Branko: “O objectivo não é funcionar sempre, é sempre que funcionar que acrescente alguma coisa”
Para João Barbosa, o céu é o limite. O artista mais conhecido como Branko prepara-se para mais uma edição da Enchufada na Zona, festival de celebração da música da editora que lidera, que conta com a participação de artistas dos mais variados cantos do mundo. Esta terceira edição apresenta-se no Capitólio em novo formato e com um cartaz mais ambicioso que pretende mostrar a música electrónica global de forma fiel e condigna. A Comunidade Cultura e Arte sentou-se com Branko para falar sobre este evento e o seu potente novo álbum, Nosso.
Nosso é um álbum bastante maduro, nota-se a experiência do seu “maestro” e de sentido e propósito. O que é que achas mudou mais desde Atlas no teu método criativo?
Uma diferença enorme nos dois processos criativos foi o facto de ainda existirem os Buraka Som Sistema quando eu estava a trabalhar no Atlas. Ainda estávamos a tocar, ainda estávamos em tour, e o álbum era um projecto paralelo, no sentido em que nunca foi a coisa principal em que eu estava a pensar na altura. Foi feito naquelas cinco semanas, naquelas cinco cidades, como um projecto com uma baliza, com começo e com fim. A música que eu fiz foi a que eu gravei nessas cidades e que trouxe para cá. O Nosso é uma construção maior de todas as experiências que eu vivi desde o Atlas até à altura em que o lancei, todo esse processo. Apareceram pessoas pelo caminho como o Dino d’Santiago e outras pessoas com quem acabei por me cruzar e criar alguma coisa no momento ou em sessões especificamente marcadas para o efeito, ou oportunidades como a série documental para a RTP. No meio dessas coisas todas uma pessoa acaba por se encontrar como artista, e da relação com outras artistas acaba por perceber um bocado mais qual é o seu objectivo, a direcção, acaba por concretizar algumas coisas. E depois obviamente que todo o trabalho que a Enchufada desenvolveu a nível de direccionar artistas é algo que acaba por me influenciar. Portanto, a meu ver, estes anos de 2015 até 2019 são os anos em que eu acabei por me definir a mim próprio enquanto artista.
Então foi mais a nível de identidade e de pessoa do que propriamente método criativo?
Sim. O método criativo no Atlas foi limitado e aqui foi fazer aquilo que me apetecesse, com quem me apetecesse, no sítio que me apetecesse, na altura em que me apetecesse. É um método criativo que resulta de vários anos de acumular de música e de ideias e não propriamente de um projecto que tem um ínicio, um meio e um fim.
Que músicos internacionais e nacionais te inspiraram mais neste projecto e te têm inspirado nos últimos anos?
Eu tenho o privilégio de poder convidar as pessoas que me inspiram para trabalharem comigo, e muitas delas aceitam. Eu acho incrível ter a Mallu Magalhães e o Dino d’Santiago no disco, são duas pessoas que são o expoente máximo daquilo que é a música de países que partilham da língua portuguesa. E depois há outras pessoas que me inspiraram imenso que fui conhecendo de viagens a Londres como o Miles from Kinshasa ou a Cosima, que foi uma artista com quem me cruzei duas ou três vezes antes de ter a oportunidade de trabalhar com ela. E também produtores como os Dengue Dengue Dengue, que o encontro foi feito em Lima, ou o Sango, uma pessoa com quem eu trocava mensagens já há muito tempo e finalmente conseguimos trabalhar juntos. Quem me inspira está no disco. Obviamente que há uma ideia de artistas maiores, de artistas consagrados, e eu adoraria trabalhar com eles. Mas penso sempre nisso como quando trabalhei com a M.I.A. Eu trabalhei para ela, e faz muito mais sentido quando trabalho com um artista que já tem uma direcção eu condicionar-me a esse artista e fazer alguma coisa que seja um cruzamento do meu trabalho a manter sempre a personalidade desse artista. Mas não quero estar a chamar pessoas para o meu projecto que já têm uma direcção demasiado grande e demasiado vincada. Tento ir atrás das pessoas que me inspiram, e inspira-me muito o que ainda não aconteceu totalmente. Para mim é muito mais inspirador esse sentimento de achar que consigo contribuir para isso do que uma coisa que já tenha o seu caminho. Por exemplo, eu adoro toda a música que venha da Jamaica, desde o dub ao reggae, mas sinto que não tenho nada a acrescentar porque já há várias pessoas que estão a conseguir traçar esse caminho de uma forma incrível, e a fazer as pontes entre a Jamaica e uma série de outros sítios. No final do dia, se estamos a acrescentar alguma coisa relevante está tudo bem, é sempre a premissa que está por trás de tudo.
O teu método preferido de trabalho é aquele que advém da colaboração presencial. Mas o que tens a dizer da proliferação musical actual que permite que um produtor a um continente de distância produza êxitos monstruosos como “Old Town Road”? Imaginas-te alguma vez a trabalhar assim?
Acho incrível, mas tudo depende daquilo que tu estás a tentar atingir com a tua música. Direcções diferentes precisam de métodos diferentes. Se é um smash hit acho que tanto faz, precisas é de uma ideia muito boa e de juntar aquilo que precisas à tua ideia. Se aquilo que tu queres é um diálogo musical em que eventualmente consigas criar uma fusão de alguma coisa, eu prefiro comunicar e interagir directamente com a pessoa. Numa sessão de estúdio com uma pessoa que eu não conheça muito bem ou que eu nunca tenha conhecido, há um momento muito bonito de entrega. Há momentos onde estão mais dispostos a encontrar-se a meio caminho com a outra pessoa. Estão fora da zona de conforto, estão mais “educadas”, e muitas vezes o que é criado nessas sessões não aconteceria se a pessoa estivesse no seu espaço a criar só aquilo dentro dos seus padrões e métodos habituais de criação. E quando eu falo em juntar-me a pessoas é ir um bocadinho atrás desse sentimento, dessas circunstâncias únicas de estarmos os dois numa sala a trabalhar juntos e que são impossíveis de acontecer de outra forma. O objectivo não é funcionar sempre, é sempre que funcionar que acrescente alguma coisa.
Referiste numa entrevista que gravaste algumas colaborações com pessoas de uma veia mais pop e outras mais rap. Vês-te só como artista ou também como produtor?
Vejo-me também como produtor, acho que é um caminho que eu tenho vindo a traçar devagar porque quero que quando aconteça esse lado da produção as pessoas que entrem em contacto comigo venham atrás de alguma coisa que eu já tenha conseguido de alguma forma fazer. Não me faz muito sentido chamarem-me para ir produzir no próximo disco de uma artista mais pop generalista, ou então se o fizerem que seja com noção do que é que eu fiz e a quererem que isso faça parte do universo do álbum. Foi o que aconteceu quando o Kalaf [Epalanga, escritor e membro dos Buraka Som Sistema] me chamou para trabalhar com o Dino no Mundu Nôbu. Acabámos por fazer a “Nova Lisboa” e através da relação com o PEDRO acabámos por trabalhar em mais uma ou duas coisas. Ou no caso da M.I.A. que me chamou para produzir para ela. São sempre relações que partem de uma posição em que as pessoas sabem minimamente aquilo que eu faço e acham interessante elas juntarem-se a isso de alguma forma.
Depois do Atlas sair lançaste uma versão expandida do mesmo. Tens alguma coisa pensada para Nosso
Nós fizemos uma edição gratuita do Nosso chamada Nosso Remixed que distribuímos apenas pelo SoundCloud e Bandcamp, e que tem misturas de alguns temas feitos pelos meus produtores favoritos. Desta vez, queríamos só agarrar as canções do Nosso que sentimos que se distanciaram um bocado da pista, e entregar isso a alguns produtores mais novos, ainda “fechados” (no bom sentido) dentro desse universo club para criarem as suas versões dessas canções, e funcionou bem. Tirando isso, estou a preferir estar a trabalhar já na próxima coisa do que estar ainda a pensar no Nosso.
Para as pessoas que não conhecem o Enchufada na Zona, qual é o teu elevator pitch? O que é que o distingue?
Para mim é um festival que celebra muito o trabalho da editora Enchufada. É um momento anual de celebração desta música electrónica global, com sede em Lisboa, pensada a partir de Lisboa. Esta ideia de fundir a música tradicional com a música electrónica, de que forma é que isso tudo está presente nos clubes hoje em dia, e juntar uma série de pessoas naquilo que é para mim um dos epicentros do mundo relativamente a esse género de música. É um dia em que a cidade de Lisboa se torna a capital mundial da música electrónica global. Está representada a América do Sul pelos Dengue Dengue Dengue, que lançam um álbum no próprio dia. Tens representada a África do Sul com o DJ Lag, que acabou de vir de uma colaboração com a Beyoncé no disco d’O Rei Leão, pessoas que vêm de fora e que estão a trazer um bocadinho dessas cidades para partilhar com Lisboa. Para quem se queira vir só divertir acho que pode ser uma noite divertida, mas espero que essas pessoas descubram também alguma cultura, não só copos e beats. Pode ter isso tudo mas acho que também é interessante as pessoas conseguirem parar um bocadinho e olharem para o palco e pensarem e absorverem alguma coisa. Vamos ter artistas de seis nacionalidades diferentes a transmitirem o mesmo tipo de energia que se ouve numa Na Surra de outra cidade e a importá-la para Lisboa. E acho que isso tem muita força.
É um showcase da electrónica global sem sair da capital.
Sim, exacto. No fundo, não há propriamente muitos festivais ou eventos anuais que consigam juntar mil pessoas numa sala só sobre este tema. Tens muita coisa de world music e tens muita coisa de electrónica pura e dura. Por muita música deste género que um Sonar tenha, o que vende os bilhetes é o techno e o house. Normalmente os festivais usam muito este tipo de música como a entrada porque sabem que dá que falar a nível de imprensa porque é mais interessante, porque tem assunto. Em muitos festivais onde está representada a electrónica global, nota-se que não é o foco principal e no nosso diálogo é. É a carne, as batatas, é a refeição toda.
Os passes já esgotaram e os bilhetes diários para lá caminham. Achas que estaria muita gente interessada em algo maior?
Até aqui tem sido degrau a degrau e tudo o que eu tenho feito e tudo em que estou envolvido tem de ter crescimento orgânico. Em 2017 foi o ano em que se colocou na rua o programa Enchufada na Zona, na rádio NTS, e esse foi um bocado o pontapé de saída disto tudo. Uns meses depois veio uma compilação intitulada Enchufada na Zona e depois o primeiro evento Enchufada na Zona, que ainda estava pensado como uma festa e aconteceu no estúdio Time Out. Correu bem e no ano a seguir mudámos o evento para o Porto e já nos aventurámos um bocadinho mais ao ter uma parte no Hard Club no início da noite e que já teve também alguns concertos. Agora passa para uma programação de dois dias, dez artistas, e a meu ver esgotando significa que estamos no bom caminho de ir crescendo e de fazer o evento crescer um bocadinho a cada ano e sem dúvida que irá continuar. Espero que consiga ter expressão suficiente para fazer eco no mundo inteiro e termos pessoas de todo o lado, porque realmente não há muitas coisas assim a acontecerem no resto do mundo.
Costumas testar as tuas músicas com o público, ver o que resulta, não resulta, e certamente o farás neste espectáculo. Já tiveste casos em que testes não correram muito bem?
[Risos] Já. Eu confio um bocadinho nos instintos e nas reacções, e sobre a música que eu faço confio mais naquilo que me dizem os meus amigos que não percebem nada de música do que os meus amigos que percebem muito. Quando me perguntam qual é a minha opinião sobre uma música eu não consigo dar a minha opinião sem perguntar “Onde é que tu queres chegar? Qual é o objectivo? É para ficar em número um do top ou é para bater numa Na Surra?” Entre essas duas coisas há aqui um espaço enorme e eu, enquanto músico só vou dar uma opinião sobre a música quando perceber isso. Portanto muitas vezes o que eu prefiro é essa opinião desligada, e até prefiro que nem sequer seja conversado. Eu prefiro que as pessoas reajam através de dança e através de expressões e demonstrações de felicidade na pista de dança. Não testo todas as músicas, há músicas que não faz sentido estar a tocar às três da manhã num sítio. Mas a maior parte das coisas que eu sinto que são minimamente dançáveis e que precisam de uma reacção corporal eu testo, e não lanço enquanto não estiver a bater certo com o teste que está a acontecer. Eu espero mesmo pelo momento certo. Há outras músicas não tão físicas que acredito só no meu julgamento e na minha sensibilidade enquanto produtor, e confio que as pessoas também irão achar o mesmo.
O afro house é um género que continua a internacionalizar-se e a marcar a sua posição no mundo da música. Achas que o legado dos Buraka Som Sistema vai continuar a crescer e a angariar reconhecimento? Sentes que faria sentido ou que poderá vir a acontecer alguma reunião do grupo, ou achas que existe uma maneira melhor de honrar esse legado?
Eu acho que a forma mais importante de honrar esse legado é com a música, a música que fica disponível. Quando apareceram os Buraka Som Sistema tudo isto foi crescendo e houve uma série de licenciamentos de músicas que foram feitos, e uma das minhas missões principais neste momento é recuperar o máximo possível para tentar controlar e disponibilizar. Isso é um trabalho que felizmente com o tempo acho que vamos conseguir lá chegar, garantir que esse legado musical continua disponível e que está tudo nos sítios que deveria estar. Em termos de reuniões, acho que tem a ver com deixarmos as coisas evoluírem para momentos em que possam ou não fazer sentido. Neste momento, está exactamente a acontecer aquilo que era a minha previsão quando iniciámos este hiato: as diversas pessoas estão a plantar sementes dentro da mesma ideologia, dentro da mesma direcção, em campos completamente diferentes. Seja literatura, seja o que a Blaya está a fazer no universo da pop em Portugal, seja o que eu continuei a fazer a nível de Enchufada com o meu trabalho. Nesse sentido, acho que essa sementes todas vão dar frutos mais importantes para este diálogo e para essa importância desse híbrido do afro house ou kuduro com a música de Lisboa, e o momento em que isso já se tornou uma das músicas de Lisboa. Acho que estão-se a fazer coisas mais interessantes em separado e não acho importante estarmos a falar de voltar. E a voltar, não seria para assegurar a ideia de legado ou porque de repente as pessoas estavam a esquecer-se de nós. Seria por acharmos que poderia fazer sentido ou porque tínhamos ideia de fazer um próximo disco e essa ideia era uma ideia boa o suficiente para sentirmos que esse disco iria ter força na estrada e em todo o lado. As decisões passam sempre pela vontade de acrescentar algo relevante.