Vinicius de Moraes, o poetinha dos nossos corações
Conjugando a devoção do amor, Vinicius de Moraes foi um dos mais célebres compositores musicais de terras brasileiras, assente numa poesia de pruma e de bruma. O canarinho cantou e fez cantar, para além daquilo que fazia o seu corpo consumir desde cedo. Da sua filosofia descritiva, da sua perceção do amor multiforme e multinível, cresceu e desenvolveu-se a trajetória que daria origem ao célebre e delicado estilo musical da Bossa Nova. Fez parte de um sem número de álbuns, com um sem número de almas melódicas e criativas do grande país da América do Sul. Vinicius, conhecido por “poetinha”, foi e é, desta feita, uma referência para, mais do que aqueles que escrevem e sentem música, os que mais querem amar.
Marcus Vinicius da Cruz e Mello Moraes nasceu a 19 de outubro de 1913, num subúrbio do Rio de Janeiro. Filho de um funcionário público e de uma pianista amadora, cresceu com fragrâncias de uma inspiração de todo o Corcovado, para além do restante traçado da ampla referência geográfica do Brasil. Ainda no Rio, passaram a viver em Botafogo, estando mais perto dos avós do futuro músico. Foi a partir do avô materno que teria acesso a uma loja maçónica, que o levou a ampliar horizontes de pensamento e de sentimento. Entretanto, iria separar-se dos pais, com estes a migrarem para a Ilha do Governador, por força da revolta do Forte de Copacabana, em que vários militares se insurgiam com o estado da política republicana vigente.
Foi um período em que, apesar de privados dos agentes paternais naturais, se encontrou com a paixão da música. Durante o tempo em que frequentou um colégio jesuíta, em 1924, passou a cantar no coro, e a redigir algumas peças de teatro, para além de firmar amizade com os irmãos Paulo e Haroldo Tapajos, para quem iria compor as primeiras nove músicas. Cinco anos depois, concluiu o ensino secundário, e ingressou na Universidade do Rio de Janeiro, na sua Faculdade de Direito. Aqui, formaria um novo elo muito vincado, desta feita com o futuro autor Octavio de Faria, então líder do Centro Dom Vital, um grupo de pensadores católicos associados à direita. Foi este que incentivou Vinicius a dar, para além da sua tessitura musical, comprimento e volumetria à vocação literária, e encaminhou-o para várias viagens com o seu grupo, politicamente à direita, um pouco à imagem do Integralismo, que incluiu, em Portugal, e entre outros, o ditador português António de Oliveira Salazar. Em 1933, ano de conclusão da graduação do brasileiro, em Ciências Sociais e Legais, entregou a sua sensibilidade à poesia, lançando as obras “Caminho Para a Distância”, e “Forma e Exegese” (uma obra de cariz místico), sob a tutela de Faria, que o compararia ao poeta modernista Augusto Frederico Schmidt. A poesia que redigia primava pelo seu simbolismo, embora bebesse do misticismo católico, e procurava a redenção em relação à sedução sexual. Músicas que se destacaram neste período foram “Loira ou Morena”, “Canção da Noite”, ou “Dor de uma Saudade”. Nesta década, tornava-se amigo dos poetas modernistas Oswald de Andrade, Mário de Andrade, e Manuel Bandeira.
“DIALÉTICA
É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que sou triste…”“Nova Antologia Poética” (1954)
Porém, nem tudo seriam rosas, pois o escritor tornar-se-ia atraído intimamente por Vinicius, o que limitou a amizade entre ambos. Não obstante, e atendendo, até, às tentativas de suicídio por parte de Faria, escreveu dois sonetos em sua honra, o último deles já nos anos 60. Em 1936, o compositor tornou-se funcionário do Ministério da Educação e da Saúde, embora tenha deixado estas funções dois anos depois, ao receber uma bolsa de estudo do British Council, para estudar o idioma inglês e a sua literatura na Universidade de Oxford. Com as bases que lá abrangeu, abdicou do não-uso da rima, para além do verso livre, privilegiando, cada vez mais, a prática do soneto, com bases petrarquistas (do poeta Petrarca), shakespearianas e camonianas. Ainda em Inglaterra, redigiu a coleção “Novos Poemas”, e de lá se casou por procuração com Beatriz Azevedo de Mello, com quem teve dois filhos, de seus nomes Pedro e Susana, esta futura cineasta.
No seu regresso, estaria associado à geração de ’45, um grupo de escritores dos anos 30 e 40 que refutava o modernismo em relação ao tradicionalismo da construção, da expressão e da significação. Partilharia, desde então, uma proximidade lírica a João Cabral de Melo Neto, na qualidade técnica e meticulosa da sua poesia, embora os dois procurassem atingir objetivos díspares. Enquanto este apontava à realidade objetiva, Vinicius não esqueceu as suas origens, e desejava exprimir a subjetividade do amor sexual, consubstanciado numa métrica decassilábica, de inspirações advindas do luso Luís Vaz de Camões. Tendo voltado no ano de 1941, tornou-se crítico cinematográfico para o jornal “A Manhã”, assim como assíduo colaborador do jornal literário “Clima”, mas encontrando o seu grande sustenho financeiro no Instituto de Segurança Social, na área das pensões. Pouco tempo depois, seria responsável por acompanhar Waldo Frank, um escritor norte-americano, numa viagem pelo norte do Brasil. Esse contacto muito estreito que teria com ele, para além de privar com a pobreza e a depauperação daquela vasta região da sua nação, que o conduziu para a esquerda no mapa dos ideais políticos, assumindo o antifascismo.
Em 1943, seria admitido, à segunda tentativa, no Ministério das Relações Exteriores, tornando-se vice-cônsul em Los Angeles, nos Estados Unidos. Vinicius aproveitou esses ares californianos para dar forma a “Cinco Elegias” (1943), e “Poemas, Sonetos e Baladas” (1946, contando com as ilustrações de Carlos Leão), com uma linguagem mais simplificada, mas sem prescindir do excitante e do sensual. Voltaria ao seu país, somente, em 1950, com a morte do seu pai, mas depressa se voltaria a posicionar nessa cidade do ocidente da América, e a escrever mais dois livros. Estes foram “Livro de Sonetos”, e “Novos Poemas II”, motes implícitos para um maior périplo pelo mundo, passando por Paris e Roma no seu serviço de consulado, onde visitava o pai do futuro cantor Chico Buarque, o historiador Sérgio Buarque de Holanda. Em 1951, e após divorciar-se, casar-se-ia com Lila Maria Esquerdo e Boscoli, com quem teria dois filhos. O seu trabalho esporádico em publicações culturais não cessaria, redigindo algumas críticas cinematográficas para o jornal “Última Hora”.
Por via deste trabalho, seria nomeado delegado no festival de cinema de Punta del Este; para além de receber uma comissão para estudar a gestão dos festivais de Cannes, Veneza, Locarno, e Berlim, de forma a preparar aquele que seria o Festival de Cinema de São Paulo, no 400º aniversário da cidade. Ainda no cinema, viu “Orfeu da Conceição” adaptado à sétima arte, com “Black Orpheus”, de Marcel Camus, a vencer um Óscar e um Palme d’Or. A música “A Felicidade” seria um êxito, à imagem do que seria grande parte da composição musical de Vinicius. Para além disso, o filme “Un Homme et une Femme” (1966, de Claude Lelouch) traria alguns êxitos deste para a ribalta, sinónimo do que era um caminho de grande prestígio para o brasileiro, embora usada sem a autorização do compositor
Os meados dos anos 50 encaminharam-no para Paris, onde se tornou secretário na embaixada do seu país. Como outrora, não descartou a sua composição musical, redigindo o seu primeiro samba “Quando Tu Passas por Mim”, composta com António Maria. A sua versatilidade levá-lo-ia a redigir peças para o compositor de música de câmara Cláudio Santoro, para além de encenar o musical “Orfeu da Conceição” (1956), que sucederia a “Antologia Poética” (1954). Pouco tempo depois, iria conhecer, por sugestão de Lúcio Rangel, um dos seus mais fiéis e devotos parceiros de trabalho e de vida na alma do pianista António Carlos Jobim, que aceitou cantar várias das músicas que deram forma a este projeto de Vinicius, tais como “Se Todos Fossem Iguais a Você”, ou “Um Nome de Mulher”. Ainda não desligado de Paris, seria transferido de lá para a UNESCO, em 1957, seguindo para Montevideu no ano seguinte, e para o seu país logo depois. Em solo que o viu nascer, casar-se-ia, pela terceira vez, com Maria Lúcia Proença.
É nesta fase que o mote para a formação da Bossa Nova é dado, muito sustentada na parceria de composição e de interpretação de Jobim e de Vinicius, que se colmatava em músicas, como “Chega de Saudade”, “Outra Vez”, “Estrada Branca”, entre outras. Numa fusão musical entre samba e jazz, sem esquecer os toques da música clássica impressionista, foi sintomática de um crescimento urbanístico do final dos anos 50, com letras leves e descomprimidas, com um lirismo suave mas contagiante. A primeira pedra lançada na construção deste movimento foi dado com o álbum “Canção do Amor Demais”, da cantora Elizeth Cardoso, reunindo as faixas supramencionadas. Esse surgimento traria, consigo, um artista emergente no contexto da música canarinha, de seu nome João Gilberto, um violinista que pautou o registo instrumental da Bossa a partir do seu violão. As inúmeras composições do duo acima mencionado tornaram-se replicadas por Gilberto, que seria o responsável pela perpetuação lírica e musical da essência da Bossa. Vinicius veria composições suas interpretadas por artistas, como Joel de Almeida (“Loura ou Morena”), Tito Madj (“Se Todos Fossem Iguais a Você”), Agnaldo Rayol (“Serenata do Adeus”), e Albertinho Fortuna (“Eu Sei que te Vou Amar), entre outros mais.
Outros seriam aqueles que viriam a interpretar os seus remendos, como Toquinho, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Chico Buarque, já numa espécie de continuidade inspirada e culminada com a Música Popular Brasileira (MPB); para além dos estrangeiros Quincy Jones, Frank Sinatra, e o saxofonista Stan Getz, aliciados pela doçura e ternura do género. Outras das músicas que se selariam como inesquecíveis no panorama da Bossa Nova seriam as eternizadas “Insensatez”, “Samba do Avião”, “Só Danço Samba”, e “Garota do Ipanema”, que seriam interpretadas pelo próprio Vinicius a partir de 1962, perante audiências de pequeno número, mas onde as contemplaria com êxitos que, apesar de desconhecidos então, ressoariam para lá dos tempos. “Samba da Benção” atingiu o pináculo dessas composições ilustrativas da bagagem de um mundo condensado em vida e em alma. A sua voz, muito nasal e fustigada pelo vício do tabaco e do álcool, seria compensada pelo convite que fazia a diferentes e emergentes talentos vocais de origens canarinhas, tais como Nara Leão (“Samba do Carioca”), e a atriz Odete Laraseu (o álbum “Vinicius e Odete Lara”).
Um ano depois, deixava de ocupar os palcos, ao voltar a representar Brasil na UNESCO, seguindo como rescaldo do seu quarto casamento, este com Nelita Abreu Rocha. O compositor começou a emprestar a voz àquilo que compunha, ao lado de Jobim, como em “Água de Beber” ou “Lamento no Morro”. Os anos 60 consolidavam-se, assim como os 70 espreitavam, e Vinicius colaborou com os emergentes compositores Baden Powell – composição de uma série de músicas designada “Afro Sambas”, que inclui “Canto de Ossanha” e “Canto de Iemanjá” – Carlos Lyra (“Você e Eu” e “A Primeira Namorada”), e Francis Hime, e com Elis Regina, no célebre hit “Arrastão”. No palco, trouxe “Procura-se uma Rosa”, ao teatro Santa Rosa, contando com a colaboração da autoria de Pedro Bloch e de Gláucio Gil, sendo adaptada, pouco depois, ao cinema italiano. Com a Banda do Corpo de Bombeiros fluminense, gravou “Serenata do Adeus”, pouco depois de “Rancho das Flores”.
O livro “Para Viver Um Grande Amor” acompanhou “Canção da Eterna Despedida” (com Jobim) e “Em Noite de Luar” (com Ary Barroso). Um outro dos seus colaboradores seria Pixinguinha, elaborando, com ele, a banda sonora de “Sol sobre a Lama”, de Alex Viany. O seu regresso deu-se em 1964, numa boate chamada Zum Zum, que obteve grande repercussão no meio, e que deu o mote para a continuação de uma carreira envolvida em festivais e programas. Muitas das músicas que compôs então inseriam-se na dinâmica de protesto da época, servindo como hinos para várias organizações de contestação juvenil e estudantil. Ainda no cinema, trabalhou no guião de “Garota do Ipanema”, de Leon Hirszman; recebendo uma homenagem, em 1965, no Teatro Municipal de São Paulo, contando com uma plenitude de aristas brasileiros.
“Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto – pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer «baixo» seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia – para viver um grande amor.
É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz que diz que – que não quer nada com o amor.
Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor.”“Para Viver um Grande Amor” (1962)
Todavia, um forte revés surgiu neste período da sua vida, pois foi forçado a reformar-se do serviço público em 1969, com 55 anos. Estava em Lisboa, a dar concertos ao lado de Chico Buarque e de Nara Leão, quando tomou conta da notícia de que, após 26 anos de trabalho, seria finalizada a sua carreira. Nessa estadia na capital portuguesa, seria contestado por uma falange de apoio salazarista nos estudantes, enfrentando-a com a recitação de versos do poema “Poética I”, a saber: De manhã escureço/De dia tardo/De tarde anoiteço/De noite ardo. A resposta desses académicos seria marcante, com eles a estenderem as capas dos seus trajes, simbolizando reverência para com a figura do poeta. Apesar disso, gracejou quanto ao sucedido, tendo resultado de uma purga efetuada pelo governo, que apontava aos homossexuais e aos alcoólicos, acabando por ser ilibado postumamente. Não deixou de lançar mais um livro, entretanto, com “Obra Poética” (1969).
A sua carreira musical não se deixou esmorecer, assim como a conjugal, contraindo matrimónio com três mulheres diferentes; e viajou pelo mundo, na companhia de Buarque, de Dorival Caymmi, e de Oscar Castro-Neves, estes dois artistas de vulto na sucessão da música brasileira. No entanto, foi com Toquinho, violinista, que permaneceu de forma mais regular e consistente, e com quem trabalhou no lançamento de alguns álbuns, para além de encontros próximos e estreitos com o público. Neste périplo por todo o país e pelo mundo, e acompanhado por uma garrafa de whisky, o compositor contava histórias da sua vida, na sua fluência no português, no inglês, no francês e no espanhol. A dupla lançou êxitos de vulto, tais como “Tarde em Itapoã”, “Morena Flor”, “Testamento”, e “Como Dizia o Poeta”.
Seria um período em que colaborava, também, com Tom Jobim, e a cantora Miúcha (“Pela Luz dos Olhos Teus”). Numa fase de maior reconhecimento, embora a virtude criativa se mantivesse, foram mais os louvores que os novos sabores na carreira do compositor, que se viu homenageado em concertos discografados (“Vinicius En La Fusa”). Tendo gravado com Maria Bethânia, também o fez com Chico Buarque, destacando-se “Gente Humilde”. Ainda ao lado de Toquinho, fez a banda sonora da telenovela “Nossa Filha Gabriela”, e participou na de “Fogo Sobre Terra”. “Toquinho, Vinicius e Amigos” endereçaria um voto de gratidão pelas profícuas parcerias que foi estabelecendo durante todo o seu caudal de vida, e envolveu Maria Bethânia (“Apelo” e “Viramundo”) Cyro Monteiro (“Que Errou”), e Sergio Endrigo (“La Casa”). 1975 traria um álbum gravado em Milão (“O Poeta e o Violão”), contando com a parceria dos maestros Sergio Bardotti e Luis Enríquez Bacalov. Dois anos depois, lançaria mais um livro, com “O Breve Momento”, selando a alcunha de um poetinha vivido e sentido por todo o mundo, incluindo em Portugal, e ao lado de Amália Rodrigues (“Vinicius e Amália”, de 1978)
Vinicius partiria a 9 de julho de 1980, na sua cidade, no Rio de Janeiro, conformado com os seus fantasmas e prazeres menos benéficos para a sua saúde. A tratar do álbum “Arca de Noé”, adaptado do seu livro de poesia infantil, seria traído por um cansaço traiçoeiro, e por um banho do qual nunca iria sair. Com 66 anos, e ao lado da sua última esposa Gilda de Queirós Mattoso, para além do seu parceiro Toquinho, partiu para lides líricas, numa transmutação em transcendência para lá do sentimento que foi explanando em todos os seus versos e sonetos. Uma série de musicais e de homenagens seria efetuada para a efetivação de um legado perpétuo, sem cessar para lá da Copacabana, onde o morro nunca fez sombra.
Vinicius de Moraes, o poetinha. Mais do que um nome, um traçado de magia, de um lirismo articulado com o saber amar, de várias formas, em várias fases. A plenitude do amor transmite-se nessa pluralidade, capaz de se sobressair na folia do samba, e na euforia do coração compreendido. Entre versos e estrofes consentâneos com o ritmo dos fluídos invisíveis do mundo, Vinicius capacitou-o de perceber como se ama, no receio camuflado e superado pela aura de consagrar a poesia do amor. Entre missões políticas e mensagens em melodias, um Brasil de pulso firme mas pulsante, no ar vibrante e apaixonante do amor que ama até ao fim que nunca chegará.