Ano Saramago. “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e “A Jangada de Pedra”. Para onde vamos?

por Maria Pinto,    2 Junho, 2022
Ano Saramago. “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e “A Jangada de Pedra”. Para onde vamos?
Capa do livro “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (ed. Porto Editora, de José Saramago
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Este artigo faz parte da iniciativa Ano Saramago, no âmbito da celebração dos 100 anos do Nobel português José Saramago. Ao longo de 2022, e até Novembro, mês em que o escritor faria o seu 100.º aniversário, a Comunidade Cultura e Arte lançará um total de 11 artigos, um por cada mês, sobre 17 livros do escritor. Já se pode ler o primeiro o segundo e o terceiro.

Muitos serão os motivos que levam à escrita de um livro. Um pensamento, um sonho, uma observação, uma vontade, é tudo no início sempre microscópico, mas funciona como uma pedra no sapato que recusamos tirar, ou que se recusa a sair.

A discórdia dá origem à criação de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, publicado em 1984. “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo.” — a partir desta frase de Ricardo Reis, colocada em epígrafe no livro, Saramago apresenta uma estória, provocando o autor dessa mesma frase: “Se ser espectador do espetáculo do mundo constitui a sabedoria, então, meu caro Ricardo Reis, em 1936, aí tens o espetáculo do mundo, e agora diz-me se ser espectador disto é ser-se sábio?” (em “Saramago – Documentos” disponível aqui.

E que mundo era esse? Ricardo Reis, médico exilado no Brasil, decide, em dezembro de 1936, regressar a Portugal, e visitar assim o túmulo do recém-falecido Fernando Pessoa. Depara-se com uma Lisboa sombria, em pleno Estado Novo, que tem como pano de fundo um mundo de novos regimes ditatoriais e a futura chegada de uma Segunda Guerra Mundial. Hospedado no Hotel Bragança, recebe as visitas de Fernando Pessoa que, não sendo real, discute com Ricardo Reis sobre o estado do mundo, a condição humana, e as suas relações. Saramago retrata então um autêntico espectador, um Ricardo Reis apático, o dominante racional das paixões, que não consegue comprometer-se com Marcenda ou Lídia.

Esta troca de papéis — pois, se na vida real tivesse alguém de aparecer fantasmagórico em frente a alguém seria Ricardo Reis, heterónimo, a aparecer a Fernando Pessoa — é o mecanismo utilizado, entre a realidade e ficção, para mostrar um Portugal que sustem a respiração, “onde o mar se acabou e a terra espera”.

Capa do livro “A Jangada de Pedra” (ed. Porto Editora, de José Saramago

Ao contrário de Ricardo Reis, não podemos afirmar que as personagens de “A Jangada de Pedra” sejam espectadoras do espetáculo do mundo. Em 1986, contrariando o que estaria a acontecer na altura com a entrada de Portugal e Espanha na CEE (Comunidade Económica Europeia), observamos uma Península Ibérica que, sem razão aparente, desprende-se do resto da Europa e anda à deriva, ameaçando por segundos chocar contra o Arquipélago dos Açores. Com esta premissa seguimos seis personagens que, questionando quanto baste o que está a acontecer, sentem ser as responsáveis pela rutura do continente: Joana Carda risca o chão com uma vara de negrilho; Joaquim Sassa lança, sem ter a força necessária, uma pedra ao mar; José Anaiço é seguido por um bando de estorninhos; Pedro Orce, sismógrafo vivo, é o mais eficaz dos sismógrafos, conseguindo detetar sozinho a terra a tremer; Maria Guavaira  tenta desembaraçar um novelo azul que não tem fim; e Constante, o cão Saramaguiano, é o guia desta viagem, parecendo sempre saber para onde têm de seguir.

Tal como observamos noutras obras de José Saramago, em “A Jangada de Pedra” continuamos a aceder ao universo do realismo mágico, onde a realidade de cada ação não é relevante, por mais mirabolante que seja. Para Joana, Joaquim, José, Pedro, Maria e talvez Constante (embora não consigamos aceder aos seus pensamentos), todas estas habilidades individuais são aleatórias, sendo apenas impulsionadoras, acaso do destino, e juntam em viagem este grupo de iniciais estranhos. Este marco ocasional é uma jornada da busca das personagens pela sua identidade, da mesma maneira que a Península Ibérica, insatisfeita com o que é, e andando à deriva durante todo o romance, em ritmos e direções diferentes, parece andar à procura do seu lugar no mundo.

É com a reação, por vezes apatetada e surreal, dos países à fuga da Península Ibérica, que sentimos que “A Jangada de Pedra” é atual: como é que um grupo político se comporta perante um acontecimento único de grande magnitude, impossível de prever?

Ao contrário do que acontece no final de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, a terra espera, pois a Península Ibérica não tem um desfecho definitivo, apenas esperançoso, com uma vara de negrilho talvez culpada por tudo, e que “talvez floresça no ano que vem”. Quanto às personagens, a busca pela identidade nunca tem um desfecho e, sem termos essa certeza, podemos quase afirmar que a viagem continua, as dúvidas persistem, mesmo após o livro terminar.        

“(…) o que eu gostaria de saber é o que se move dentro de nós e para onde vai (…)”, pergunta Pedro Orce, questionando-se sobre a rutura na harmonia das coisas, onde, através do acaso que é a terra, tudo se dirige para um ponto do universo. Mas há quem recuse essa viagem, pois, alguns dos Homens, senão todos, querem ser ilhas.

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