Ano Saramago. “Claraboia” e “Manual de Pintura e Caligrafia”: como tudo é uma autobiografia

por Maria Pinto,    2 Março, 2022
Ano Saramago. “Claraboia” e “Manual de Pintura e Caligrafia”: como tudo é uma autobiografia
Capa do livro “Claraboia”, de José Saramago

Este artigo faz parte da iniciativa Ano Saramago, no âmbito da celebração dos 100 anos do Nobel português José Saramago. Ao longo de 2022, e até Novembro, mês em que o escritor faria o seu 100.º aniversário, a Comunidade Cultura e Arte lançará um total de 11 artigos, um por cada mês, sobre 17 livros do escritor. Já se pode ler o primeiro aqui.

Em 1953, Saramago acaba de escrever Claraboia que, após a resposta de silêncio da parte dos editores, só viria a ser publicado postumamente, em 2011.

Observamos a vida de 19 personagens, divididas por 6 famílias, que têm em comum a vivência num mesmo prédio, em Lisboa, na Primavera de 1952. A estória poderá ser apenas só isso, dado que nós como leitores apenas observamos um corte na linha contínua de vida das personagens, sem sabermos pormenorizadamente o que está para trás, e sem termos a certeza, com o final do romance, do que se seguirá para a frente.

Estas famílias, aparentemente normais, diferentes o quanto baste no aglomerado familiar, nas suas rotinas diárias e nas suas relações pessoais, têm apenas em comum a circunstância de vizinhos, partilhando o mesmo prédio, sem que necessariamente partilhem entre si relações socias relevantes para o avançar da ação. Neste ponto em específico é interessante pensar no título do livro, Claraboia, que, no romance, não tem qualquer menção, e que nos poderá colocar a pensar no significado da palavra. “Claraboia”, nome feminino, parte envidraçada de um telhado para entrar claridade, fresta numa parede para passagem da claridade ou do ar, é ao mesmo tempo uma definição do leitor como voyeur, aquele que observa de fora, como também uma ambição de esperança na procura de uma claridade, passagem de ar, liberdade.

A publicação de 2011 não esconde a ação da estória em 1952, em pleno regime de Estado Novo. Observamos famílias, em algumas situações quase idênticas a uma família da atualidade, e, ao mesmo tempo, estas são por nós observadas sempre entre quatro paredes, sendo o leitor forçado a fazer o exercício de entrar neste prédio e invadir a casa de cada uma das famílias, e não o oposto, assistindo à saída das personagens do prédio para o mundo exterior. Este aprisionamento, comum a todas as personagens, não tem o mesmo efeito em todas, sendo que a viagem que cada personagem realiza varia entre a libertação, a prisão, o conforto, a ansiedade.

A mesma circunstância política estará presente no Manual de Pintura e Caligrafia, de 1977, o romance publicado após Terra do Pecado, que “saltou à frente” de Claraboia.

Na edição de Claraboia, uma frase de Raul Brandão pode ser lida no início: “Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido”. Uma frase que nos faz pensar automaticamente no enredo de Claraboia, e que, dialogando com o livro seguinte, parece ser o ponto de reflexão onde encontramos H., narrador de Manual de Pintura e Caligrafia, no início do livro.

Capa do livro “Manual de Pintura e Caligrafia”, de José Saramago

Começamos em 1973 seguindo H. (apenas é dada a inicial, podendo ser um nome, ou apenas mais um homem), um pintor de retratos que após terminar o retrato de S., um administrador de uma empresa, e frustrado com o facto de não conseguir captar a sua imagem real, tenta retratá-lo através da escrita.   

Manual de Pintura e Caligrafia torna-se assim uma grande consciência do exercício da escrita, com jogos de palavras e significados, abrindo ao leitor a evolução de H., autointitulado pintor medíocre, tanto na sua escrita como na sua evolução pessoal e na afirmação da sua posição política.

É de facto um manual. Um manual de arte. Um manual sincero de um testemunho que passa pela vida. Um manual de experiências falhadas e do sucesso do amor. É ao conhecer M., irmã do amigo António, recente preso político em Caxias, que H. se irá apaixonar e, com isso, ganhar a consciência política e posição social que até então não assumia. É engraçado observarmos como até a sua escrita acaba por mudar.

H., S. e M. são as três (e únicas) personagens que, apenas só com a letra inicial, podem ser uma quantidade inumerável de coisas e, podendo ser tantas, acabam por não ser nenhuma, enfatizando a impossibilidade comum de conhecer na totalidade o outro — apenas conhecemos alguém através do papel que ocupamos na sua vida.

É interessante observarmos esta tentativa de busca de identidade, e consecutiva frustração constante, em H., colocando esse cenário na altura em que Manual de Pintura e Caligrafia foi escrito: bastante diferente em estilo de Claraboia, é um Saramago sempre, e cada vez mais presente desde Terra do Pecado, mas ainda não é o Saramago como comummente o conhecemos. Mas tudo isto é Saramago, citando: “um livro é, acima de tudo, a expressão de uma parcela identificada da humanidade: o seu autor”. Quanto ao Saramago de Levantado do Chão, havemos de lá chegar.

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