Vodafone Paredes de Coura 2024: análise do cartaz sob três ângulos

por Bernardo Crastes,    10 Agosto, 2024
Vodafone Paredes de Coura 2024: análise do cartaz sob três ângulos
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Artigo escrito em colaboração com Tiago Mendes.

Pouco a pouco, o cartaz deste ano do Vodafone Paredes de Coura foi-se revelando a todas as pessoas que já anseiam por um pouco de música à beira do rio Coura. Seja àqueles que usam o festival como uma desculpa para tirar umas férias e apreciar o ambiente descontraído que nele se vive, como aos melómanos que tomam o seu tempo para olhar cada linha do alinhamento como se de um guia turístico se tratasse. Nós encaixamo-nos mais na segunda categoria. É por isso que propomos, neste artigo, uma análise do cartaz da edição de 2024 do Vodafone Paredes de Coura.

O nosso método foi a de divisão de alguns dos nomes em caixinhas largamente relacionadas com o género musical e sonoridade, que nos permitem pautar certos artistas como mais similares entre si. Claro que esta análise não deve limitar a apreciação do cartaz como um todo, dado que não incluirá todos os grandes artistas que pelos palcos da Praia Fluvial do Taboão passarão, entre 14 e 17 de Agosto.

O Vodafone Paredes de Coura tem sido um dos festivais de Verão portugueses mais consistentes, assim como um daqueles com mais história musical no nosso país. Com um foco na música mais alternativa, mas sempre disposto a expandir os seus horizontes, este ano não é excepção. Os ângulos que decidimos explorar neste artigo passam pelo noise rock, pelo shoegaze e, por fim, pela world music. Sigam-nos nesta experiência imersiva e deixem que o cartaz vos surpreenda.

O ÂNGULO NOISE ROCK

Um dos descritores mais instantâneos que encontrámos neste cartaz foi “punk“. É que várias das bandas contratadas para actuar no Paredes de Coura movimentam-se nesse lado mais aguerrido da música, mas ao mesmo tempo perigosamente próximas do prefixo “pós” que permite encaixar uma certa atitude punk em estilos musicais não necessariamente tão niilistas. Ainda assim, encontrámos uma série de artistas cuja música distorcida e barulhenta nos permite explorar um ângulo noisy, que normalmente tem sempre muita expressão nos cartazes do Paredes de Coura.

Os Protomartyr são talvez uma das bandas mais estóicas do cartaz. Mesmo quando o ruído ameaça dominar as suas canções galopantes, os seus integrantes mantêm-se firmes, particularmente o vocalista Joe Casey. Num estilo spoken word, muitas vezes gritado, Joe é inabalável e traz aos concertos dos Protomartyr aquilo a que chamámos uma “agressividade contida” numa reportagem que fizemos de um concerto da banda em 2018. Nessa altura, a banda equilibrou o nocturno álbum Relatives in Descent e os mais agitados Under Color of Official Right e The Agent Intellect, sempre com uma dose saudável de noise. Desta feita, a banda virá apresentar o mais recente Formal Growth in the Desert, lançado no ano passado. Não duvidamos que será um dos concertos mais surpreendentes do festival, para quem não conhecer os Protomartyr.

Uma das grandes promessas do festival passa pelo concerto dos Model/Actriz, quarteto americano de noise rock cujo álbum Dogsbody foi um dos mais bem cotados pela crítica no ano passado. Não só a sua música é vibrante e entusiasmante — dentro dos parâmetros do noise rock, claro — como as suas actuações ao vivo são famosamente tidas como intensas e impressionantes. Cole Haden, o carismático vocalista, perambula pelo palco e confronta o público enquanto os restantes membros da banda agitam as moléculas de ar à sua volta com ruído potencialmente destrutivo, mas habilmente contido em embalagens dançáveis — como em “Crossing Guard” ou “Mosquito”. Mesmo nos momentos mais sombrios, a música é pujante e incita a uma comunhão suada, algo que o público que assistir ao ansiado concerto não será capaz de evitar.

E por falar em comunhão suada, não podemos deixar de mencionar os Idles. Serão poucas as pessoas que irão fazer a peregrinação a Paredes de Coura sem querer obter a benção do vocalista Joe Talbot. Um dos quintetos mais positivos do punk — ou não fosse o seu segundo álbum chamado Joy as an Act of Resistance — regressará onde já foi feliz (a banda actuou no festival em 2022) e fará um mar de gente ainda mais feliz tanto ao revisitar os seus maiores sucessos como ao apresentar o seu mais recente álbum, TANGK, lançado já este ano. Apesar de neste último trabalho terem abandonado um pouco o som abrasivo de Brutalism, o disco de estreia que os colocou nas bocas do rock britânico, a intensidade que os caracteriza continua lá e não deixará de marcar presença no concerto que darão no festival, assim como as guitarras com distorção que a banda sempre favoreceu.

Para além destes três destaques, o festival contará ainda com o puro punk rock dos Destroy Boys, uma banda com uma vasta audiência nas plataformas de streaming e que, na altura do seu concerto em Paredes de Coura, terá acabado de lançar o seu quarto álbum, Funeral Soundtrack #4. Adicionalmente, os irlandeses Sprints irão mostrar um lado mais garageiro dos compatriotas Fontaines D.C., que também marcarão presença no festival. Ou seja, não haverá falta de música que deixará os ouvidos dos festivaleiros a zumbir.

O ÂNGULO SHOEGAZE

Não nos desviando muito do rock, nem tão pouco da distorção, mas em direcção a paisagens musicais mais etéreas e sonhadoras, encontramos o ângulo do shoegaze. Esse estilo que tanto pode ser uma almofada onde acalmamos os nossos pensamentos mais tumultuosos, como uma parede de ruído aguçado que mascara o mundo lá fora, encaixará que nem uma luva no anfiteatro natural de Paredes de Coura, como sempre o fez.

Por mais que seja um dos nomes mais óbvios e consensuais do cartaz, não podemos deixar de mencionar os veteranos Slowdive quando falamos de shoegaze no Vodafone Paredes de Coura. Depois de um muito celebrado regresso aos palcos em 2014 e de um também muito celebrado álbum homónimo que os reapresentou a várias gerações de melómanos, a banda britânica não abrandou ao longo dos anos seguintes. Tornou-se presença assídua em festivais, incluindo em Portugal, ao ponto de ameaçar tornar-se repetitiva demais. No entanto, o lançamento de everything is alive, em 2023, revelou-nos uma banda consistentemente relevante e revigorada, com belíssimas canções novas para adicionar ao seu arsenal indutor de transe. O ouvido do quinteto para as melodias e para a estrutura musical continua a ser inegável, algo que o seu concerto provará a qualquer pessoa que possa ainda ter dúvidas sobre as capacidades dos Slowdive.

Consolidando cada vez mais o apelo crítico do cartaz, outro dos projectos mais bem recebidos que o mesmo inclui é Hotline TNT. Will Anderson conseguiu em Cartwheel, o seu segundo álbum como Hotline TNT, lançado no ano passado, destilar o que há de melhor no rock alternativo dos anos 90 em canções inspiradoras e estrondosas. No topo de cada riff poderoso, há sempre o zumbido característico do shoegaze que expande o alcance deste género musical, que se vai revelando cada vez menos estanque à medida que novos projectos o vão reinventando. Estas canções são feitas tanto para arenas, pelo seu som épico, como para as salas de concertos mais intimistas, pelas suas emoções apertadas e universais. Como o recinto do Vodafone Paredes de Coura combina o melhor desses dois mundos, não duvidamos que o concerto de Hotline TNT será um dos grandes momentos do festival.

A música dos Wednesday, agora que chegou ao aclamado quinto álbum, Rat Saw God, já incorpora mais estilos que o shoegaze, aproximando-se de coisas como o country, o grunge e até o noise rock sobre o qual discorremos uns parágrafos antes. No entanto, o shoegaze foi um dos elementos formativos da banda e continua a fazer-se notar em várias das suas canções, nem que seja pelas emoções à flor da pele que a sua música constantemente evoca. Depois de a banda se ter apresentado no Primavera Sound Porto em 2023, num concerto que foi vítima de uma longa tour e cansaço acumulado, regressam agora a um dos palcos favoritos dos fãs dos estilos em que os Wednesday se movem. Agora que já tivemos um ano para conviver com Rat Saw God, já nos imaginamos a deixar a parede de ruído do final de “Bull Believer” assolar-nos de outra maneira.

Ainda na vertente do shoegaze, é impossível não mencionar os veteranos The Jesus and Mary Chain, cujos clássicos certamente terão inspirado todos os nomes que mencionámos antes e muitos outros. E, mais próximos do dream pop no espectro imaginário deste género, os Still Corners levarão o público numa viagem musical a ser experienciada idealmente de olhos fechados. Se há coisa que podemos garantir sobre este ângulo shoegaze, é que resultará certamente em alguns dos momentos mais emocionantes do Vodafone Paredes de Coura este ano.

O ÂNGULO WORLD

Formando um vértice coeso no cartaz deste ano, apresentam-se em Paredes de Coura um conjunto de bandas com uma sonoridade sediada em diferentes longitudes da world music, em diálogo com uma abordagem rock e psicadélica, ora mais progressiva ora mais contemplativa.

Um dos nomes que mais estará a entusiasmar o público que ruma a Paredes de Coura este ano será o do nigeriano Mdou Moctar. O músico, que regressará ao norte do país depois da sua actuação de há dois anos no Sonic Blast, é conhecido pelo seu rock inspirado na música tuareg, tecendo uma musicalidade desértica a partir dos seus electrizantes riffs de guitarra eléctrica. A abordagem acentuadamente rítmica e psicadélica — por vezes com incursões pelos blues – remete-nos para paisagens de outras décadas. O virtuosismo do músico, dono de uma voz tão característica, conduz-nos por temas embrenhados e complexos, que vivem muito da progressão das composições. Na bagagem traz Funeral for Justice, o mais recente álbum, lançado este ano, mas também Afrique Victime, cuja aclamação pela crítica em 2021 contribuiu para a disseminação do artista.

Outro dos projectos que promete fazer o público viajar para outras latitudes geográficas (no plano da fruição emocional) é o da banda encabeçada por Rajan Silva. Os australianos Glass Beams também tecem a sua arte na intersecção entre o psicadelismo e a world music, mas de uma forma bem mais relaxada e minimal que Mdou Moctar. O som criativo deste trio formado durante a pandemia cria uma ambiência lounge, partindo de uma base de groove controlada e adornando-a com efeitos electrónicos que transformam magicamente alguns dos timbres de instrumentos acústicos (incluindo um sitar); num som não totalmente distante da música dos Khruangbin. Esses pozinhos sintetizados contribuem para a atmosfera misteriosa, assim como as escalas musicais hindustânicas do norte da Índia, cujas sonoridades tradicionais fazem parte do núcleo da música dos Glass Beams. A somar a tudo isto, a banda apresenta-se com uma imagem criativa, ocultando as suas caras com máscaras, em concertos que têm vindo a ser elogiados. Valerá a pena habitar este espaço tranquilo e descobrir a magia que ali será evocada. 

Com um som mais upbeat que o dos Glass Beams, e evocativo de longitudes a meio caminho entre as dessa banda e as de Mdou Moctar, apresentar-se-ão também em Coura os Sababa 5. Neste grupo israelita, as linhas de sintetizador assumem um lugar central, sobre beats também psicadélicos e roqueiros. Mas há na sua criação elementos de toda uma panóplia de tradições musicais: desde a canção folclórica turca à pop do Médio Oriente, passando por escalas musicais do Norte de África e da Ásia Central. É uma receita que se cruza com uma abordagem mais funky e pop — pensem, a título de referência, nos Altın Gün. Com uma lista vertiginosa de produções e lançamentos nos últimos anos, entre álbuns de estúdio e EPs, é difícil prever que tipo de espectáculo e alinhamento trarão consigo os Sababa 5. Mas as vibes ecléticas e uma alegria embutida parecem ser dimensões garantidas.

A estes trilhos com sabor a deserto e a paisagens inóspitas, mas em que habitam tradições e culturas ancestrais, gostaríamos de poder somar os Hermanos Gutiérrez, que infelizmente cancelaram recentemente a sua presença em Paredes de Coura, mas cuja sonoridade encaixaria neste mesmo vértice, na sua forma mais ambient. Será um esticão associarmos a este padrão o espectáculo que André 3000 apresentará em Coura, trazendo New Blue Sun consigo? Apesar de num terreno ambient, bem mais esparso do que os exemplos acima apresentados, a abordagem do norte-americano explora ambiências tribais, muito a partir dos instrumentos de sopro. Fica a sugestão de se apreciar mais essa longitude nas margens do Coura.

Estes são três dos possíveis ângulos que descobrimos no cartaz da edição de 2024 do Vodafone Paredes de Coura. Certamente haverão muitos mais, adaptados às experiências e associações pessoais de cada um. Tendencialmente, se algum artista de quem se gosta se encaixa num destes ângulos, talvez faça sentido ficar a conhecer os restantes do mesmo, utilizando-o como mapa para navegar pelo cartaz diverso com que o festival nortenho nos presenteou este ano. A facilidade do Paredes de Coura é que os horários raramente dão azo a sobreposições complicadas, por isso as oportunidades para conhecer muita música nova apresentar-se-ão a todos os festivaleiros que se propuserem a explorá-las.

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