“Breve História Mundial da Esquerda”, de Shlomo Sand: algumas razões para o declínio

por José Moreira,    18 Abril, 2023
“Breve História Mundial da Esquerda”, de Shlomo Sand: algumas razões para o declínio
Capa de “Breve História Mundial da Esquerda”, de Shlomo Sand (ed. Zigurate)

Este livro de Shlomo Sand marca o meu primeiro contacto com a obra deste professor de História (Universidade de Tel Aviv) e com a recém-criada editora portuguesa Zigurate, do jornalista Carlos Vaz Marques (de notar que o próprio traduziu esta “Breve História Mundial da Esquerda”). O livro foi apresentado em Março, em conjunto com outra publicação da editora (“A Biblioteca de Estaline”, de Geoffrey Roberts) num interessante debate que contou com a participação de Ricardo Araújo Pereira, Raquel Varela, Pedro Mexia e João Pereira Coutinho. 

A noção de igualdade é o ponto de partida e a meu ver há uma mensagem subentendida ao longo deste livro: a desigualdade não se vence gerando novas desigualdades ou com a simples troca de posição entre opressor e oprimido. Isto deve-se ao facto da acção de muitas esquerdas revolucionárias não ter culminado na igualdade entre os homens, em vez disso instauraram um novo regime opressivo em substituição do anterior.

Actualmente, as reivindicações em prol da igualdade exprimem-se sob a forma de igualdade de oportunidades no sistema educativo, igualdade entre pessoas vindas de diferentes continentes, igualdade entre religiões, culturas, géneros e sexos. Tudo isso é cada vez mais compreensível e aceite. A categoria de igualdade abrange assim, no decurso da história contemporânea, dimensões complexas que por vezes é difícil reunir sob um mesmo rótulo conceptual. Assistiremos hoje a uma crise das várias componentes do mito da igualdade, susceptível de explicar a confusão entre os movimentos de esquerda?“, escreve Shlomo Sand em “Breve História Mundial da Esquerda”.

O autor embarca numa interessante leitura da história da esquerda global (partindo mesmo de uma assumida orientação esquerdista) onde parece existir um esforço genuíno de se distanciar de filtros ideológicos, algo que não me pareceu totalmente eficaz. Existe um foco desproporcional na dinâmica entre os EUA e as esquerdas globais (uma visão herdada, talvez, da Guerra Fria). Diria que, em contraponto, falta maior destaque às falhas específicas de cada regime que aborda. É que desta forma transfere muito (demasiado?) do ónus da implosão de vários movimentos de esquerda para as suas interações com poderes externos. Ao invés de explorar com maior profundidade os próprios mecanismos e dinâmicas políticas que aponta ao longo do livro, por exemplo, o autoritarismo ou a falta de pluralismo e de liberalismo político dos regimes de esquerda. A “Breve História Mundial da Esquerda” perde um pouco nessa forma incompleta como alguns conteúdos nos são apresentados (sendo que o próprio até o assume parcialmente, ao nomear o livro de “breve história”).

“Já vimos que a esquerda não nasceu com o proletariado industrial, cuja função histórica foi, ela própria, posterior ao pensamento socialista primitivo; mas a ascensão da nova classe de produtores alterou os modos de pensamento críticos tanto do capitalismo como de tudo aquilo que diz respeito às desigualdades socioeconómicas.”

“Breve História Mundial da Esquerda”, de Shlomo Sand

Demonstra que algumas das actuais lutas de esquerda, na sua génese, não estavam relacionadas com esta orientação política e que, em várias delas, a antiga esquerda era até parte do problema. Dá o exemplo, que a conservação da natureza parte inicialmente de princípios de direita: “...no campo da direita reaccionária expressou-se outrora uma tentativa de preservação da natureza“. Pois os movimentos proletários não se opunham às industrias poluidoras, que eram o seu ganha pão. Nestas e noutras questões, parece-me, que vai um pouco ao encontro da perspectiva do filósofo francês Gilles Lipovetsky (ler entrevista sobre este tema no Público): de que algumas lutas deveriam sair da sombra das ideologias e partidos que as prendem no vácuo retórico, pois são questões transversais ao bem comum. 

“Proudhon não se enganou ao detectar no filósofo alemão uma tendência para a intolerância. Quando Marx pediu a Proudhon, em 1846, antes do início da polémica entre ambos, que se juntasse ao movimento da esquerda pan-europeia, este último respondeu-lhe numa longa carta: «Não pensemos, pelo nosso lado, em doutrinar o povo; não caiamos na contradição do seu compatriota Martinho Lutero, que, depois de ter derrubado a teologia católica, começou de imediato, com grande quantidade de excomunhões e anátemas, a estabelecer uma teologia protestante. […] Por estarmos à frente de um movimento, não nos tornemos líderes de uma nova intolerância, não nos ponhamos no papel de apóstolos de uma nova religião; seja ela a religião da lógica ou a religião da razão. Acolhamos e encorajemos todos os protestos; façamos murchar todas as exclusões, todos os misticismos; nunca demos uma questão por encerrada. […] Nestas condições, entrarei com prazer na sua associação; caso contrário, não!»”

“Breve História Mundial da Esquerda”, de Shlomo Sand

Shlomo Sand apresenta-nos um exercício historiográfico sobre os movimentos de esquerda onde tenta diagnosticar as razões do seu declínio generalizado em várias regiões do mundo. Infere que esta perda global de espaço político se deve, em boa parte, ao diluir da luta de classes em favorecimento de outros focos, tais como questões identitárias diversas ou até a própria polarização do discurso político, do populismo e nacionalismo de esquerda. Refere a social-democracia dos países escandinavos e norte europeus como o maior sucesso de governação de orientação esquerdista, pela sua conjugação eficaz de princípios liberais e sociais. Com as suas convicções intrinsecamente ligadas à esquerda, trata o tema com uma honestidade intelectual acentuada, alertando com factos históricos para os perigos da cegueira ideológica, e deixa clara a sua oposição às esquerdas (e direitas) não democráticas.

Para quem o quiser abordar o tema, esta obra pode constituir uma óptima base crítica (ou autocrítica) com suporte histórico sobre os actuais movimentos políticos orientados à esquerda; do capitalismo; do comunismo; do marxismo e não só. Esta “Breve História Mundial da Esquerda” é um livro bastante interessante, de leitura fluída e apresenta-nos muitos marcos históricos da política. Só é pena que o autor não produza essa crítica de forma mais aprofundada, fortalecendo o próprio conteúdo e mensagem base. Portanto, qual a possível salvação da esquerda de acordo com o assumido socialista liberal Shlomo Sand? Necessita de passar por um processo de liberalismo profundo e de rejeitar os discursos ideológicos que corroem a democracia.

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