O Brasil por dentro e por fora pelo olhar histórico e crítico de Gilberto Freyre
No pensamento construído na academia brasileira, destaca-se o vulto de Gilberto Freyre, sociólogo, antropólogo, historiador. Tudo isto não se sobrepunha à prática do jornalismo, da poesia e da pintura, sem invalidar uma série de notabilizações que recebeu pela sua carreira académica. A visão que o canarinho efetuou da sua realidade íntima, dentro do Brasil, mas também sobre Portugal, notabilizou um rosto que marca, ainda hoje, a forma como vemos a lusofonia territorial e aqueles que a protagonizam.
Nascido a 15 de março de 1900, viria a morrer a 18 de julho de 1987, no estado do Pernambuco, no Recife, cidade onde também nasceu. Descendeu de famílias antigas, que remontavam aos primeiros colonizadores portugueses, tendo, por isso, uma herança genética que também se cruza com os espanhóis, os holandeses e os próprios indígenas. Cresceu num ambiente citadino, embora convivendo proximamente com a ruralidade, tornando-se, crescentemente, protestante batista, religião que deixou ainda na sua juventude. Isto coincidiu com a sua mudança para os Estados Unidos, recebendo uma bolsa para se licenciar em artes liberais, na Universidade Baylor, no estado do Texas. A dificuldade que teria no escrever nos primeiros anos de vida ajudou-o a construir uma ferramenta importante na sua expressão investigativa, recorrendo aos desenhos e ao “imagismo” para a explicação das suas ideias.
O mestrado foi realizado na Universidade de Columbia, numa tese intitulada “Vida social no Brasil nos meados do século XIX”, lançada no quinto volume da “Hispanic American Historical Review”. Aqui, conheceu Franz Boas, antropólogo norte-americano de referência para o futuro trabalho de Freyre, que se transpunha ao estudo sociológico tradicional, e que abraçava a antropologia social como área de atuação. Um estudo do ser humano ativo, presente no terreno, consciente das transformações históricas e sociais que levaram a identidade brasileira a estar desenhada da forma que está. Isto enquadrava um estudo minucioso dos hábitos, comportamentos e tradições, singulares e individuais, que tornava a investigação mais precisa e rigorosa, embora assumisse toda a documentação possível nessa análise, inclusive livros de receitas, confissões, cartas, jornais e poesia.
A sua carreira iniciar-se-ia, entre alguns artigos em jornais locais, com o lançamento de “Casa-Grande & Senzala” (1933), que escreveu durante um périplo que fez por vários países, durante o seu exílio, onde consta Portugal. A casa-grande (casa de família dos grandes proprietários rurais no período colonial brasileiro) surge como referência na formação sociocultural do Brasil, ao lado da senzala (alojamento para os escravos que trabalhavam nas suas propriedades). A sociedade brasileira resulta, assim, de um percurso de miscigenação entre os portugueses e demais indivíduos de etnia branca com outros tantos de etnia negra, vindos de África, e com os indígenas que já habitavam no Brasil. Esta fusão permitia a constituição de algo novo com variadíssimas fontes de construção, em que os valores cristãos faziam da mulher indígena a mãe de família, responsável pela vida doméstica e utilitária de cada núcleo familiar. A escrita sentida e estilística de Freyre ajudou a que o seu discurso profissional se tornasse informal e livre o suficiente para o entendimento público, compreendendo temáticas do dia-a-dia, marcantes na definição do ser brasileiro. Os preconceitos pré-existentes nesta abordagem da mestiçagem tornaram-se, de igual forma, marcante no percurso interpretativo do passado canarinho.
A casa-grande apresenta o patriarcalismo como o padrão predominante da organização sociopolítica do futuro país, no seu período colonial, em que o patriarca estabelece o seu domínio em todos aqueles que vivem na sua casa-grande, desde familiares a trabalhadores. O “bom senhor” não é mais do que uma referência a um senhor que, embora permissivo, também o era às custas do conformismo dos seus escravos. A miscigenação permite que a diferenciação racial torne o povo brasileiro ainda mais identitário e livre no percurso do seu desenvolvimento nacional. O determinismo racial é refutado, apresentando-se uma democracia racional, sustentada em relações interétnicas, que suavizam a influência da escravidão na constituição desta nação. Por via disto, seria chamado às Nações Unidas, em 1954, para apresentar medidas de mitigação das tensões raciais que se faziam sentir um pouco por todo o mundo, em especial nos Estados Unidos. A teoria da mestiçagem também seria, algum tempo antes, incorporada por Getúlio Vargas, a quem interessava a centralização de todas as regiões do território, reprimindo simbologias próprias das comunidades desses futuros estados.
Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado (…)
“Casa-Grande & Senzala” (1934)
Após alguns cargos jornalísticos e políticos, chegou a redigir poemas inspirados na cidade de Salvador da Bahia, uma das principais referências inaugurais do período colonial brasileiro. Porém, o pensamento de Gilberto Freyre ultrapassa quaisquer limitações geográficas que o amplo país do Brasil pudesse causar, e desdobra-se no entendimento dos portugueses, em obras como “O Mundo que o Português Criou” (1940) e “O Luso e o Trópico” (1961). Estuda, assim, o papel de Portugal na formação da primeira civilização moderna nos trópicos, onde se encaixa a definição de “luso-tropicalismo”, apresentada na relação que o país estabelece com esses trópicos. Na sua análise, o pensador visualiza a capacidade adaptativa do povo português nessas realidades sociogeográficas, muito por via da empatia que vai criando com esses povos.
Freyre aponta, como caraterística particular, a sua plasticidade, resultante de uma origem étnica que é diversificada na sua constituição, para além de uma continentalidade muito íntima dos africanos e de um contacto passado profundo com os mouros e os judeus. Este conceito seria aplicado aos olhos do Estado Novo nacional e dos seus métodos de propaganda, refutando a herança de outras culturas e de outras etnias, mas louvando a unidade nacional. Seria, assim, um argumento usado contra o processo de independência das colónias, que seria atenuado consoante a democratização se fazia sentir, e o uso da perspetiva se foi tornando numa interpretação errada da sua proposta. Aos nossos dias, chega o legado de uma nação hospitaleira, fraterna e tolerante, que se adapta facilmente aos de fora.
Há entre ele [o português] e os trópicos uma espécie de aliança íntima ou confabulação secretamente maçónica de um grau ou de uma profundidade ainda não alcançados por outros europeus.
“Aventura e Rotina” (1953).
O seu trabalho foi-se desenrolando com o Brasil nos diferentes contextos, em escalas geográficas e sociais, entendendo o papel brasileiro na extensão da América e da sua proximidade ao iberismo e ao hispanismo, em artigos avulsos em jornais de Pernambuco, de Rio de Janeiro e de São Paulo. A multiculturalidade brasileira acolhe, assim, o americano, o índio e o europeu, na multiplicidade que sustenta uma identidade diversa e democrática na sua constituição. Esta abordagem, para lá de “Casa-Grande & Senzala”, começou em “Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife” (1934), apresentando, não só de forma histórica, mas de forma pessoalizada e lírica, a cidade do Recife, onde nasceu e cresceu, contando com ilustrações do artista Luís Jardim. De igual forma, fez parte da idealização do primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo, datado de 1926, procurando restituir o valor do “seu” nordeste brasileiro perante as forçosas dinâmicas modernistas que vinham da Europa e dos Estados Unidos.
Esta obra foi o exemplo de uma fase em que se direcionou para o estudo da realidade local, relevante para o entendimento da sociedade como um todo, assim como “Nordeste” (1961). O trabalho resultou de uma aprofundada investigação da condição do trabalhador rural nessa região brasileira, no auge de uma transição da sociedade rural para uma vertiginosamente urbana. Refletia o trabalho desenvolvido na promoção do primeiro Congresso Regionalista do Recife, onde procurou sintetizar as vanguardas modernas com o respeito pelos preceitos passados. Ainda no prosseguimento de uma análise mais ampla, desse Brasil rural no período colonial, chega “Sobrados e Mucambos” (1936), que aborda a decadência do patriarcado rural no século XIX, naquilo que era uma luta diante das relações de trabalho desse período. O título refere-se à mudança dos aristocratas das casas-grandes para os sobrados, residências urbanas amplas, com mais do que um piso; e com os escravos a passarem a viver, também nas zonas urbanas, em casebres de palha e nos emergentes bairros.
Em 1945, “Sociologia” apresenta a estrutura metodológica do trabalho investigativo de Gilberto Freyre, enunciando as interligações e as delimitações do seu paradigma de estudos. Este seria um par de parênteses importante no prosseguimento da revisão histórica feita, aos olhos sociológicos do pensador, que abrangeram a chegada da primeira República em “Ordem e Progresso” (1957). Este seria o terceiro volume da “Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil”, apresentando a desintegração desses regimes laborais com a chegada do trabalho livre. O fim da monarquia, datado de 1889, não trazia mudanças de proporção revolucionária, tendo em conta a permanência de uma organização social paternalista, que adotava uma roupagem urbanizada e industrializada. Em simultâneo, iam surgindo setores da sociedade com voz ativa, apesar de serem absorvidos por uma república que conservava muitos maneirismos presidencialistas.
No período conturbado que se seguiria, que ia revelando alguns laivos autoritários, Freyre permaneceu com vários compromissos profissionais e até políticos, fazendo parte de algumas instâncias associadas à Ditadura Militar, embora tenha sido preso nos anos 40. Quatro antes desta se impor formalmente, e de forma a conceder algumas propostas sobre os problemas vigentes, o pensador redigiu “Brasis, Brasil e Brasília”, discutindo o pluralismo étnico e cultural nas adversidades sentidas na unidade do país, tão diverso na sua extensão. Isto porque o século XX trouxe várias contrariedades ao nível dessa integração única, com várias insurreições locais, advindas de estados com identidades muito vincadas. Os desafios propostos pelo futuro eram encabeçados pela própria ação imaginada, que se sustentava não só no lirismo, numa imaginação criativa, mas na própria conjetura científica.
Enquanto a controvérsia da sua obra não permite que o seu estatuto incólume como investigador do passado, do presente e do futuro brasileiro seja posto em causa, a sua vida emana em divergências. A responsabilidade de Gilberto Freyre pela interpretação da sua obra para olhares exclusivamente ideológicos é intencional ou casual? O colonialismo é pensado como um processo proveitoso ou danoso? Por mais que se possa entender o pensador como um virtuoso criativo, conforme indicava a sua escrita, são várias as questões sobre a sua associação à Ditadura Militar brasileira, de forma direta, e à portuguesa, indiretamente. Questões essas que não impediram que fosse proposto a Nobel da Literatura, no ano de 1947, e que se tornasse Sir, através da rainha D. Isabel II de Inglaterra. Freyre estudou o Brasil de fio a pavio, entre Portugal e os trópicos, revolucionando tradições rurais que se transformavam em inovações atuais.