A fome revolucionária do Cinema Novo de Glauber Rocha
Glauber Rocha. Nascido a 14 de março de 1939 e falecido a 22 de agosto de 1981, é um nome que diz muito ao cinema brasileiro, por intermédio do seu caráter revolucionário, através de um cinema com um cariz profundamente social e interventivo. Foram somente 42 anos de vida, sendo que já são 43 aqueles que distam a hora desta escrita e o da morte do cineasta. Porém, foram quatro décadas nas quais foi altamente produtivo, produzindo uma vasta cinematografia que não se remeteu ao Brasil, mas também a Portugal. No seu país de origem, notabilizou-se com, de acordo com a Associação Brasileira de Críticos de Cinema, cinco dos melhores cem filmes de sempre, numa lista publicada em 2015.
O peso das ciências sociais no Brasil é elevado e o Cinema Novo, um movimento que irrompe no país na década de 1960, nasce dos contributos que a filosofia francesa e a própria literatura neorrealista italiana produzem no cinema dos seus países. O espírito estudantil é fervoroso em França, assim como a consciência das agruras sociais por parte dos italianos, pelo que a situação das várias camadas sociais, em especial das mais pobres, surge como temática primária da sua criação artística. É assim que, no Brasil, pese embora a ditadura militar vigente no país a partir do ano de 1964, se encontra com uma consciência que mobiliza os artistas, entre eles os cineastas, a este tipo de produções.
Glauber Rocha, baiano de nascença e de infância, mergulha neste espírito que se assume marxista, no qual aspira a denunciar a diferença galopante dos padrões de vida na sociedade sul-americana. A fome é a tónica maior que procura expor e para a qual procura sensibilizar os vários públicos nacionais e internacionais. “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, filme apresentado em 1964, é um dos exemplos mais marcantes deste seu marxismo que se radicaliza na ação do filme. Apresentando um casal que vive no sertão brasileiro, devastado pela seca, Glauber coloca os protagonistas numa atitude bélica e subversiva, vingando-se dos latifundiários com quem tenta dividir os lucros da gestão dos seus recursos.
A ideia da antropofagia e a do canibalismo são reinterpretadas à luz da necessidade de encetar uma revolução social, não abdicando da violência para o concretizar. É uma estética feral que, em grande parte do seu cinema, é manifestada através de uma consciencialização de quem é colonizado e que se materializa numa ação contundente e que faz o colonizador aperceber-se daquilo que fez ao(s) outro(s). Foram mensagens que, à luz dos tempos, tiveram sucesso até nos Estados Unidos, embora Glauber receasse que o Cinema Novo se tornasse imperializado, ou seja, explorado para fins económicos. Mensagens que expandia a todos sem exceção, muito para além do seu extenso Brasil.
Ainda no que toca ao seu país, Ruy Guerra ou Nelson Pereira dos Santos seriam alguns que se enquadrariam no tal Cinema Novo. A questão primária da miséria não ser uma realidade distante, mas antes um panorama bem presente e premente na maior parte do vasto Brasil também seria a força motriz da produção e realização de “Terra em Transe” (1967). Trata-se de um filme que viaja ao âmago das contendas pelo poder em plena instalação da ditadura militar a partir da imaginada República do Eldorado. O protagonista, um jornalista e poeta, força o seu idealismo por entre as diferentes figuras governativas, que personificam a ganância, o populismo, a tecnocracia e a fraqueza (da direita e da esquerda) contra a ambição revolucionária da personagem principal. Este seria o primeiro filme de Glauber que, apesar de galardoado em Cannes e em Locarno, seria visado pela censura portuguesa (até 1974) e pela brasileira, por atentado ao pudor da Igreja e pelo seu caráter subversivo. No entanto, a mudança de nome de algumas personagens, que diminuiu os possíveis paralelismos com figuras reais, conseguiu com que o filme conhecesse outras telas que não clandestinas.
Cinco anos antes, “António das Mortes”, com um cariz um tanto ou quanto de western, conforme o foi “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, é o regresso da personagem que também participa neste filme, embora agora como protagonista. O argumento tem raízes na lenda de São Jorge e na decapitação do dragão que o confronta, novamente na personificação de Deus e do diabo. O nordeste volta a ser o cenário escolhido para a narração da sua luta violenta, sem descurar o papel do folclore da região para reforçar o realismo da história que conta. A personagem de António é o “jagunço” que confronta o governo do coronel Horácio e a conspiração da figura de Coirana, que procura denunciar os cangaceiros (bandidos). Novamente a defesa dos pobres e dos injustiçados a ser a mensagem primordial, os mesmos que se socorrem da religião para encontra respostas para as suas vicissitudes.
A sua “estética da fome”, conforme ensaio escrito em 1965 e apresentado num congresso do Terceiro Mundo em Génova, Itália, começou a ser fermentada com o seu crescente interesse por artes, nomeadamente o teatro e, por conseguinte, o cinema. A esta vocação, uniu a dimensão política e começou a desenvolver um ideário quase anarquista, defendendo a abolição do capitalismo e do próprio dinheiro como objeto de troca. Uma breve passagem de dois anos pelo curso de Direito não o viria a fixar na área e, enquanto começou a fazer crítica de cinema, ia fazendo algum cinema da sua própria autoria – as curtas-metragem “Pátio” (1959) e “Cruz na Praça” (também de 1959, embora inacabada). Um cinema que já bebia de um amor intenso pela sua pátria e que procurava exprimir ao mundo a sua vontade de a ver transformada e livre do flagelo da pobreza e da miséria. A fama que granjeou com os filmes já referidos acima, na década de 1960, levou-o a ter holofotes no estrangeiro, tendo até sido entrevistado por vária da sua imprensa e nomeado membro do júri no Festival Internacional de Cinema de Moscovo, em 1969.
Glauber continuou a percorrer o legado de cineastas, como Dziga Vertov ou Jean-Luc Godard, enquanto seguia o seu próprio caminho no Hemisfério Sul. Porém, o ano de 1971 conduziu-o a um exílio que, após percorrer Espanha e França, acabou por ter Portugal como destino. A amizade que travou com o cineasta português Manuel Carvalheiro, que conheceu no Festival de Berlim em 1972, tornou-se providencial para a sua passagem no país e seria alguém que o acompanharia até ao ano da sua morte, em 1981. Então, já havia travado amizade com os realizadores Fernando Lopes e Paulo Rocha, que conhecera no México e a quem chegara a recomendar atores para os seus filmes. Residente, então, em Sintra, regressaria ao seu país de nascimento, por força da sua saúde frágil, já que estava a combater uma grave broncopneumonia, onde acabaria por falecer horas depois de ter aterrado.
O cineasta, que casar-se-ia por três vezes e que teria cinco filhos, deixaria um profundo legado com o seu trabalho, que não se resume aos filmes acima nomeados. Bem no início da carreira, “Barravento” (1962) é o primeiro grande momento de representação dos tais esforços de libertação de domínios opressivos. No caso, filmado na baiana Itapuã, é um antigo pescador que regressa à sua comunidade com ideias de progresso e de liberdade, embora pese o conformismo e até o analfabetismo dos seus conterrâneos. O candomblé assume um papel de grande destaque, sendo a ordem pela qual a comunidade se segue.
Fez, também, breves testemunhos sobre o estado do Amazonas, em 1965, e o do Maranhão, em 1966 – importante para preparar “Terra em Transe” – apresenta a tomada de posse de José Sarney como governador, sem esconder a miséria dos populares. Na década de 1970, assiste-se à chegada de uma produção franco-italo-brasileira em “O Leão de Sete Cabeças”. Este trabalho é gravado na República do Congo e debruça-se sobre o passado de dominação e de exploração no continente africano, fazendo uma oposição à habitual cinematografia de paisagem e de contemplação que, então, se fazia em África. Novamente, a luta armada é anunciada através de um protagonista comunista e do apoio que recebe das nações nativas contra as ordens religiosas, os comerciantes e mercenários dos povos colonizadores. Em Espanha, nesse mesmo ano, surge “Cabezas cortadas”, cuja ação se passa em pleno franquismo, com a personagem principal a viver num delírio de poder, após ser regente de uma nação chamada Eldorado, revivendo todos aqueles que o perseguem, na tentativa de vingar a sua opressão.
Glauber faria a documentação da história do seu país em 1973, ao lado de Marcos Medeiros, para além de captar a reunião da sua família no Uruguai em 1972, no filme “Paloma, Paloma” e de documentar a vida de Jorge Amado em 1977, numa curta-metragem. Postumamente, também chegaria ao público “A Vida É Estranha” (2015), ao lado de Mossa Bildner numa viagem em Marrocos. Contudo, existem mais três momentos da sua carreira que merecem ser expostos: “Di-Glauber” (1977), dedicado ao pintor Di Cavalcanti e que capta o velório e o funeral deste vulto no Rio de Janeiro.
O segundo é “A Idade da Terra” (1980), novamente com Maurício do Valle como ator principal (esteve presente em grande parte dos seus filmes nos anos 1960) e com uma narrativa de um Cristo de etnia negra, outro índio, outro guerrilheiro e ainda outro militar. São os guerreiros do Apocalipse que abrem as portas para a chegada do Cristo do Terceiro Mundo e que almejam uma religiosidade profética, com base nos Evangelhos, e verdadeiramente plena. Aliás, seria o filme pelo qual se envolveria numa briga com Louis Malle, que arrecadou o Leão de Ouro em 1980, em Veneza, e cuja premiação Glauber acusou de estar já combinada previamente.
O terceiro deles é o que diz mais a Portugal e que resulta de uma direção conjunta. Assim, ao lado dos realizadores do Cinema Novo português Alberto Seixas Santos, António da Cunha Telles, Eduardo Geada e José Fonseca e Costa, nasce “As Armas e o Povo” (nas telas em 1977). No rescaldo da Revolução de 25 de Abril, que depôs a ditadura vigente em Portugal, são captados inúmeros depoimentos e retratos nas manifestações populares que decorrem desde essa data até ao apoteótico 1º de Maio do mesmo ano. Trata-se de algo que o brasileiro já havia conhecido através da Passeata dos Cem Mil, em 1968, mobilizada pelos estudantes e intelectuais do país contra a ditadura militar e a favor da redemocratização do Brasil.
Agora dentro do Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica e do Sindicato Nacional de Profissionais de Cinema, Glauber havia chegado ao país um dia depois da Revolução dos Cravos e já era um membro ativo da sociedade artística. À data da sua morte, equacionava fazer mais trabalho em Portugal, estando em sintonia com as instituições do meio, como o Instituto de Cinema Português. O seu cinema seria divulgado com pujança, agora que a censura havia sido abolida, sendo até tema de uma retrospetiva da Cinemateca no ano de 1981, embora com o incidente da sua cinematografia ter sido queimada num acidente neste espaço.
Glauber Rocha traz um cinema armado até aos dentes, em que as armas são as imagens, os estímulos, as crenças, as ideias. Mesmo com uma estética que não esconde a vontade sanguinária da revolta e da subversão, o seu lugar na história do cinema do seu país e até do mundo ocidental é incontestável. Prova disso é a numerosa arrecadação de prémios que colecionou nos mais distintos festivais internacionais. Acresce a este legado a sua presença em Portugal num momento tão crucial na sua história e que tanto lhe ressoava nos seus valores pessoais. Enquanto isso, estava na lista negra do regime político do seu país de origem, que visava eliminá-lo. A sua saúde seria a sua maior sombra e privou-lhe de grande parte da sua vida. Para a eternidade, a sua obra, o seu registo das agruras da humanidade e de testemunhos que evidenciam a história do ser humano, no seu melhor, no seu pior; enfim, na sua verdadeira realidade.