Ano Saramago. “Claraboia” e “Manual de Pintura e Caligrafia”: como tudo é uma autobiografia
Este artigo faz parte da iniciativa Ano Saramago, no âmbito da celebração dos 100 anos do Nobel português José Saramago. Ao longo de 2022, e até Novembro, mês em que o escritor faria o seu 100.º aniversário, a Comunidade Cultura e Arte lançará um total de 11 artigos, um por cada mês, sobre 17 livros do escritor. Já se pode ler o primeiro aqui.
Em 1953, Saramago acaba de escrever Claraboia que, após a resposta de silêncio da parte dos editores, só viria a ser publicado postumamente, em 2011.
Observamos a vida de 19 personagens, divididas por 6 famílias, que têm em comum a vivência num mesmo prédio, em Lisboa, na Primavera de 1952. A estória poderá ser apenas só isso, dado que nós como leitores apenas observamos um corte na linha contínua de vida das personagens, sem sabermos pormenorizadamente o que está para trás, e sem termos a certeza, com o final do romance, do que se seguirá para a frente.
Estas famílias, aparentemente normais, diferentes o quanto baste no aglomerado familiar, nas suas rotinas diárias e nas suas relações pessoais, têm apenas em comum a circunstância de vizinhos, partilhando o mesmo prédio, sem que necessariamente partilhem entre si relações socias relevantes para o avançar da ação. Neste ponto em específico é interessante pensar no título do livro, Claraboia, que, no romance, não tem qualquer menção, e que nos poderá colocar a pensar no significado da palavra. “Claraboia”, nome feminino, parte envidraçada de um telhado para entrar claridade, fresta numa parede para passagem da claridade ou do ar, é ao mesmo tempo uma definição do leitor como voyeur, aquele que observa de fora, como também uma ambição de esperança na procura de uma claridade, passagem de ar, liberdade.
A publicação de 2011 não esconde a ação da estória em 1952, em pleno regime de Estado Novo. Observamos famílias, em algumas situações quase idênticas a uma família da atualidade, e, ao mesmo tempo, estas são por nós observadas sempre entre quatro paredes, sendo o leitor forçado a fazer o exercício de entrar neste prédio e invadir a casa de cada uma das famílias, e não o oposto, assistindo à saída das personagens do prédio para o mundo exterior. Este aprisionamento, comum a todas as personagens, não tem o mesmo efeito em todas, sendo que a viagem que cada personagem realiza varia entre a libertação, a prisão, o conforto, a ansiedade.
A mesma circunstância política estará presente no Manual de Pintura e Caligrafia, de 1977, o romance publicado após Terra do Pecado, que “saltou à frente” de Claraboia.
Na edição de Claraboia, uma frase de Raul Brandão pode ser lida no início: “Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido”. Uma frase que nos faz pensar automaticamente no enredo de Claraboia, e que, dialogando com o livro seguinte, parece ser o ponto de reflexão onde encontramos H., narrador de Manual de Pintura e Caligrafia, no início do livro.
Começamos em 1973 seguindo H. (apenas é dada a inicial, podendo ser um nome, ou apenas mais um homem), um pintor de retratos que após terminar o retrato de S., um administrador de uma empresa, e frustrado com o facto de não conseguir captar a sua imagem real, tenta retratá-lo através da escrita.
Manual de Pintura e Caligrafia torna-se assim uma grande consciência do exercício da escrita, com jogos de palavras e significados, abrindo ao leitor a evolução de H., autointitulado pintor medíocre, tanto na sua escrita como na sua evolução pessoal e na afirmação da sua posição política.
É de facto um manual. Um manual de arte. Um manual sincero de um testemunho que passa pela vida. Um manual de experiências falhadas e do sucesso do amor. É ao conhecer M., irmã do amigo António, recente preso político em Caxias, que H. se irá apaixonar e, com isso, ganhar a consciência política e posição social que até então não assumia. É engraçado observarmos como até a sua escrita acaba por mudar.
H., S. e M. são as três (e únicas) personagens que, apenas só com a letra inicial, podem ser uma quantidade inumerável de coisas e, podendo ser tantas, acabam por não ser nenhuma, enfatizando a impossibilidade comum de conhecer na totalidade o outro — apenas conhecemos alguém através do papel que ocupamos na sua vida.
É interessante observarmos esta tentativa de busca de identidade, e consecutiva frustração constante, em H., colocando esse cenário na altura em que Manual de Pintura e Caligrafia foi escrito: bastante diferente em estilo de Claraboia, é um Saramago sempre, e cada vez mais presente desde Terra do Pecado, mas ainda não é o Saramago como comummente o conhecemos. Mas tudo isto é Saramago, citando: “um livro é, acima de tudo, a expressão de uma parcela identificada da humanidade: o seu autor”. Quanto ao Saramago de Levantado do Chão, havemos de lá chegar.