Ano Agustina: ‘A Ronda da Noite’, um livro para se ler de frente ao espelho

por Catarina Fernandes,    30 Junho, 2018
Ano Agustina: ‘A Ronda da Noite’, um livro para se ler de frente ao espelho
Ilustração de Luísa Silva Gomes / CCA

Este artigo faz parte do Ano Agustina, no âmbito do qual, ao longo de 2018, a Comunidade Cultura e Arte lançará, a cada mês, uma crítica a um livro da obra de Agustina Bessa-Luís, neste momento a ser reeditada pela editora Relógio d’Água.

O interesse de Agustina Bessa-Luís pela pintura é já sobejamente conhecido pelos seus leitores, manifestando-se, pela primeira vez, no livro Longos dias têm cem anos (1982), onde fala da artista plástica Maria Helena Vieira da Silva. Em A Ronda da Noite, o seu último romance publicado em 2006, partindo da famosa obra de Rembrandt, “A Companhia do Capitão Banning Cocq”, mais conhecida pelo nome que dá título ao livro, Agustina apresenta-nos mais uma família do Norte português, os Nabascos, funcionando o quadro ora como espelho, ora como metáfora para ilustrar os tons claros e escuros das personagens desta quase família.

A pintura de Rembrandt, datada de 1642, foi das primeiras a representar uma cena de grupo em movimento, fazendo sobressair, através do contraste entre escuro e claro, algumas personagens, como o Capitão Banning Cocq, especialmente o gesto que este faz com a mão indicando ao grupo para marchar, ou Saskia, a pequena menina que, no meio desta parada, não se sabe se está assustada ou divertida. Fonte de inspiração de inúmeros ensaios, e inclusive de um filme, de Peter Greenaway, este quadro de dimensões impressionantes (quatro metros de altura), é, neste livro, ferramenta para o olhar dissecador de Agustina, que o usa para olhar noutras direcções.

“A Ronda da Noite”, de Rembrandt (1642)

A primeira vez que o quadro é mencionado na obra é dito ao leitor, desde logo, tratar-se de “uma cópia nas dimensões naturais d’A Ronda a Noite de Rembrandt, que passa de geração em geração e de casa em casa na família, apesar da crença de alguns elementos da família de que se trata de uma reprodução verdadeira”. A autora vai dando pistas sobre o significado do quadro, alertando-nos, que “não é o que aconteceu que lá está, mas um acontecimento em vias de se reproduzir”. O que lá estará, então, representado? Uma parada militar? Os preparativos para uma festa? Estará a mão levantada do Capitão Banning Cocq imbuída de autoridade, ou apenas a indicar o caminho? E que caminho é esse, para onde vão? A menina que surge de branco ao fundo, estará ela assustada ou divertida? Mas, mais do que aquilo que lá está, não estará a importância do quadro numa sátira social?

Se repararmos, A Ronda da Noite ou A Companhia do Capitão Cocq está disposta se não amontoada, em cima dumas escadas; e, nesse aspeto, o problema da atribuição de valores fica resolvido. Cada um ascende até onde lhe é possível, quer seja por mérito próprio ou condição social. (Pág.73)

Nas primeiras quarenta e cinco páginas do livro acompanhamos a visita às memórias tumulares da família Nabasco, ficando o leitor a conhecer os primórdios da sua história: burgueses de quatro gerações, estamos perante uma família notável do Porto, cuja fortuna é alimentada por heranças ou rendimentos acumulados.

Maria Rosa Nabasco é matriarca da família, a representante de um género de mulheres em desaparecimento, daquelas que não perguntavam o preço das coisas e se limitavam a “mandar a casa”. Por mais que nos sintamos tentados, inicialmente, a ver Maria Rosa como uma coquete, ela, muito mais que apenas isso, é uma mulher inteligente, mordaz, que se convertera a uma “religião a que chamava personalidade”, que acredita existir uma “sabedoria instantânea no que dizemos” e ser a mulher a origem de todo o mal, ao ser alvo do desejo do homem.

Martinho Nabasco é o único afeto verdadeiro de Maria Rosa, que se encarregou do neto quando a filha Paula voltou a casar, desinteressando-se completamente dela. E, porque famílias felizes não dão boas histórias, será a relação de veneração e repulsa entre avó e neto que prenderá a atenção do leitor. Martinho que, tal como sua avó, se nos afigura misterioso, e, tal e qual as personagens n’A Ronda da Noite, dissimula o papel que desempenha, obrigando o leitor a procurar o que está por detrás das máscaras.

Ao longo do livro o leitor vê Martinho crescer, assiste ao momento em que prenuncia a sua primeira palavra: merda. Martinho vai tornar-se um adulto imprevisível, egoísta e alienado de tudo e todos os que o rodeiam, um ser sem “identidade pública, sem hábitos, não se demorava com as mulheres”. A sensação que Martinho causava nas pessoas era a de ser um mutante, emanava uma aura de inimigo disfarçado sob uma capa de simpatia. Com o intuito de o ligar ao mundo, a avó casa-o com Judite, uma rapariguinha que esta recebe na sua casa ao ficar orfã de mãe.

Através do olhar dos diferentes membros da família Nabasco, observamos A Ronda da Noite: Maria Rosa não tem dúvidas da autenticidade do quadro, que insiste em preservar na família como símbolo de poder e estatuto que a decadência financeira da família coloca em causa; Elisa, empregada da família, que se relembra da sua condição de inferioridade ao não ser capaz de o entender, transforma o quadro num alvo do seu ódio e desprezo; Judite inspira-se na luz e trevas do quadro para se aventurar no mundo da pintura, onde pode fugir à existência obscura que mantém enquanto esposa de Martinho, que, por sua vez, vê em A Ronda da Noite uma espécie de livro de adivinhas que deverá ler e interpretar, sendo através desta busca que tentará encontrar o sentido para a sua própria vida.

Tal como, numa pintura, o mais importante não é o que lá está mas aquilo que representa, também, na escrita de Agustina Bessa-Luís, mais importante do que o que se escreve é a forma como se escreve. O humor como marca presente, longe de ser cínico, instiga a pensar através da provocação, a reflectir com observações deliciosamente temerárias como as que faz sobre o amor (“no fim de contas o que era o amor das pessoas se não aquela cena do trapézio voador, dando as mãos, a fazer saltos mortais com a rede, sem a rede”), sobre o dinheiro (“os ricos são pessoas muito especiais, vivem por sua conta, que é uma coisa que ninguém faz”) ou sobre o povo português (“[que] lastima-se para ser lastimado, que é sempre prenúncio de lucro, as pessoas unem-se pela clandestinidade que há em ter sucesso”).

Agustina tem essa capacidade de misturar a reflexão, em jeito de ensaio, com o contar de histórias, nunca de maneira estanque mas, aliada à ironia, sempre em jeito de deambulação. Ler Agustina é descobrir que “o que sabem as mulheres dá para arrasar montanhas”, e, sem dúvida, que o que sabe Agustina dá para arrasar até o mais cético dos leitores.

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