Entrevista. :PAPERCUTZ: “Toda a gente tem dúvidas e o ‘King Ruiner’ documenta muito a incerteza”

por Maria Moreira Rato,    26 Julho, 2020
Entrevista. :PAPERCUTZ: “Toda a gente tem dúvidas e o ‘King Ruiner’ documenta muito a incerteza”
:PAPERCUTZ / DR

Aos 35 anos, reflete acerca da fase em que começou a aliar a formação em guitarra e piano aos conhecimentos adquiridos enquanto estudante de Informática. 12 anos após o início oficial de :PAPERCUTZ, assume que “é mais fácil fazer algo novo do que defender um projeto” na medida em que “tem de se justificar a obra anterior”, no entanto, acredita que o grupo que formou ainda tem muito para dar à indústria musical. Por isso mesmo, no passado mês de março, lançou King Ruiner, com traços exóticos e influências das músicas africana e oriental. Na mais recente versão do álbum, alargada, é possível explorar temas novos. A Comunidade Cultura e Arte [CCA] teve a oportunidade de ouvir a demo de um deles, Second Days, resultado de uma parceria com a cantora neozelandesa Shannon Lawn. Numa época em que o distanciamento social se impõe, o autor de êxitos da música eletrónica como Where Beasts Die ou Ultravioleta, esclarece que “a música nunca deixará de se impor” e sugere novos moldes para que aconteça ao vivo. A dois meses da atuação no Centro Cultural de Belém [CCB],  já trabalha no próximo álbum. Bruno Miguel aceita que “o novo normal” da música é “diferente daquele que conhecemos”, mas mostra-se otimista em relação ao futuro.

Quando e como despertou para o mundo da música enquanto artista e deixou de ser apenas ouvinte?
Houve uma fase em que desenvolvi o gosto pela criação, pela escrita. Sempre gostei de música — como ouvinte e aprendiz de instrumentos porque tive formação em guitarra e piano —, mas não me considerava músico. Por volta dos 17, 18 anos, comecei a ter interesse por escrever música, sobretudo pelo facto de ter interesses como a tecnologia e a informática. Surgiu a vontade de chegar ao produto final: ao álbum, ao registo físico. Penso que tinha cerca de 19 anos quando lancei a primeira maquete, integrado numa banda, com músicas maioritariamente escritas e gravadas por mim.

Bruno Miguel / DR

Quais são as suas grandes influências musicais?
Prefiro pensar na forma de olhar para a música do que na própria sonoridade. Por exemplo, sempre achei que a Björk é uma pessoa que está à frente do seu tempo. Já esteve na moda, deixou de estar, mas é inteligente, sabe escolher as parcerias, não tem medo de arriscar e cria uma ponte muito grande entre a parte conceptual e a música propriamente dita. Mas há outros autores que me inspiram como o Brian Eno. Faço música eletrónica pop — pode parecer que não envolve grande pensamento, mas envolve, e acho que as pessoas já percebem isso — e, para além da vertente musical, gosto sobretudo de pessoas que abordam uma perspetiva mais racional e não apenas uma parte mais intuitiva e emocional. Aprecio aqueles que juntam estes dois mundos e olham para o trabalho de fora: conseguem perceber as características que os definem e criar pequenas pontes, intelectualizando a música. Em termos de som, deixo-me influenciar por várias coisas, mas no geral — se há um fator aglutinador — estas pessoas que têm uma ideia de obra inspiram-me fortemente.

Gosta de encarar a música como um processo, não somente enquanto produto final.
Exato. Costumo dizer que não sou um expert em nada: não há um instrumento que domine, não há nenhuma característica da composição e da produção musicais em que seja brilhante, mas tenho uma mais-valia: sei fazer ou, pelo menos, compreendo aquilo que está por detrás de cada tarefa. No início dos :PAPERCUTZ, tive de me dedicar à promoção, à edição, à vertente visual, à mistura e à logística dos concertos. Já desempenhei esses papéis todos. Como entendo a importância de cada um dos intervenientes, tento intelectualizar no sentido de criar um conceito. Tento que exista uma visão unificadora para que tudo faça sentido. Se exagerarmos isto, é claro que a música pode parecer predeterminada ou fria. No meu caso, acho que isso não acontece mas esse julgamento deve ser feito pelo ouvinte.

É formado em Informática pela Universidade do Minho. De que forma o seu percurso académico contribui para o enriquecimento da obra musical que cria?
Quando decidi aquilo em que me poderia formar, percebi que as saídas na área da Música não me interessavam muito. Só havia saídas mais ligadas à sonoplastia. Nesse sentido, a Informática serviu para duas coisas: grande parte da música é dependente de máquinas: em primeiro lugar, há conceitos diretamente ligados ao computador e até às questões de eletrónica. E isso beneficia-me porque houve situações em que isto me foi útil. Em estúdio, sinto mais confiança; em segundo lugar, há que perceber a potencialidade da Informática. Houve uma fase em que me afastei da Informática, depois de dar aulas, e foquei-me na música. Nos últimos anos, devido à necessidade de mobilidade, o computador volta a tornar-se uma ferramenta muito importante. E há processos que acontecem no mundo natural — de gravação de instrumentos — que tento simular. Outra questão que tenho de realçar é que adquiri a ideia de estrutura. Gosto de pensar a música de forma racional e penso que a formação universitária leva-nos a compreender que existem métodos e processos para chegar às coisas. Não as fazemos simplesmente por fazer. E isso levou-me a ter interesse por outras temáticas, como a relação mais básica que desenvolvemos com a música. Porque é que desperta em nós determinadas reações? Leio sobre o assunto, em termos científicos, e isso surge por meio da minha formação académica.

Bruno Miguel / DR

Porque é que, quando estamos num concerto, cresce em nós um sentimento de união e pertença? Somos tão diferentes, mas a música é um escape.
Precisamente nesta altura, a maior característica da música é o seu maior inimigo. Vivemos um tempo em que se fala de distanciamento social. Para mim — que estou nos dois lados, fora do palco e no mesmo —, reconheço que a música é um enorme aglutinador social. Para além das pessoas cantarem ou não as mesmas letras, há coisas em que nem sequer pensamos: num concerto, não se presta atenção a géneros, a raças, a crenças ou a estatutos sociais. E isso acontece porque a música oferece-nos um escapismo. Aliás, já falei com o Valter Hugo Mãe acerca desta questão e ele explicou-me que, na perspetiva dele, a palavra veio primeiro do que tudo. Por acaso, acho que foi a música. E há estudos científicos que o comprovam, explicitando também o poder da música enquanto criadora de interações sociais. Ao mesmo tempo, este é o maior problema. Temos de permitir que as pessoas usufruam da música com afastamento.

Como é que a música se pode adaptar a este período de pandemia? Existe a possibilidade de se reinventar?
Ainda há dois dias, dei uma entrevista em que me foquei nesta questão: o novo normal da música é diferente daquele que conhecemos. Mas também podemos usufruir da música — enquanto ouvintes e criadores — de forma solitária. A reinvenção diz respeito à pergunta para um milhão de dólares: a música continua a existir, mas como é que vai funcionar ao vivo? Como é que a interação social em redor da mesma acontecerá? Há fenómenos que podemos achar estranhos, mas que existem: há soluções tecnológicas para criar espaços virtuais. Por exemplo, o Travis Scott e os Massive Attack já realizaram concertos deste modo. Relativamente ao espaço real, os eventos terão mais regras, mas não vão desaparecer. Haverá uma mudança de cenários — não acredito no conceito de drive-in, não vai resolver nada – até porque tenho visto coisas interessantes como a integração de espaços naturais. Ainda há uns dias, toquei num espaço histórico, num castelo em Arcos de Valdevez, e era um espaço mais aberto. Com o distanciamento, alguma da euforia habitual perde-se, mas há interação e até pode haver a descoberta de espaços novos. Daqui a dois, três anos, tudo pode voltar ao normal.

Vamos recuar até 2007, quando participou na banda Oxygen. Até que ponto esta experiência o moldou?
Editámos alguns trabalhos: uma demo e um álbum. Na adolescência, produzia música mais agressiva – eletrónica com elementos de industrial — mas já era eletrónica.

O nome :PAPERCUTZ remete-nos para uma tradução literal da expressão inglesa para português: cortes de papel. O que significa realmente?
Um corte de papel com algum significado, a arte oriental de cortar o papel. Antes de criar :PAPERCUTZ, compus temas para um CD multimédia que acompanhou uma fase de remodelação do Maus Hábitos [espaço de intervenção cultural no Porto]. Havia o objetivo de criar uma sonoridade para cada uma das salas e as pessoas diziam que o meu trabalho era bastante detalhado. Trabalhava com loops, havia muito a ideia de recorte, de edição. Lembrei-me do corte de papel e discuti isto com uma designer. Tem que ver com a semelhança que existe entre o cuidado que eu tenho com as músicas — um processo quase plástico — e os loops, a parte eletrónica.

Trabalha num molde pouco habitual em território português: o grupo é oficialmente formado por si e associa-se a diversos vocalistas. Por exemplo, Catarina Miranda (Emmy Curl) é uma presença constante. Que motivos o levaram a adotar este formato?
Posso referir o Rodrigo Leão — interessa-se por projetos de música “mais cantada”, por outros de música mais instrumental, por cinema — que já faz isto também. Há pessoas que fazem isto em Portugal — se calhar, de uma forma não tão declarada quanto a minha — e eu faço-o desde o início. Há quem atribua o início do meu projeto ao ano de 2005 mas, à época, estava a estudar Informática e o projeto ainda não era “a sério”. Cantava um bocadinho, mas tinha dois vocalistas: por vezes, são as músicas que me fazem pensar “Aqui ficava bem a voz de x ou y”. No futuro, tudo será um pouco assim: os álbuns de :PAPERCUTZ terão colaborações, mais ou menos predominantes. Mas isto não é um grande plano: é perigoso fazer grandes planos. :PAPERCUTZ será sempre o meu projeto principal, mas tenho feito outras coisas com outras pessoas.

:PAPERCUTZ / DR

Em 2008, apareceu na compilação do concurso Novos Talentos Fnac, sendo escolhido pelo locutor Henrique Amaro da Antena 3. Este destaque serviu como rampa de lançamento do seu então recente projeto?
Claro. Conta-se pelos dedos — em toda a História — o número de pessoas que teve uma ideia e acreditava tanto nela que não precisava da confirmação de outros para entender se tinha descoberto algo com valor. Isto é, precisamos sempre de alguém que nos diga “Tens aqui algo bom”. Ou algo que desperte ódio, o que pode ser sinal de que criámos algo efetivamente muito bom. Demorei algum tempo a perceber que existem dois “não gostar” diferentes: quando há uma sensação de desconforto, pode ser positivo. Por exemplo, quando ouvi a voz do David Sylvian pela primeira vez, estranhei, mas tornou-se um dos meus vocalistas preferidos. Posso dizer que :PAPERCUTZ não é um projeto de massas. Nunca foi. Mas, neste momento, chega a mais pessoas. Posso dizer que sinto-me feliz por termos vivido várias coisas em primeira mão, como lançar uma primeira edição noutro país. E isso deu-me alguma segurança. Em Portugal, as editoras não percebiam muito bem em que espaço se inseria o projeto.

Está a falar do Lylac.
Precisamente. Há uma sonoridade que, hoje em dia, podia ser atribuída a alguém como o Noiserv. Eletrónica glitch com ritmos estranhos e, no país, não se percebia qual seria o mercado para o álbum. Mas uma editora canadiana mostrou-se desde logo interessada. E há que referir outro ponto: é cada vez mais importante que uma banda comece a dar concertos desde o primeiro dia. E o Novos Talentos Fnac obrigou-me, de certa forma, a apresentar-me ao público. Com a compilação, tivemos convites para nos apresentarmos em várias lojas Fnac. Ora, isso levou-me a sair do estúdio e a projetar a conceção de concerto. Tive de pensar em aspectos como o transporte de material ou as músicas que deviam ser tocadas ao vivo.

Das 13 músicas que compõem o álbum anteriormente mencionado, existe alguma que o marque fortemente tantos anos depois?
Não posso estar muito preso a isso porque costumo agir de forma contrária: não gosto de voltar atrás. Passo muito tempo com um álbum e foi sempre difícil, para mim, terminar projetos. Tenho esse problema mas, ao mesmo tempo, penso no futuro. Posso dizer que, neste momento, estou focado na Become Nothing, o novo single. Finalmente faremos um videoclipe. Vamos trabalhar com o Vasco Mendes, um dos melhores realizadores deste país. Na próxima segunda-feira, será publicada uma edição com remisturas de misturas do novo álbum: peguei no original, ouvi as misturas. Agora, estou a pensar num próximo tema que já estará incluído nesta edição.

Em abril de 2009, foi galardoado com um prémio da categoria Off The Beaten Track no The People’s Music Awards, em Londres. Por outro lado, em agosto do mesmo ano, arrecadou o prémio Ones To Watch do MySpace (nunca alcançado por uma banda portuguesa). Estes reconhecimentos internacionais permitiram que os :PAPERCUTZ chegassem a um público mais vasto?
Aquilo que acho mais importante, nos prémios, é o seu resultado. O que eles fazem? Acho que isto é transversal a várias áreas: aquela questão da validação do trabalho. Obviamente que isso é importante até porque, logo no primeiro álbum, tive uma radialista com vinte anos de carreira na BBC [Annie Nightingale] a escolher uma música minha entre 500 e tal. Os prémios abrem portas na indústria e outras pessoas validam o trabalho. Em Portugal, :PAPERCUTZ é reconhecido, mas acha-se que não funciona bem para o público. Com o tempo, conseguimos provar que isto não é bem verdade. Estes prémios obrigavam os próprios portugueses a estarem mais atentos.

Volvidos dois anos, lançou o álbum de remisturas Do Outro Lado Do Espelho – Lylac Ambient Reworks com o selo da Audiobulb Records. O que representou, em termos de ascensão, este voto de confiança de uma editora inglesa?
Há uma discussão longa acerca das editoras serem donas dos trabalhos produzidos pelos artistas. Dela, fazem/faziam parte pessoas como a Taylor Swift ou o Prince. Tive sempre cuidado para que tal não acontecesse: a minha relação com as editoras é de parceria. Tenho uma ideia para um álbum e procuro pessoas que me possam ajudar, por exemplo, a editá-lo em vários países. Neste caso, queria revisitar o Lylac com a ajuda de outros artistas, associando-o a uma eletrónica mais ambiental e experimental.

Em 2011, esteve em Nova Iorque a trabalhar com o produtor Chris Coady [conhecido pelo trabalho desenvolvido com bandas como os Yeah Yeah Yeahs ou TV On The Radio]. Em julho do ano seguinte, saiu The Blur Between Us com o apoio da editora inglesa Sounds Of a Playground. Este trabalho é considerado “mais negro” pela crítica. Como descreveria o processo de criação do álbum em questão?
Esse álbum constitui o maior crescimento que tive, enquanto músico, até ao momento. É diferente porque foi composto em Portugal e posteriormente produzido nos EUA. Foi ambicioso, para mim, porque tem instrumentos acústicos, elementos orquestrais e metais. Lembro-me de chegar ao estúdio, no Porto, para gravarmos, e gerei uma pauta no computador. Entreguei-a a um músico e ele respondeu “O meu instrumento não consegue tocar esta nota”. Numa partitura, há um extremo, e num computador é possível ultrapassar limites físicos. Há que ter esse know-how, que eu não tinha. No mesmo dia, revi a orquestração com o Osvaldo Fernandes – incrível, começou a dar aulas mal terminou o curso — e gravámos os instrumentos. Foi uma experiência muito boa, porque estive presente em todos os momentos. A aprendizagem foi fundamental para perceber aquilo que um álbum ainda maior do que o meu pode implicar.

No fim de 2012, regressou a Nova Iorque para participar na Red Bull Music Academy. Entretanto, já tinha tocado em festivais de grande importância como o South By Southwest, no Texas. Em que medida a cultura vibrante e em permanente evolução dos EUA o influenciou e moldou?
Queixamo-nos sempre de que faltam certas coisas em Portugal mas, naquilo que diz respeito à música ao vivo, o nosso país tem excelentes condições: técnicos formados, boas salas e bom equipamento. Mas as coisas não acontecem porque há pouca programação. Nos EUA, é diferente: a perspetiva deles é “O que interessa é acontecer”. E as coisas acontecem. É uma cultura de eficiência e empreendedorismo, à falta de melhores palavras. As pessoas acreditam e fazem. Alguém diz — e eu vi isso a acontecer — “Vou gravar um álbum em duas semanas”. E há muita cooperação, os projetos realizam-se. Uma digressão nos EUA implica grandes distâncias e muitas datas, portanto, assim que uma banda se inicia, aluga uma carrinha e faz-se à estrada. Há uma experiência elevada. Tudo evolui mais rapidamente porque há coisas a acontecer constantemente. É possível que, em dois anos, algo que se dê por garantido mude. É uma cultura muito marcada pela dificuldade. Desde o 11 de setembro passando pelo Furacão Katrina, há acontecimentos que despertam nos norte-americanos a necessidade de sobrevivência. Em Portugal, somos mais comodistas: podemos ter uma atenção redobrada aos pormenores técnicos — e por isso é que os artistas estrangeiros adoram tocar cá —, mas as coisas demoram a acontecer. Há menos mudança. Nos EUA, é tudo muito mais rápido.

De regresso a Portugal, apresentou The Blur Between Us em festivais como o Paredes de Coura e também na Casa da Música. Existe uma diferença entre as audiências internacional e a nacional?
Em primeiro lugar, o povo português não é muito diferente de outros europeus. Recebemos muito bem os artistas que conhecemos, somos muito dados. Basta vermos aquilo que aconteceu recentemente em concertos como o do Nick Cave. São artistas que não estão sempre cá e, quando vêm, há a noção de que se presencia algo que não voltará a acontecer tão depressa. Por outro lado, temos dificuldade em aceitar projetos novos que não tenham algum hype. Porque há quem pense “Vou ser o primeiro a conhecer estes tipos e eles vão ser enormes daqui a uns anos”. Um norte-americano, se vai a um concerto e gosta daquilo que ouve, reage de imediato. Somos mais desconfiados e isso tem que ver com as nossas formas de ser e estar. Já demos concertos aqui, onde ninguém nos conhecia, e as pessoas eram mais frias. Mas já estivemos nos EUA, sem nos conhecerem, e após duas ou três músicas, obtínhamos feedback. Há uma característica que temos (ou parecemos ter): somos um público que pode ser fiel. Nos EUA, o ciclo é distinto: o artista aparece e desaparece num ápice.

Em entrevista ao Jornal de Leiria, referiu “Escrevemos canções baseadas numa instrumentação electrónica, mas vamos buscar influências a uma música tradicional e urbana, oriunda de todo o Mundo”. É dessa forma que descreve o estilo dos :PAPERCUTZ?
Sim, é uma boa descrição. Em termos de crítica, oiço muito que temos traços escapistas e sonhadores. Normalmente, há uma mistura entre instrumentos orgânicos e a parte eletrónica. Existe uma fusão e, no recente álbum [King Ruiner], existe a procura por elementos que podem ser associados a algum exotismo como música africana ou oriental. Há uma junção de mundos.

No fim de 2014, iniciou um hiato para se dedicar a outros projetos como a composição de bandas sonoras. Que impacto teve esta interrupção na maneira através da qual encarava os :PAPERCUTZ?
Há projetos que não tiveram visibilidade — como pequenas coisas em cinema ou em publicidade — e outros ficaram pelo caminho. Não existe a ideia de abandono porque há pessoas com quem trabalho e, se eliminasse o contacto com elas, deixaria de ser o mesmo produtor. Tive alguma dificuldade em perceber qual seria o passo seguinte de :papercutz e, então, decidi afastar-me um pouco. Ganhámos um novo fôlego quando recebemos um convite.

Em 2017, para representar Portugal na edição anual do Eurosonic, na Holanda.
Exatamente. Isso levou a que voltássemos aos concertos ao vivo. Senti-me entusiasmado por aquilo que estava a acontecer em Portugal, pois havia uma comitiva com identidades próprias e diversas. Na altura, percebi que ainda tínhamos coisas para oferecer. Nunca podemos dizer que somos iguais a outro grupo. O interregno deu-se numa fase ideal porque consegui ver, de fora, aquilo que os :PAPERCUTZ poderiam representar em Portugal assim como internacionalmente.

E avançou para o King Ruiner.
Toda a gente tem dúvidas e o King Ruiner documenta muito a incerteza que sentia. Para além do Eurosonic, tocámos muito noutros países e percebemos que não fazia sentido terminar o percurso. É mais fácil fazer algo novo do que defender um projeto. Tem de se justificar a obra anterior. Achei que valia a pena dar continuidade à banda.

Em fevereiro, cancelou as datas chinesas da tour, no entanto, manteve as datas japonesas. Como foi lidar com o surgimento do coronavírus estando em digressão no continente de onde o mesmo é oriundo?
Já discutia a questão da pandemia, com a minha família, quando ninguém ainda tinha uma máscara. No final de 2019, o promotor da digressão avisou-nos de que algo estava a acontecer na China. No Japão havia cuidados, alguns receios, mas os concertos continuavam a acontecer. Até que a ideia de pandemia propriamente dita tornou-se uma realidade. Ao longo dos dias, comecei a receber notícias de Portugal e compreendi que existiria um confinamento. Depois, a digressão europeia foi adiada. Então, tocámos no Japão durante dias seguidos. E se estivéssemos mais um dia no país, teríamos ficado retidos no aeroporto ou em Madrid, onde faríamos escala. As notícias eram divulgadas e tinham uma consequência automática no nosso quotidiano. Continuávamos a ter público, porém, as pessoas seguiam escrupulosamente as ordens governamentais. Gosto de me manter informado, mas existe um distanciamento entre a informação que nos é transmitida e a realidade. Neste caso, tive o maior encontro com a realidade.

O King Ruiner foi gravado entre o Porto, Nova Iorque, Hamburgo e Tóquio. Como conseguiu entreligar as diversas sonoridades com as quais contactou?
Começámos a apresentar temas novos antes do lançamento do álbum. Houve uma fase de apresentação do nosso novo caminho, inclusive ao vivo. Foi uma forma de perceber melhor a direção do álbum. Aquilo que aconteceu foi o seguinte: gravei temas com a Catarina [Miranda] mas, por vezes, há ideias que são difíceis de transmitir ao público. Por vários motivos, tento apresentar o álbum como produto de alguma globalidade. Posso fazer isso de uma forma instrumental mas, o melhor, é incorporar essa globalidade. A Catarina simulou, por exemplo, coros de música folk africana ou sacra. O álbum é sobre superação e a força que encontramos para ultrapassar as dificuldades.

Para além de Catarina Miranda, juntou-se a Ferri (artista japonesa apontada como revelação de 2019) e a Lia Bilinski (cantora alemã). Como foi trabalhar com três vozes díspares e integrá-las no álbum?
No caso da Lia, ela tem uma voz muito forte que se opõe ao timbre melódico da Catarina. E isto não depende da língua porque a Ferri canta em japonês e em inglês. Foi um processo natural. As três partilham a noção de mundo, pois não estão presas às vivências dos seus países. Para além disso, o inglês é a língua comum. Atualmente, somos cada vez mais parecidos. Se for a qualquer parte da Europa, aos EUA ou ao Japão, conheço pessoas da minha idade que têm gostos iguais aos meus. O acesso à cultura é mais fácil, mas há particularidades. E, trabalhando a vertente instrumental, consigo unir as três.

Catarina Miranda, Lia Bilinski e Ferri / DR

Há uma marca pessoal.
Sim, quase como “uma mão invisível”. Não quero que seja muito presente. As letras têm elementos aglutinadores. Posso tentar criar algo e o resultado acabar por ser falso, plástico ou demasiado pensado. Por exemplo, já quis trabalhar com um coro africano mas, posteriormente, pensei que poderia parecer forçado. :PAPERCUTZ nunca teve esse tipo de integração ao ponto de ter características tão diversificadas. Por isso, a Catarina simulou esse coro. Deixo-me influenciar por elementos mas, ao invés de me apropriar dos mesmos, crio a minha versão.

Na versão alargada do King Ruiner podemos ouvir Second Days, single que conta com a participação da cantora neozelandesa Shannon Lawn. Em plena pandemia, como funciona o processo de produção musical dos :PAPERCUTZ?
Fiz aquilo que outros músicos decidiram fazer: não parei. Temos uma edição especial, que saiu nesta segunda-feira, que inclui remisturas de temas assim como um original. A minha ideia é, neste momento, trabalhar em ensaios para os próximos concertos – que estão marcados – e aproveitar a colaboração com a Shannon de uma forma criativa. Como é que se resolve isso em período de confinamento e pós-confinamento com regras apertadas? Isto só é possível se tivermos métodos de trabalho que se entreliguem. No meu caso, crio um primeiro esboço – uma base instrumental que pode vir a ser alterada – e, como não considero a minha voz um instrumento competente, trabalho com vocalistas. A minha voz é temporária e, numa espécie de escrita automática, – com palavras e vocalizações que podem ser mais ou menos aproveitadas – envio esse registo à vocalista em questão. Assim, percebemos aquilo que funciona (ou não), começamos a fazer alterações e retiramos ou incluímos elementos. Tenho um conceito para a música – que define o tom, por exemplo, se é imagética, de oposição a algo que se está a passar ou até mais alegre – desde o início, mas não defino letras. Posteriormente, é uma questão de trabalhar a letra e encaixar a métrica da voz da vocalista. Neste momento, como temos acesso a estúdios próprios, é mais fácil conjugarmos os trabalhos individuais. Há que ter cuidado para que a música seja natural. Porque é criada para simular a ideia de uma atuação ao vivo, ainda que isto seja diferente na música eletrónica. No entanto, apesar do processo de criação não ser tão óbvio, os ouvintes imaginam que o instrumentista e a vocalista trabalharam juntos. E eu não quero que o distanciamento social seja percecionado. O trabalho coletivo tem de continuar a acontecer.

No próximo dia 24 de setembro, atuará no CCB. Que expectativas tem em relação a este concerto?
Será o mais completo, até ao momento. Teremos convidados provenientes de projetos nacionais, haverá um formato alargado. Tocaremos o King Ruiner na totalidade e vamos incorporar temas de trabalhos anteriores. A expectativa é que corra bem, mas não sabemos se a atuação poderá acontecer nas condições normais. Desconhecemos se será um concerto aberto e, se for, o público pode não se sentir totalmente confortável. Existem estas ansiedades, mas haverá uma luta da nossa parte.

Como é que o futuro se afigura para os :PAPERCUTZ?
Estou positivo relativamente à relação que as pessoas têm com a música. Nesta altura, principalmente, percebeu-se o quão essencial ela é. Numa época em que se aborda tanto a saúde mental, creio que já se compreendeu a necessidade de ferramentas como a televisão, o cinema ou a literatura para o nosso bem-estar. A música nunca deixará de se impor. A questão é como acontecerá ao vivo. Como acompanhei o início da pandemia de perto, percebi que teria de me dedicar mais ao trabalho de estúdio. E, nesse sentido, já estou a trabalhar num próximo álbum para que seja editado em 2021. Nunca estive tão ocupado.

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