Abram alas para a Chiquinha Gonzaga, que ela quer passar
A carioca Chiquinha Gonzaga, ou melhor, Francisca Edwiges Neves Gonzaga, provou com excelência como a “mestiçagem” da música, tal como ela própria o era, quebrava barreiras e abria caminhos numa sociedade imperial e desigual como a do Brasil da segunda metade do século XIX. Pianista de profissão e coração compôs, ao todo, cerca de 2000 composições e actuou como maestrina em 77 peças de teatro. O seu nascimento, resultante da união de uma mestiça filha de escravos alforriados e de um oficial do exército imperial brasileiro proveniente de famílias abastadas, foi já, por si próprio, controverso, mas também foi o que lhe deu a base para navegar entre dois mundos que lhe foram primordiais — o classicismo da educação que o seu pai lhe deu e a sua deambulação pelos saraus africanos das senzalas — vinda do seu lado materno. Isso reflectiu-se na sua música uma vez que agregava a junção de estilos europeus, como as polcas, e os ritmos africanos do maxixe e
do lundu. No passado dia 17 de Outubro [2019], a pianista faria 177 anos. Por isso, contra ventos e tempestades, abram alas para autora da primeira marcha carnavalesca da história, que Chiquinha Gonzaga quer passar.
Educada na alta sociedade, teve aulas particulares de música porque era engraçado para a coquetterie social de então as meninas aprenderem a tocar piano — era necessário e elegante entreterem os familiares e amigos nos serões passados em casa. É preciso entender que, então, crescia o desejo de imitar o estilo europeu – era sinal de distinção social. Os pianos estavam muito em voga no Rio de Janeiro e, por isso mesmo, era permitido às mulheres que o aprendessem a tocar. Mas eis que o feitiço se virou contra o feiticeiro porque, para Chiquinha, o piano não era apenas um hobby de menina de bem. Era, isso sim, uma paixão crescente que levava muito a sério, que lhe abriria portas para se afirmar como mulher independente e lhe permitiria virar costas ao conservadorismo de então.
Aos 16 anos, viu-se obrigada a casar com Jacinto Ribeiro do Amaral, oficial da Marinha Mercante, que tinha nos seus planos ter a sua esposa sempre ao pé de si, de preferência sem pianos à vista. Aliás, Jacinto Ribeiro do Amaral decidiu levá-la consigo para o navio. Seria seguro porque lá, pelo menos, não havia pianos. Mesmo assim, aquela que abriu alas às bases da música popular brasileira arranjou forma de se manter perto da música: não havia piano, mas havia violão. Então, o marido colocou as coisas desta forma: ”ou eu ou o violão”. Bem, acabou, mesmo, por ser o violão. Chiquinha não foi capaz de abandonar a música.
O casamento, união que providenciou três filhos, não duraria muito, apenas 5 anos e, na altura, sem o apoio da sua própria família, teve de se auto-sustentar e tentar sobreviver com o seu filho mais velho, ainda criança — o único dos três (e mesmo o único dos filhos) que conseguiria manter consigo. Numa época em que as mulheres que trabalhavam eram “criadas” ou prostitutas, Chiquinha tentou abrir caminho num mundo que lhe era
vedado e fazer o que gostava. Deu aulas de música, tocou piano em lojas de instrumentos musicais e, dessa forma, conseguia o seu sustento. Começou a frequentar, igualmente, de forma mais assídua e assertiva a boémia carioca e as suas rodas de choro. Compunha, então, polcas, valsas e tangos. Nesse mesmo circuito conheceu o
seu amigo e colega cultural para a vida, Joaquim António da Silva Callado — considerado o precursor e pioneiro do choro. A par de Joaquim conheceu, igualmente, aquele que viria a ser o seu primeiro grande amor e segundo companheiro – o Engenheiro de estradas e caminhos de ferro João Baptista de Carvalho. Mantiveram-se juntos durante muito tempo, tiveram uma filha, mas a relação também viria a terminar pelas infidelidades de João
Baptista. Chiquinha Gonzaga tomou rumo à sua vida mais uma vez, sem uma terceira filha que ficou à guarda do pai. Mas tinha de continuar, já que haveria de ser a primeira maestrina — a primeira mulher a dirigir uma orquestra – do Brasil.
Além da música, haveria de ficar conhecida, igualmente, pelos seus ideais políticos. Afirmava-se contra a monarquia, dizia-se republicana, e era totalmente contra a escravatura que ainda se vivia, então, no Brasil. Desta forma podemos, também, entender o contributo das suas acções e pensamentos para a construção de uma sociedade mais igualitária e justa. É curioso notar que a compositora, desde logo, teve várias condicionantes
contra si. Era descendente, por parte de mãe, de escravos alforriados; filha bastarda porque quando nasceu os seus pais ainda não eram casados (havia o receio do que esta união poderia fazer à carreira e reputação do seu pai); divorciou-se; tornou-se mãe solteira frequentadora de saraus; tinha opiniões políticas; ganhava o seu próprio dinheiro e, a maior de todas as afrontas, era artista. É de salientar, portanto, que o imaginário desta
compositora está ligado, de antemão, a várias questões e lutas sociais, nomeadamente ao direito do divórcio, ao fim da escravatura, à emancipação da mulher, aos direitos autorais artísticos e às relações intergeracionais, como veremos mais à frente. Chiquinha Gonzaga era, essencialmente, uma mulher muito à frente do seu tempo. Como se ainda não bastasse, tinha o desplante de associar a estrutura clássica da música europeia, como já mencionado, aos estilos musicais mais populares (choro, batuque, lundu, maxixe) e, por isso mesmo, considerados como sendo os mais reles e baixos pelas próprias elites.
Temos de relembrar que todos os estilos musicais de raízes negras nunca foram bem vistos no seu início — pelo menos formalmente — independentemente da ampla aceitação popular. A compositora e maestrina foi, por isso mesmo, uma precursora na aceitação da cultura popular de raiz negra. Como se não bastasse toda a sua vida, a sua própria música, por si só, bastava para chocar — um exemplo é o próprio tema Corta-Jaca — puro maxixe. Era dessa mesma diversidade que nasceria, igualmente, a primeira marcha carnavalesca da historia — Ó Abre Alas — em 1899, tema pelo qual a compositora ficaria imortalizada. O escândalo de Corta-Jaca chegou, inclusive, a ter repercussões políticas. A Chiquinha era bastante amiga de Nair de Tefé, então Primeira-Dama do Brasil no início da sua República. Como tal, foi convidada várias vezes para o Palácio do Catete — a morada oficial de estado de então — sítio onde apresentou, em 1914, a composição Corta-Jaca, acompanhada ao violão pela própria Primeira-Dama. Gerou-se um autêntico frenesim na altura e o governo viria a ser criticado por essa atitude. A música, claro está, foi categorizada como a mais reles que poderia haver.
A maestrina associou-se, também, ao teatro de variedades e revistas. É dessa forma que estreia, aliás, a opereta “Forrobodó”, que contou com mais de 1500 apresentações seguidas. Mas não é só: em 1886, organiza reuniões de violinistas em bairros cariocas, como forma de valorizar o violino enquanto instrumento. Assim compõe o choro “Sabiá na Mata” para o concerto de 100 violões no Teatro São Pedro. Mas foi “A Filha do Guedes”, em
1888, que lhe dá a oportunidade de reger a sua primeira orquestra.
O seu maior escândalo estaria, no entanto, para vir. Aos 52 anos, conhece João Baptista Fernandes Lage, um rapaz de origem portuguesa de, apenas, 16 anos, estudante de piano, com quem vive até ao fim dos seus dias. Os dois mantêm uma relação mas, para se protegerem do escrutínio da sociedade, Chiquinha adopta formalmente o rapaz como filho. É nesse período que os dois resolvem passar uma temporada em Portugal, para escaparem a olhares alheios. Quando regressa ao Brasil, e após ter visto, ilegalmente, peças suas à venda em
Berlim, é que decide fundar a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais”.
Independente e com a capacidade de abrir portas quando todos lhas fechavam, assim era a carioca Chiquinha Gonzaga. O mais caricato é que, quando a coquetterie social lhe ofereceu um piano, estava longe de imaginar que esse instrumento constituiria a sua boa e selvagem “perdição”.