Entrevista. Baiuca: “Todas as pessoas se dão conta de que precisamos de novos horizontes e novas músicas”
Numa altura em que tradicional e contemporâneo cada vez se mais entrecruzam na música moderna espanhola, Baiuca tem sido seminal no que toca à revitalização do folclore da sua região de origem, a Galiza. Na sua música, Alejandro Guillán mistura-lo com uma electrónica dançável e de muito bom gosto. Se Solpor, de 2018, o trouxe para a ribalta da folk electrónica, potenciando colaborações, remixes e inúmeros espectáculos, o seu novo disco, Embruxo, lançado há umas semanas, vem cimentar essa posição. Deixando os samples em favor de uma linguagem mais orgânica, o artista explora mitos de bruxaria e cantigas antigas, trazendo-os para o século XXI num dos discos mais interessantes do ano. A Comunidade Cultura e Arte teve o prazer de falar com Alejandro Guillán sobre este, entre outros temas.
Neste disco [Embruxo], tens um conceito mais específico que no Solpor; falas de coisas mais místicas, de meigas, de bruxas… Como foi o processo de investigação?
Sobretudo, interessava-me encontrar as letras populares, as coplas em que se falava de todos estes seres místicos, destas lendas e destes mitos. Através do cancioneiro tradicional galego e de autores dos finais do século XIX ou início do século XX, e de frases que ia criando, as letras apareceram assim. Então o processo foi, mais que fazer um estudo em profundidade, estar um pouco mais informado sobre estes temas por interesse próprio, para aprender e estar mais relacionado com o que estava a fazer.
O que te levou a este tema? Como surgiu?
Através do Adrián Canoura, o rapaz que faz toda a parte visual do projecto. Ele já tinha abordado estes temas num dos seus filmes [“Caerán lóstregos do ceo”] e pareceu-me interessante continuar com isto, porque tínhamos muitas conversas sobre estes temas, partilhávamos artigos que íamos encontrando na imprensa e pareceu-me interessante dar também a minha opinião. Apesar de ser um tema que costuma ser recorrente na Galiza, parecia-me ser muito interessante.
Para este projecto, porque decidiste trabalhar com canções de raiz e não tanto com samples, como fizeste no Solpor?
Parecia-me que era este o caminho para dar um passo em frente e enfocar o som do disco de outra maneira. Conhecer o Xosé Lois Romero, que é um percussionista de renome na Galiza, e poder contar com as suas gravações no estúdio com instrumentos tradicionais era algo que me parecia muito interessante para chegar a um disco diferente. Os samples foram muito importantes no primeiro disco porque era o que me apetecia fazer, mas aqui deixei-os de lado e passa a ser a própria gravação e os sons dos instrumentos de percussão a parte fundamental do disco.
Como se desenrolou a colaboração com o Rodrigo Cuevas [na canção “Veleno”]?
Já nos conhecíamos há dois ou três anos e eu estive quase para trabalhar no seu último disco [Manual de Cortejo], ele escreveu-me mas no final não se deu. Mas ficou aí a coisa de em algum momento fazermos algo juntos. A verdade é que adoro conhecê-lo, acho que é uma pessoa encantadora e no futuro poderemos voltar a trabalhar juntos, porque ficámos muito contentes.
Que pena que não tenhas podido trabalhar no Manual de Cortejo, é um disco muito bom, realmente.
Se eu tivesse trabalhado nele, seria pior! [risos]
Penso que o que atrai as pessoas à tua música é um equilíbrio muito bem feito entre o folclore e a música clubbing. É difícil para ti equilibrar esses dois lados? Tens de tomar decisões conscientes para mantê-lo?
Sim, até há pouco tempo era algo que estava sempre na minha cabeça. Mas talvez neste disco soe mais orgânico que o que fiz até hoje. Penso que de alguma forma a parte tradicional ‘ganha’ a essa parte mais electrónica. Penso que tendo já três lançamentos — contando com os discos maiores e o EP [Misturas] — com esse equilíbrio que tento sempre manter, a partir de agora há já um processo em mim para não ter de depender tanto deste equilíbrio e deixar-me levar para qualquer um dos dois lados. De alguma forma, preciso de libertar-me e não depender tanto de que tudo tenha de ter este equilíbrio. A coerência é importante para mim — se aparecem elementos de um lado e do outro, têm de ser coerentes — mas não tem de ser uma coisa muito equilibrada.
Já actuaste em festivais mais electrónicos, mas também noutros mais tradicionais. Alteras o teu set entre uns e outros?
Nesse sentido, não. Tenho dois sets, um quando vou acompanhado de músicos ao vivo em que as canções com voz têm mais protagonismo e outro em que vou sozinho, com os visuais e em que tento que seja mais de club, porque me parece interessante que, já que os formatos são diferentes, os temas que toque sejam também diferentes. Mas desfruto muito de tocar em festivais e concertos de lugares diferentes e é-me indiferente que sejam de música electrónica ou tradicional, porque aprendes muito com estes públicos que são tão distintos.
Quando eras mais jovem, participavas nas festas tradicionais — procissões, romarias…? O que achavas delas?
Eu gostava de ir lá tocar, passar o tempo e desfrutar. Obviamente, às vezes, há situações que não são tão divertidas. No entanto, quando acabava o dia — porque costumava sair durante a manhã e voltava para casa para comer com a minha família —, voltava satisfeito, porque o meu trabalho era ir tocar e isso sempre me pareceu muito interessante. Às vezes não estamos contentes com tudo ou há dias em que as coisas não saem bem, mas no fim valoriza-se, porque sou músico e não posso ter um trabalho do qual esteja mais orgulhoso.
Já perguntei o mesmo ao Rodrigo [Cuevas], mas gostava de saber a tua opinião. Porque te parece importante salvaguardar as tradições e o folclore?
De alguma forma, creio que no mundo global em que vivemos — cada vez mais agressivo e… não sei, mais tudo — falta identidade às coisas. Obviamente, há discursos contra que a identidade seja demasiado exaltada — e estou de acordo. Acho que não basta ter tradição, mas ser algo que não aborrece ninguém, que entra dentro dos direitos humanos, por assim dizer, que nos identifica como povo, como comunidade, e que, para além disso, podes mostrar ao resto do mundo e, por outro lado, [te permite] conhecer como vivem as pessoas de outros lugares e ter uma sinergia entre tudo isto. Para além disso, nos dias que correm, em que a própria tradição não está tão presente na sociedade, mas é um folclore que devemos “salvaguardar”, penso que se deve revê-la e actualizá-la, misturando-a com elementos da geração mais jovem, para que [a mesma] se interesse e a mantenha.
Como é que as pessoas da Galiza mais conectadas à tradição — quiçá pessoas mais velhas — recebem a tua música?
Recebem-na muito bem! Acho que estão a gostar. Obviamente que lhes custa entender o projecto, porque explicar a uma pessoa mais velha o que fazes, como as máquinas que tens são os teus instrumentos e que não estás tanto a tocar algo, mas sim a modificar sons e a misturar umas coisas com outras… é difícil de entender para gente de outra geração. Mas, se falamos puramente da música, do que é Baiuca, está a conectar-se muito bem com pessoas de diferentes idades. No início, impunha-me um pouco de coragem e respeito pensar como poderiam entendê-lo, mas penso que, de alguma forma, todas as pessoas se dão conta de que precisamos de novos horizontes e novas músicas.
Quão diferente é a sua recepção da da cultura clubbing?
Penso que o que agrada à gente do clubbing é a parte tribal da música tradicional, todas as percussões, as vozes… é isso que mais os atrai, pelas conversas que tive e pelo interesse que depois têm por Aliboria e Lilaina [colaboradores frequentes de Baiuca].
Que te parece que motiva tantos jovens músicos de Espanha a resgatar a música das suas regiões hoje em dia?
Há uma parte importante, que é que cada projecto que sai ajuda e dá impulso aos que vieram antes. Quando eu comecei há 3 anos, não se falava tanto de tudo isto e era algo mais estranho, mas desde então até hoje, surgiram muitos projectos interessantes. Não sei quais são as motivações de cada um, obviamente, mas suponho que sejam iguais às minhas: conectar-se com a sua própria terra, com a sua cultura e fazer algo que os diferencie do resto do mundo. Mas também acho que cada projecto que sai ajuda outro. Com o flamenco, a Rosalía foi um impulso para que começassem a surgir mais projectos desse estilo e acho que no resto da península [Ibérica] está a passar-se o mesmo. Acho que começaremos a ver mais projectos como o do Rodrigo [Cuevas] e outras coisas que vão por essa onda. Por exemplo, começo a encontrar produtores super interessantes no norte da península; há um rapaz que se chama Idoipe, há uma editora nova que se chama Samain Records, que também mistura estas tradições da península — inclusive penso que há alguns projectos portugueses que fazem parte das suas compilações. Começam a aparecer coisas muito interessantes.
Vês-te a explorar a cultura de outras regiões espanholas ou mesmo de outros países?
Sim, desde que mantenha um pouco a identidade da Galiza, interessa-me o que está perto. Interessam-me Portugal, as Astúrias, o norte da península e até certas ligações que se possam dar com outras tradições da Europa; por exemplo, fui encontrando semelhanças na Roménia ou em Itália. Então, quaisquer conexões que possa encontrar [com a Galiza] poderão aparecer em algum projecto de alguma forma, em algum momento.
Tens alguma colaboração de sonho que gostasses de fazer?
A verdade é que não penso muito nisso. Há um artista do qual gosto muito e que é uma referência desde que eu era pequeno, que se chama Carlos Nuñez e é um músico muito conhecido na Galiza. Não sei, em algum momento gostaria de poder fazer algo com ele. Mas é como te disse, não é algo que tenha muito em mente, deixo-me levar e oxalá possam aparecer coisas interessantes.
Há pouco tempo colaboraste com as Haēma, na canção “Adélia”. Como surgiu essa colaboração?
Eu conheci-as através de um rapaz da minha terra, que tem um projecto chamado Néboa. Acho que eles se conheceram no Conservatório de Lisboa e ele apresentou-nos. Falámos de fazer algo e começámos a trabalhar tranquilamente. Estivemos praticamente um ano a trabalhar à distância, com muita calma, e acho que por isso saiu um tema tão bonito, porque saiu sem pressa. Fiquei muito contente, gosto muito.
E como conheceste o trabalho da Adélia [Garcia]?
Foram que elas [Haēma] que mo mostraram e, não sei, pareceu-me muito interessante procurar essa conexão com o norte de Portugal, porque há muitas semelhanças com a Galiza.
Tens alguma boa memória de Portugal, seja em concertos ou alguma viagem que tenhas feito?
Sim, gosto muito de ir ao Porto. Em geral, adoro o Norte. Algumas partes ainda são desconhecidas para mim e tenho muita vontade de regressar. Não conheço a costa e apetece-me descobrir mais.
Baiuca tem um concerto marcado para Vila Nova de Gaia, no dia 3 de Setembro, sendo que o recinto ainda está por anunciar.