Ano Agustina: o triângulo amoroso de ‘Fanny Owen’

por Miguel Fernandes Duarte,    28 Janeiro, 2018
Ano Agustina: o triângulo amoroso de ‘Fanny Owen’
Ilustração de Luisa Silva Gomes / CCA

Este artigo faz parte do Ano Agustina, no âmbito do qual, ao longo de 2018, a Comunidade Cultura e Arte lançará, a cada mês, uma crítica a um livro da obra de Agustina Bessa-Luís, neste momento a ser reeditada pela editora Relógio d’Água.

No Porto do séc. XIX, dois amigos boémios apaixonam-se pela mesma jovem mulher, sendo que um deles, intimado pela mesma, a rapta para com ela se casar por procuração. As expectativas face à relação saem, no entanto, goradas, e, no espaço de um ano, ela morre, enferma, de desgosto, vítima de tuberculose; um mês depois morre ele, em Lisboa. A jovem mulher era Fanny Owen, filha do coronel Hugh Owen, inglês combatente na guerra peninsular, fixado em Portugal após casamento com D. Maria Rita, filha de um abastado comerciante de vinho do Porto e educada “na corte de Carlota Joaquina, o que não era garantia nenhuma de educação.” Os dois amigos José Augusto de Magalhães – o raptor de Fanny -, morgado e medíocre poeta, e o outro Camilo Castelo Branco, o tal que se tornou um dos maiores escritores da língua portuguesa.

Partindo desta história verídica, Agustina Bessa-Luís escreve em 1979 o romance histórico Fanny Owen, após, segundo a própria, Manoel de Oliveira lhe ter pedido para escrever os diálogos de um filme que ele quereria fazer sobre Fanny Owen, e que veio a ser Francisca, de 1981. Oliveira desmente em posterior entrevista que tenha sido ele a pedir algo a Agustina, afirmando, como indica Hélia Correia no prefácio à mais recente edição do livro pela Relógio d’Água, que “não houve nenhuma combinação prévia. Li o livro e fiquei encantado porque a ideia de fazer Fanny Owen já a trazia comigo há muito tempo.” Quer se concorde em qual das versões está a verdade ou não, é um facto que a história deste dramático triângulo amoroso, que Agustina decide contar, marca também a primeira colaboração entre a escritora e o realizador Manoel de Oliveira.

‘Francisca’ (1981), de Manoel de Oliveira

Fanny Owen é relato dos acontecimentos, de como evolui a relação entre as três personagens, de como se processa a relação amorosa que culmina na morte do casal, mas é, muito mais que narrativa, análise das motivações das personagens, retrato racional de situação fogosa, com o distanciamento que permite a Agustina não cair nos exageros dramáticos das personagens. Nesse sentido, Fanny Owen é, mais do que apenas romance, um cruzamento com o ensaio – na medida em que é reflexão – e talvez por aí lhe chegue a fama de ser uma escritora de leitura difícil, com uma linguagem talvez um pouco arcaíca, porque ler Agustina é ter de penetrar a fundo no significado do que escreve, é não ter medo de seguir até às últimas consequências o que afirma, ainda que à partida nos julgássemos distantes de semelhantes expressões ou pensamentos. Não poupando ninguém e por entre mordaz sarcasmo, Agustina traz, ao profundo dramatismo da história real, a clarividência da sua escrita que, embora de intricado pormenor, flui de forma alcançável a muito poucos na língua portuguesa; lista onde se inclui certamente Camilo que, apesar do título focar a atenção na personagem feminina, faz, com José Augusto, uma parelha de personagens principais, com toda a primeira parte do livro dedicada ao desenvolvimento da amizade de ambos, antes ainda de se deixarem envolver pela figura de Fanny.

Desde o início que a relação entre ambos foi ambivalente, uma amizade mantida “mais pela confiança nos seus enigmas do que pela solidariedade nas expansões”, mas a verdade é que, apesar do desprezo posterior de Camilo face a José Augusto, “havia de facto uma afinidade entre a alta inteligência de Camilo e a limitação intelectual e moral de José Augusto: ambos eram insensíveis à aparência das coisas e buscavam nelas o real. Mas enquanto José Augusto não era sacudido da sua imobilidade senão através dos sentidos, Camilo não podia conceber outro processo senão o de ordenar os seus conceitos de acordo com as experiências.” É nesta relação meio bipolar que floresce a história, e é assim que ambos conhecem as duas filhas do coronel Owen e de D. Maria Rita.

Manoel de Oliveira e Agustina Bessa-Luís / Fotografia de Alfredo Cunha

Inicialmente, é Maria, a irmã mais velha de Fanny, que José Augusto corteja, mas “a certeza de ser facilmente amado matava nele o amor” e, vendo em Fanny, que mantinha com Camilo uma relação mais íntima, um símbolo do inalcançável, deixa-se por sua vez seduzir por ela. Fanny torna-se um método de salvação. Como diz Agustina a certa altura, “Para ele, Fanny não era uma mulher cujas virtudes se revelariam fictícias no momento em que ela amasse. Era apenas uma imagem capaz de produzir na sua imaginação todas as metamorfoses necessárias para chegar ao próprio campo entrincheirado da paixão. José Augusto era um homem de paixão; Camilo, um homem de sensações. Entre eles estava Fanny, que servia ambos – os desejos insaciáveis e as fraquezas que nascem dos sentidos traídos.” Fanny não é, no entanto, meramente uma vítima da acção de José Augusto, é ela própria quem o intima a seguir com o rapto que não é mais que uma fuga de Fanny por ele auxiliada, exausta do ambiente que vivia em casa, fruto da relação opressiva que mantinha com a irmã e a mãe.

Mas a obsessão de José Augusto “provinha menos do amor que da insatisfação de certo modo sublime da sua existência”, impossibilitando qualquer possibilidade de sucesso numa relação que não deixa de perturbar Camilo, que a vê feita “com o meu desejo, a minha alegria, o meu sofrimento. Eu dei-vos uma alma e, com ela, tudo do que uma alma é capaz.” Camilo vê em si o arquitecto da união de Fanny e José Augusto, a relação deles o primeiro romance que compôs. Por ele criada e por ele disposta, a relação seria também por ele inevitavelmente destruída. “Eu posso embrulhar essa alma na minha sombra e levá-la comigo. E vocês, depois?” Fanny, “incapaz de se satisfazer com a realidade pelo muito que a sua imagem fora falsificada através dum sedicioso culto do prazer”, ficara apenas com o ”simulacro do amor.”

Como propriedade própria do triângulo, não era só Camilo que fabricava a relação de José Augusto e Fanny, ela própria, “pólo libidinal de toda a intriga”, tornara “aquilo que foi uma simples afeição de boémios”, entre Camilo e José Augusto, numa obsessão desencadeadora de “acções exorbitantes.” José Augusto acaba por ser, ao mesmo tempo que o personagem mais complexo, o maior peão na história, e por entre uma crítica muito feroz às suas acções, há da parte de Agustina uma enorme clêmencia face aos actos por ele levados a cabo. Confessa admiradora da obra de Camilo escritor, não poupa as críticas à sua conduta pessoal, e se se propõe escrever este livro terá sido tanto pelo sórdido do acontecimento como pelas responsabilidades de Camilo no mesmo. “Camilo usava a língua portuguesa para ficarmos informados sobre a sua vontade de poder, de conquistar a atenção, a fama e alma da Praça” e “aquele morgado [José Augusto], que seria inofensivo se o deixassem ser apenas um lógico com riscos hereditários, foi, nas suas mãos, um desgraçado acima das suas posses. E um personagem.” Com Agustina, o personagem tornou-se ele.

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