviam iniciado, outorgando à cidade duas obras que trariam benefícios socioeconómicos. “O quartel dos bombeiros e a construção do estádio [em 1989] constituíram uma forma que a escumalha política encontrou de tentar calar Vizela. Fomos chamados para uma reunião juntamente com o MRCV e os presidentes das juntas de freguesia e disseram-nos: estas obras só avançam quando pararem com as lutas de rua. Encostaram-nos entre a espada e a parede. Continuamos a luta, mas de forma mais contida. Convenceram-se que, durante esse período de tempo, desistiríamos. Mas nós não parávamos”, continuou José Manuel Couto, afogueado pela elevada temperatura do escritório.
António Guterres discursou na sede da AMAVE [em março de 1993] e foi premiado com uma citação incrustada a cada exemplar do semanário Notícias de Vizela. “Em 1997, quando se chumbou pela última vez, o António Guterres conferenciou com o Assis dizendo que era melhor votarem a favor, mas este último disse que já tinha resolvido o problema”. Vocábulos como “honestidade”, “seriedade” e “compromisso” foram lançados sobre a personalidade do ex-primeiro ministro e distinguidos como qualidades inerentes a poucos políticos portugueses.
1997 voltou à baila por diferentes razões. Francisco Ferreira encarregou-se do arranjo dos autocarros para as inúmeras excursões à capital e saiu do MRCV por considerar estoico as idas a Lisboa somente dialogar com os deputados do PSD. José Manuel Couto, nesse ano, quis ser recordista e esteve em todas as mobilizações da população rumo a Lisboa, mesmo sabendo que a resposta não alteraria de umas vezes para as outras e que o chumbo no teste da autonomia era fatal. O importante sempre foi não dar “parte fraca”. Por sua vez, o ex-integrante do MRCV rememorou o ano de 1997 num olhar disperso. Lembrou algumas das idas à capital, durante aquele ano, demandando pelo cálice sagrado dos vizelenses e reproduziu uma conversa tida entre Manuel Campelos (líder do MRCV), António Braga (ex-presidente da Bancada Parlamentar do PS e Domingos Pedrosa (membro do MRCV):
Manuel Campelos: “Doutor, o Engenheiro Guterres já foi eleito há um ano e tal, já disse que criaria o concelho de Vizela…”
António Braga: “A legislatura tem quatro anos e ainda só passou pouco mais de um. Ainda temos tempo de fazer”.
Manuel Campelos: “Então estão à espera de que o governo caia, que o governo morra?”
António Braga: Tenho o vosso projeto pronto há ano e meio. Mas não tenho condições políticas nem partidárias para avançar com o vosso caso. Se todos avançarem, temos que ir a ele.
Domingos Pedrosa: Mas vão a ele como??
Manuel Campelos: Mas o PCP avança porque nunca teve problemas nenhuns…
António Braga: Não queremos o PC. Queremos o CDS-PP. Mas isto que vos estou a dizer, não podem contar a ninguém. Senão desminto tudo.
O ruído é a prova de que não basta o propalar de um som intenso e num tom mais elevado para que a perceção da mensagem seja efetuada. O ex-presidente da Câmara de Vizela tem uma perceção quase idêntica em relação ao processo autonómico de Vizela. “Não valia a pena as pessoas só fazerem barulho e não fazerem nada. Isso acontecia desde 1982. Fomos dezenas de vezes para Lisboa. No concreto, podíamos andar muitos anos com a PESADA e com o MRCV que de nada valia. As manobras políticas valiam ouro”.
As pelejas exigem espírito de sacrifício, mente sã e corpo são. Por vezes, o resultado mais favorável equivale a perder o mínimo. Quase como se tivéssemos duas pombas análogas nas respetivas mãos e uma pistola apontada à fronte nos compelisse a largar uma. “Na luta de Vizela, sabíamos de antemão que existiriam danos colaterais e situações de risco elevado. Ao destruirmos a linha do caminho de ferro, privamos a deslocação de centenas de pessoas. tinha que ser. Tinha que haver sacrifícios. Não podíamos uma “guerra” sem danos colaterais. O MRCV fez um pouco isso, com muita diplomacia. Nós não. Fazíamos o trabalho sujo. Tive noites a fio que abandonava a minha mulher, os meus pais e os meus filhos. Eles diziam que eu andava a perder tempo e força e que os de Guimarães levavam sempre a melhor”, atirou, resignado, o ex-membro da PESADA.
Retirando os óculos da posição que lhes compete e esfregando os olhos com a fricção do dedo grande, Joaquim Lopes Vaz admitiu estar descreditado da política nos moldes pelo qual ela se rege. “Não voto desde 1982. O meu último voto remonta à candidatura de Manuel Alegre à Presidência da República porque ele disse que se as pessoas eram contra o colonialismo em África, tinham de o ser nas suas barbas [referindo-se à questão de Vizela]”.
Olhos bonitos, caras bem apresentáveis e corpos esbeltos não são características suficientes para que se possa ser uma mais-valia na luta autonómica de uma região. Audácia e persistência (já) entram nessa equação, juntamente com uma série de fatores. Francisco Ferreira, José Manuel Couto e Joaquim Lopes Vaz foram buscar o concelho e utilizaram os mesmos vocábulos para descrever o segredo do golpe.