Entrevista. Mallu Magalhães: “O que me encanta na esperança é o facto de não solucionar o problema, mas o desejo de viver apesar dele”
Mallu Magalhães tem um novo álbum. Curioso que, ainda antes de todo o pandemónio pandémico, o título deveria ser “Felicidade”, mas a intenção foi mudada para “Esperança”. Para Mallu, a esperança é, nem mais nem menos, do que um sentimento completo que carrega as tristezas do ser humano, por isso, somos humanos, mas o desejo de vivermos apesar disso e dos problemas que surgem. Não se trata de uma promessa de solução, mas, antes, a capacidade desse apesar do que vivemos. Segundo afirma, “O que me encanta nessa palavra, nesse conceito, é justo isso, o facto de ser completa, de carregar o problema e não, necessariamente, a sua solução, mas o desejo de sobreviver àquilo. O não solucionar o problema, mas o desejo de viver apesar dele.” O álbum com a colaboração de Nelson Motta e Preta Gil. Conta, igualmente, com dois vídeos dos temas de avanço, que são arte e falam por si só, com as múltiplas referências que carregam. Aliás, o novo álbum de Mallu também se caracteriza por isso, pela sua multiculturalidade, não a “América Latina”, também ela, cheia de cor e plural. A Comunidade Cultura e Arte falou com a artista, na entrevista que se segue.
Como foi voltar aos concertos depois do “lockdown”?
Foi muito emocionante! Acho que qualquer músico, qualquer público, qualquer pessoa que participa desse momento, desse reencontro, sente uma emoção especial porque, realmente, é muito intenso. É uma parte muito grande da minha personalidade, é uma parte muito importante da minha vida e, quando voltei, pareceu que tinha toda uma metade de mim adormecida. Foi muito curioso quando ela acordou de novo e, sei lá, muita coisa se resolveu e muita coisa fez sentido. É muito bonito. Já tinha um carinho, respeito e valorizava muito a música, a presença da música, o papel da música para mim e para o próximo, mas com o lockdown, acho que esse papel veio mais à tona, ainda, e ficou mais evidente.
Conseguiste perceber se o público também já estava ansioso por esse regresso?
Acho que sim [risos]. Senti isso no público, também. As pessoas estão muito calorosas, muito emocionadas, muito emotivas! Estão bastante presentes nos shows — estão sempre cheios de gente — então, sinto, assim, um carinho muito especial. Sinto que todo o mundo está vivendo essa emoção que estou vivendo. Há uma reconexão com uma parte que a gente já tinha esquecido e é muito importante.
Quando ouvi, pela primeira vez, o tema “América Latina”, a primeira coisa em que pensei — tendo em conta, principalmente, a cadência e o ritmo — de forma bastante instintiva, foi em Manu Chao. Isso faz qualquer sentido para ti?
Ah, Manu Chao! Faz todo o sentido, sim. Faz sentido para mim, também, porque é uma grande referência musical para mim! Talvez, pela quantidade de vezes que escuto o trabalho dele, acabei por interiorizar aquela estética e por algum canto tinha de sair.
Depois, há, também, uma ambiência mais psicadélica. Acho que a grande diferença deste álbum em relação aos outros, é mesmo essa presença mais forte da electrónica e uns ambientes mais psicadélicos.
Sim, tem tudo a ver. Essa sua leitura é precisa, até. Foi uma intenção minha quando fiz o álbum — quis fazer um álbum que tivesse espaço para as experiências que comecei a fazer, em casa, e com as minhas novas referências. Comecei a fazer música no computador, por conta da Luísa dormir soneca, então, não podia acordar ela e passei a fazer música no phone. Aí, fui tomando muito gosto pelos elementos electrónicos, por computador e, assim, fui construindo o álbum. Quis que os elementos, no meu computador, tivessem espaço no álbum e acho que o Mário captou, totalmente, essa intenção e abriu o terreno para que, também, pudesse colocar esses elementos.
O vídeo do tema [América Latina] acaba por ser, também, muito interessante. Uma vez que até te encontras ligada às artes plásticas, o vídeo capta muito bem, através dos vários elementos, essa tua essência.
Sim, total. Essa mistura, assim, das referências fundamentais, as referências do Brasil — latinas, por assim dizer — as referências da minha base cultural mas, também, com todo um sonho de futuro.
Mas curioso que o tema marca todas as tuas referências, da tua infância, e bem ligadas ao Brasil, mas abres o leque a toda a América Latina e tudo o que representa. Porquê?
É curioso, e é curioso para mim, também, porque quando comecei a compor a música, pensei, “nossa, o Brasil faz parte de um continente, da América do Sul, então, é um continente muito interessante, muito plural, um continente muito colorido e rico, muito bonito. Fiquei pensando sobre isso e o resultado do álbum é isso mesmo, o reflexo da multiculturalidade que a América Latina tem.
Quando tu pensas numa música, consegues, sempre, associá-la a uma imagem? Uma música, para ti, pode despertar sensações visuais? Acho que os temas de avanço do álbum reflectem muito isso.
Acho, até, que a sua pergunta contém, já, a resposta. Sim, é bem isso que você disse. Quando a música aparece na minha cabeça, é como todo um convite para uma viagem. É como se abrisse uma janela e estivesse entrando naquela ideia, naquele mundo. Aquilo vem com uma série de outros elementos, com uma ideia visual, uma ideia de cena, um acontecimento, um cheiro, uma poesia, um ambiente, Enfim, quando penso numa música, é uma ideia inteira. A ideia de passar isso para um clipe ou, até, para uma capa é, justo, adicionar elementos daquele conceito para que fique mais evidente, mais forte.
Mas nas letras de alguns temas do álbum, há uma noção de que a pessoa carrega um sentimento de que já nada poderá melhorar, aquele sentimento de que bateu no fundo, e depois tu ofereces o outro lado da moeda – de que ainda pode ser possível.
Nem sei se seria essa visão de altos e baixos do movimento da esperança. Diria, antes, uma visão mais completa do sentimento esperança. Acho que o que me encanta nesse sentimento é, justo, a complexidade dele. É um sentimento completo porque carrega uma tristeza que é normal no ser humano, natural da nossa jornada, que carrega medos mas carrega, também, toda uma vontade de vida. Carrega, acima de tudo, uma energia. Acho que é uma potência, é muito mais forte, muito mais potente do que, apenas, um sentimento positivo. Acho que o sentimento positivo é um dos elementos da esperança. O que me encanta nessa palavra, nesse conceito, é justo isso, o facto de ser completa, de carregar o problema e não, necessariamente, a sua solução, mas o desejo de sobreviver àquilo. O não solucionar o problema, mas o desejo de viver apesar dele.
Colaboraste, no tema “Barcelona”, com Nelson Motta. Interessante, porque está ligado a grandes artistas como Elis Regina ou Tim Maia.
O Nelson, sim, colaborou com vários artistas. É compositor e, antes de ser compositor, até, era jornalista. Sempre esteve muito envolvido com a cultura brasileira desde a bossa nova, passando pelo rock — já foi produtor, ainda é. Então, ele tem uma longa jornada, uma longa carreira, uma grande participação na cultura brasileira. Sempre tive a figura dele como referência, sempre gostei muito da Tropicália, do movimento tropicalista, da Bossa Nova, lia os livros dele, lia os artigos dele e, depois, o via como compositor de grandes hits do Brasil. Admirava muito ele, a figura, a maneira de escrever, a visão dele do mundo. Estava fazendo “Barcelona” e sobrou aquele solo no momento instrumental e, então, nesse momento instrumental imaginava o Nelson recitando alguma coisa. Fui no Youtube e procurei ele recitando. Coloquei a voz dele e ficou óptima. Aí, pensei, tenho de chamar ele, e chamei.
“Quero, Quero” seria a música perfeita para ouvir num mundo pós-pandemia, quando o problema do vírus estivesse resolvido, em definitivo. O próprio vídeo deu, um bocado, aquela ideia das pessoas numa janela do zoom, a partilharem os seus melhores momentos. Comunicar o melhor das pessoas, embora estando longe. Foi um dos objectivo?
Acho que a gente acabou fazendo um recorte porque foi um pouco difícil seleccionar as cenas. Foram muitas cenas, muitas participações, então, a gente teve de fazer um sorteio. Foi um pouco, na verdade, na sorte porque os próprios fãs acabaram por optar por cenas nos espaços exteriores, por serem bonitas — as folhas, o verde — então, eu não sei, na verdade, não diria que foi intencional a escolha do espaço, mas acho que a alegria das pessoas, a felicidade delas, da doçura, essa alegria de viver, essa felicidade, isso é mérito delas mesmo. Óbvio que a gente escolheu os momentos mais cativantes, mais carismáticos, mas as pessoas, realmente, trouxeram esse clima feliz e mais esperançoso.
Co-realizaste o vídeo, certo?
Co-realizei, mas o Bruno Llogti é que editou para mim, pedi ajuda para ele. Tive as ideias, um dia, e pensei, “tenho de fazer isso acontecer”. Escrevi no instagram, as pessoas responderam e enviaram um monte de vídeo e falei, “Bruno, socorro! Preciso de alguém para editar isso.” Ele ajudou e, depois, ficou incrível, então, não teve muita realização, foi uma coisa muito rápida, não teve muito planejamento.
O que podemos esperar do concerto no “Campo Pequeno”, dia 3 de Dezembro?
Ah, o concerto está muito bonito! Sou suspeita para falar, mas está muito bonito, mesmo. A gente já tem tocado noutras cidades, já fez outros concertos com esse cenário, essa formação, esse repertório, e está muito bonito. O show está muito emocionante porque tem os momentos dos álbuns anteriores, tem momentos mais reflexivos, mas tem, também, momentos dançantes, felizes, única e exclusivamente alegres. Acho que está, assim, um retrato da esperança — isso que já falámos de ser um sentimento inteiro — e acho que o show é isso. Ele representa a mim como ser humano e acho que essa entrega é visível. Procura entregar os momentos mais bonitos de todos os álbuns e fazer um concerto que seja um reflexo de toda essa trajectória.