A antropofagia e o tropicalismo na formação da identidade cultural brasileira
A formação da identidade cultural brasileira desdobrou-se num processo que foi buscar as origens indígenas, assim como a própria herança europeia. No entanto, parte da sua expressão cultural começou a ser orientada por um ideal modernista, também fruto dos movimentos artísticos da Europa. Porém, a grande distinção seria a sua integração nestas ramificações que advêm das origens primárias do povo brasileiro, disperso por um território tão amplo. Por isso, faz sentido viajar ao conceito de antropofagia e à emergência do tropicalismo, ambos cruciais naquilo que é a cultura brasileira tal como é conhecida hoje.
Na base, está o Manifesto Antropófago, que o escritor Oswald de Andrade escreveu em 1928. Era um sentido que procurava desvincular-se com o passado, orientado para uma postura cada vez mais universal e, de certa forma, revolucionária. No processo, a repressão política e social que se começou a sentir e que violou as liberdades de criação e de pensamento cultural. O grande sentido do tropicalismo seria importado pelo artista plástico Hélio Oiticica, que se alimentaria da antropofagia proposta pelos modernistas brasileiros para o conceber. E assim foi, com esse mesmo sentido universal, de uma alimentação em relação às influências do exterior, mesclando-as com as expressões do interior, para desenhar essa linguagem capaz de abarcar todo o mundo. O sentido de potenciar os valores positivos de ambas as influências ajudam a esclarecer uma postura que se procura desvincular de qualquer sentido colonial.
A Tropicália (que é o nome mais popular para a noção de tropicalismo) nasce, assim, de uma postura crítica, capaz de julgar-se e de criar a partir de uma perspetiva que supere qualquer superficialidade da cultura, tornando-a móvel e ágil. Porém, aquilo que acaba por ser crucial é mesmo o caráter revolucionário deste movimento, que é impulsionado por um conjunto de cantores, que dá a cara e a voz perante as suas preocupações e questões sociais e políticas: em especial na música, desde Caetano Veloso (que chegou a escrever sobre a antropofagia em 2012, num livro, precisamente, com o título “Antropofagia”, para além do livro “Verdade Tropical” (1997)), para além de nomes como Gilberto Gil, Gal Costa (em especial, no pós-tropicalismo, uma fase mais derrotista e de frustração perante o falhanço dos sonhos da Tropicália, já após a prisão de Caetano e de Gil pela polícia política), Chico Buarque, Torquato Neto, Os Mutantes (com a voz de Rita Lee e a composição de Arnaldo Baptista), e Tom Zé.
Aliás, Caetano, Gil, Tom Zé, a banda Os Mutantes, Gal Costa e Nara Leão, ao lado de Capinam, Torquato Neto e do maestro Rogério Duprat, lançariam, no ano de 1968, o álbum “Tropicalia ou Panis et Circensis”. Um disco que refletiu essa mistura de aspetos da cultura tradicional das comunidades brasileiras e aspetos das vanguardas artísticas da contracultura e da emergência da cultura pop. O disco tinha sido um sucesso após as arrojadas presenças de Caetano e de Gil, um ano antes, no III Festival de Música Popular da TV Record. Caetano, que havia sido um dos primeiros a apresentar-se com caraterísticas andróginas, uma clara provocação aos convencionalismos morais e uma lufada de ar fresco na música popular brasileira, em especial no seu primeiro LP com o seu nome, gravado em 1967 (“Soy Loco por Ti, America” e “Alegria, Alegria” são duas das faixas mais célebres). A figura de Carmen Miranda era, em muito, usada no discurso musical deles, em muito por transmitir uma imagem “estereotipada” de um Brasil cada vez mais americanizado, atuando de forma muito ornamentada. Para além disso, dançava com jeitos que, de tal modo gesticulares, se tornaram um preconceito que aprofundou essa pomposidade pela qual eram vistos pela restante sociedade ocidental.
Todos eles são influenciados pelo movimento de contracultura nos Estados Unidos, um movimento que os ajuda a defender uma postura mais atualizada, mais moderna e capaz de ser afoita à experimentação e à construção artística. De igual modo, o próprio teatro, protagonizado por José Celso Martinez Corrêa e pelo seu Teatro Oficina (adaptou “O Rei da Vela” (1933), do modernista Mário de Andrade, uma crítica ao modernismo da década de 1930, cujo progresso cultural assentava na submissão ao exterior; e fez dele um espetáculo-manifesto, no ano de 1967), o cinema, nas figuras de Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade, e os contributos artísticos e teóricos de Rogério Duarte (autor do livro “Tropicaos”, de 2003) foram mobilizados para, num movimento concertado, agregador de todas as expressões artísticas, fosse capaz de dotar o Brasil de uma cultura com sentido político, social e ético.
O tropicalismo sumariza, assim, um crescente debate e um assomo de criação artística, que se separa dos convencionalismos até aí existentes. A expressão Tropicália advinha da classificação de Oticica do ambiente que se vivia na mostra da Nova Objetividade Brasileira, um movimento importado da Alemanha, como resposta ao expressionismo artístico, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de 1967. É ele o autor desse ecossistema, que reúne elementos naturais, desde árvores a pássaros, até poemas e outros registos. Era o primeiro confronto de uma tropicalidade silenciada de um Brasil que procurava a sua expressão cada vez mais puritana, e foi um tema que não deixou de preocupar o artista, ele que escreveu sobre esses problemas e apela à participação do espectador. Era um autêntico labirinto, recheado de referências críticas, tanto à questão da pureza artística, mas também ao acentuado pendor dos elementos da Natureza nas obras que eram feitas até então.
Seria um nome também usado numa canção de Caetano Veloso no seu primeiro LP, por sugestão do cineasta Luiz Carlos Barreto, com os arranjos do maestro Júlio Medaglia. Instituía-se, assim, um autêntico projeto cultural, inspirado não só pela antropofagia, mas também pelo concretismo (protagonizado pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, que procurava fazer desaparecer a distinção entre forma e conteúdo, criando, assim, uma nova linguagem) e do seu sucessor neoconcretismo (assumindo a arte como algo com sensibilidade e expressividade, rompendo com uma visão algo científica do concretismo). Distinguia-se, porém, por fazer apelar à irracionalidade, desenhando uma atitude concertada de vanguarda artística, infestada por uma vontade muito clara de formar uma linguagem autêntica e distinta. A vertente experimentalista é o que permite à Tropicália cumprir a sua superação em relação aos movimentos concretistas, essencialmente num ponto de vista formal.
Todos estes movimentos de vanguarda têm, como grande impulso, o mencionado Manifesto Antropofágico, desenhado em 1928 pelo autor modernista brasileiro Oswald de Andrade, com o objetivo de propor uma nova cultura brasileira. É nisso que assenta o conceito de antropofagia, que visava romper com as dependências culturais pré-existentes, tendo como objetivo final o de afirmar uma consciência emancipada da cultura brasileira. Quatro anos antes, havia composto o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, em que Andrade aspirava a que a cultura brasileira pudesse ser uma de exportação, à imagem do que o Pau-Brasil se havia tornado como matéria-prima comercializada por todo o mundo. Neste caso, porém, cingia-se à poesia, fazendo dela um produto capaz de circular pelo mundo, sem nada dever àquilo que era produzido na Europa. A cultura brasileira, assim, necessitava de ver os seus padrões destruídos e desconstruídos, fazendo uma autêntica “devoração crítica” em relação ao estado do país, identificando o seu retrocesso social e cultural.
Um importante contributo para o movimento antropofágico seria a edição da “Revista de Antropofagia”, onde colaborou um sem número de importantes artistas e teóricos modernistas brasileiras: Oswald de Andrade liderava um lote composto por Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Jorge de Lima, todos estes escritores ou poetas. Embora criado por Oswald de Andrade, a revista seria liderada por Alcântara Machado e por Raul Bopp, outros dois autores, sendo a sua segunda fase dirigida por Geraldo Ferraz. As “dentições” da revista eram orientadas, assim, para uma constante devoração da herança cultural primitiva e das importações do exterior, que também englobavam algumas nuances do pensamento marxista, da psicanálise freudiana e da filosofia de Friedrich Nietzsche.
“Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.”
Manifesto Antropofágico (1928)
A antropofagia é, assim, uma deglutição do futurismo, do surrealismo (o seu criador, André Breton, foi um dos grandes influenciadores para a forte carga primitiva do conceito) e dos primórdios das crónicas brasileiras e das suas tradições orais, para além dos seus coloquialismos primitivos e regionais. Oiticica inspira-se, para além de traduzir o manifesto de Andrade nos Estados Unidos, e dá o mote para que a cultura brasileira se possa internacionalizar, capaz de, numa intervenção interpretativa da sua presença, ser repensada e reformulada. Algo que implica, claro está, ser capaz de exportar as suas ideias e de dialogar com as das demais culturas e de, ao mesmo tempo, preservar a sua singularidade. Com o tropicalismo, nota-se o esforço de unir as exposições das vanguardas artísticas brasileiras da Nova Objetividade, já num clima de confronto em relação à Ditadura Militar que se tinha instalado, com a Bossa Nova (com, entre outros, Vinicius de Moraes e Tom Jobim), na música, com o Cinema Novo (um cinema de resposta às discrepâncias de classes sociais e económicas e às questões da discriminação racial), na sétima arte, e com o Teatro de Arenas (com um sentido renovador e nacionalista), no teatro.
Unindo-se aos esforços do concretismo e do seu movimento sucessor, as fragrâncias do exterior, nomeadamente a Nouvelle Vague, o pop rock dos Beatles, dos Rolling Stones, a pop art, e afins e outras formas de expressão artística da contracultura, vieram trazer novos argumentos de questionar a realidade, nomeadamente os seus discursos e as suas imagens. Porém, o objetivo não era fazer com que as influências exteriores absorvessem por completo a cultura brasileira, sendo que a ideia da antropofagia permanecia muito viva. Assim, era importante impedir que outra vaga de um possível colonialismo cultural pudesse ganhar forma. Aliás, Oiticica, ao lado de Martinez Corrêa, defendia mesmo uma “superantropofagia”, que devorasse os mitos que obstassem à transformação cultural brasileira pelos seus próprios meios, com um sentido de totalidade e de universalidade. Os puritanismos necessitavam de cair, os mesmos que excluíam parte significativa das expressões folclóricas e exóticas, camuflados num novo-riquismo que pretendia cingir a cultura às produções para as elites.
Era necessário, assim, envolver a população como um todo, sem esquecer a realidade ditatorial, que, ao mesmo tempo que procurava uma elevação moral do seu povo, era o mesmo que cometia torturas e até mortes aos seus contestatários. A Rede Globo servia como um caminho de comunicação, uma autêntica máquina de conteúdos, que filtrava aquilo que pretendiam que fosse entendido como a verdadeira cultura. Desde as novelas até àquilo que representava o expoente máximo dos tradicionalismos brasileiros, por vezes a reportar à realidade colonial e aos grandes fazendeiros. Por sua vez, a reinterpretação da influência internacional que a antropofagia convidava permitia que se pudesse, enfim, encaixar ambas as linhas de criação cultural e de, para lá de abrir espaço a todo o tipo de representações culturais, valorizar ao máximo a que se fazia no Brasil. Seria, porém, necessário aceitar o subdesenvolvimento do país, que era real e que necessitava da contribuição do exterior, sem que esta se sobrepusesse à verdadeira identidade das comunidades brasileiras. É o caminho de descoberta de uma nova estética.
Voltam, assim, a reinterpretar a antropofagia, em que a cultura primitiva servia como mote para criar, mas também para questionar as formas de criação e de expressão no Ocidente. Como referência, as primeiras civilizações americanas e africanas, um eixo de referência em relação a uma comparação que necessitava de ser feita com os novos paradigmas ocidentais, nomeadamente com os pilares da Revolução Industrial e do modernismo. Esses elementos primitivos são os que permitem, enfim, a revolta, a revolução e a transformação da cultura brasileira, capaz de a mobilizar para lá do “outro”, que, até lá, servia como o dominador cultural do território brasileiro. A vocação moderna da cultura do Brasil, no entanto, sustenta-se na ausência de uma tradição pictórica, de uma tradição da imagem, que é tão comum no resto do Ocidente. Como tal, é aceite, desde logo, a necessidade de assumir a cultura brasileira como moderna, que abre portas a que as artes visuais se possa assumir, livremente, como moderna: Alfredo Volpi, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral na pintura (estas últimas já na fase antropofágica), e Oscar Niemeyer na arquitetura.
“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”
Manifesto Antropofágico (1928)
Para a antropofagia, é essencial o papel do índio, que devora todas as influências coloniais portuguesas, consideradas como inimigas. É célebre a frase de Oswald de Andrade: “antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”. Sumariza, assim, a sua preocupação por serem repensadas as questões que norteavam a portugalidade do Brasil, dado que os brasileiros se mantinham como fantoches dos colonizadores. Há um peso bem mais étnico e histórico que na futura Tropicália, esta com preocupações mais políticas e sociais, com olhos de contestação em relação ao puritanismo moral e político da Ditadura Militar, para além das expressões das indústrias culturais. O Manifesto Antropofágico traz a devoração de elementos da igreja, que vinham evangelizar o agora território brasileiro. Para Andrade, tratava-se de um ritual de incorporação do “outro” (os invasores e colonizadores) e, com isso, a superação das limitações inerentes ao “eu” (os brasileiros), assimilando as qualidades daquele que era o inimigo. É por isso que Andrade, para os meados do século XX, em plenos “loucos anos 20”, pretendia que, no Brasil, se apreendessem os modelos estrangeiros, permitindo que as expressões artísticas brasileiras pudessem ganhar um sentido menos nacionalista e menos localizado, embora sem nunca prescindir da “brasilidade”.
É a mesma brasilidade que é tão defendida na Tropicália, uma brasilidade modernista, que pudesse extrapolar os limites impostos pela superficial cultura brasileira, e que pudesse, efetivamente, cumprir-se como universal. Era necessário, assim, importar os discursos culturais hegemónicas e dotar-lhes das singularidades e das individualidades que permitem que a brasilidade seja o que é. Adotam, assim, o olhar que Oswald de Andrade e o seu braço direito, o grande escritor Mário de Andrade, tinham, que só viam a universalização como possível com uma personalidade racial e patriótica vincada, sem cair no erro dos nacionalismos. Era necessário, assim, deglutir o que vinha de fora em conjunto com os laivos primitivos da cultura brasileira, abrindo espaço para uma efetiva emancipação cultural. O tropicalismo ajuda a que isto se torne um facto, especialmente com as contradições culturais do que é arcaico e com o que é moderno, capacitando a cultura brasileira de uma toada que revela as vicissitudes sociais e, ao mesmo, um certo sincretismo, isto é, uma miscelânea de influências e de fragrâncias que a mobilizam num experimentalismo capaz de se deslocar entre o local e o universal.
É assim que se forma uma linguagem única, embora complexa, mas dotada desse caráter universal, que, embora com muitas importações teóricas e práticas no domínio da música, da literatura, do teatro, do cinema, da pintura e da arquitetura, permite que se a autocrítica feita à cultura brasileira seja seguida por uma verdadeira manifestação tropical. Mário de Andrade havia antecipado, de igual modo, esse ressurgimento das manifestações culturais populares, coletivas e rurais, como o suporte de uma identidade cultural, que, não obstante, seria uma não-identidade, perante tamanha heterogeneidade e diversidade. Usavam, assim, aquilo que, pela sua estranheza ancestral, não era considerado como uma realidade artística pelos antropólogos, que estudavam as heranças dos imperialismos nos territórios que tinham sido colónias de outrem.
A antropofagia e o tropicalismo surgem, assim, como dois conceitos de peso naquilo que foi o desenho da identidade cultural brasileira. Aquilo que os une, no sentido de resistência cultural, é o instinto de voltar aos primórdios da realidade do Brasil como forma de os ver como uma distinção artística, Isto só se pôde concretizar, claro está, à conta da unificação de diferentes influências e doutrinas culturais, com um sentido de humor que se pode chamar de controverso, tendo em conta o “canibalismo” da semântica usada, e com uma vocação anárquica, de destruição e desconstrução dos ideais vigentes. É uma rutura, é certo, embora sem deixar de ter uma receção crítica e uma compreensão igualmente de escrutínio sobre as influências de fora e as vozes de dentro, com uma dose de experimentalismo que só a Tropicália conseguiu trazer. Porém, um consenso: a absorção da herança europeia e americana, com um sentido profundamente indígena e mestiço, assente na convivência do negro, do branco e do índio. A modernidade brasileira é, assim, movida por uma vontade devoradora de ser distinta e individual, embora sem nunca esquecer o seu destino plural e universal.