O legado cada vez mais vivo de Roberto Bolaño
Roberto Bolaño Ávalos. É este o nome de um dos maiores meteoros literários de proveniência chilena. Vivendo somente 50 anos de vida, foi a capital do Chile que o viu nascer a 28 de abril de 1953, morrendo a 15 de julho de 2003 do outro lado do Atlântico, em Barcelona. Apesar de um percurso muito profícuo dentro do seu país, seria conhecido para o resto do mundo depois da sua morte, com a difusão em massa da sua obra em vários idiomas, promovida por várias pessoas ligadas à literatura. A sua influência continua viva e pulsante para toda a América do Sul, mas também para muitos daqueles que querem conhecer as suas veias, como o fizeram com o seu compatriota Neruda ou com o argentino Borges.
En aquel tiempo yo tenía veinte años
“Los perros romanticos” (1994)
y estaba loco.
Había perdido un país
pero había ganado un sueño.
Y si tenía ese sueño
lo demás no importaba.
Ni trabajar ni rezar
ni estudiar en la madrugada
junto a los perros románticos.
Y el sueño vivía en el vacío de mi espíritu.
Una habitación de madera,
en penumbras,
en uno de los pulmones del trópico.
Y a veces me volvía dentro de mí
y visitaba el sueño: estatua eternizada
en pensamientos líquidos,
un gusano blanco retorciéndose
en el amor.
Un amor desbocado.
Un sueño dentro de otro sueño.
Y la pesadilla me decía: crecerás.
Dejarás atrás las imágenes del dolor y del laberinto
y olvidarás.
Pero en aquel tiempo crecer hubiera sido un crimen.
Estoy aquí, dije, con los perros románticos
y aquí me voy a quedar.
Roberto nasceu no seio de uma família de classe média-baixa do centro do Chile, vivendo entre Valparaíso e Viña del Mar. Filho de um camionista e de uma professora, teria somente uma irmã mais nova e cresceria de forma relativamente feliz, começando a trabalhar com somente dez anos, a vender bilhetes de autocarro. Apesar de relativamente feliz, a vida conjugal dos seus pais era instável, fator que, aos treze anos de vida de Roberto, levá-lo-ia a viver para o México e para a sua capital.
Foi nesta cidade que se começou a interessar pelos aparatos políticos que se iam sucedendo, culminando com um forte movimento estudantil que se opunha ao regime de Gustavo Díaz Ordaz e que culminaria num massacre perpetrado pelo exército sobre os estudantes. A Matanza de Tlatelolco, deflagrada a 2 de outubro de 1968, levaria Bolaño a redigir uma obra mais de trinta anos depois: “Amuleto” (1999). A invasão à Ciudad Universitaria é contada na primeira pessoa através de uma mulher uruguaia na casa dos quarenta anos, que acompanha o desenrolar dos acontecimentos desta efeméride.
Bolaño abandonaria os estudos no ensino secundário, aos dezasseis anos de idade, dedicando-se inteiramente à leitura e à escrita. Os estudos ficaram de lado em permanência enquanto se ia mergulhando em géneros tão vários que iam desde policiais, os clássicos latinos e até literatura mexicana. Era, assim, presença frequente na biblioteca da cidade, enquanto fazia pequenos biscates, desde vender lamparinas com a Nossa Senhora da Guadalupe até pequenos trabalhos em jornais de maior ou menor notoriedade. A sua escrita diversificava-se entre teatro, poesia e prosa, tendo uma vida socialmente pouco ativa e, como tal, acabando por ter um percurso muito profícuo.
É um período em que nascem duas das mais emblemáticas obras da sua autoria: “Los Detectives Salvajes” (1998, que lhe valeu o Premio Herralde e o Romulo Gallegos), protagonizada por um estudante de Direito de 17 anos e que, em forma de diário, viaja entre o México e o deserto de Sonora, na fronteira com os Estados Unidos. Aliás, é aqui que nasce o ponto de partida do enredo de “Amuleto”. Pelo meio, são compilados mais de cinquenta testemunhos, associados às vivências de Artur Belaño, o alter-ego lírico de Bolaño, e homenageando o seu bom amigo Mario Santiago Papasquiaro, também ele membro de uma corrente literária que notabilizaria a ele e ao chileno: o infrarrealismo.
É um termo herdado do surrealismo, claro, mas muito por intermédio da figura do chileno Roberto Matta, que seria um dos últimos surrealistas no ativo, com a bênção de André Breton. Aliás, grande parte das personagens seriam adaptadas do seu percurso de vida, fazendo um traçado quase autobiográfico do seu percurso pessoal e social. Este infrarrealismo, que será explicado com mais detalhe adiante, trata-se de um movimento poético que, com base no México e com origem no ano de 1975, convida a uma escrita livre e muito pessoal, distanciando-se das convenções sociais à imagem do que, na década de 1960, foram fazendo os membros da Generation Beat.
Já “2666”, publicada postumamente em 2004, tem o seu trama situado numa cidade imaginária, Santa Teresa, embora em muito associada a Ciudad Juárez, bem na fronteira com os Estados Unidos. É composto por cinco partes, que envolvem a busca por um autor alemão, de seu nome Benno von Archimboldi, a vida de um professor chileno e da sua filha, a viagem de um jornalista estadounidense para cobrir um combate de boxe e as investigações feitas para desmistificar os vários assassinatos de mulheres que são perpetrados nessa cidade, assassinatos estes nos quais revolvem as diferentes linhas narrativas. Ambas as obras seriam amplamente premiadas, desde o Premio Rómulo Gallegos (1999) até ao National Book Critics Circle Award (2006), e confirmavam o enormíssimo potencial de criar e de fomentar o fantástico e o intrigante numa metaliteratura (literatura que faz outra tanta literatura e que se autorreferencia) que nunca deixa o real de parte.
Cuando uno sabe, sabe, y cuando no sabe lo mejor es aprender. Y, mientras tanto, no decir nada, a menos que los que uno diga esté encaminado a hacer más claro el aprendizaje. Su vida misma, según explicaba, había sido un aprendizaje constante.
“2666”
Depois de algum tempo a saltar de colónia em colónia (bairros urbanos) na cidade do México, estaria de volta ao país que o viu nascer numa fase crítica: corria o mês de agosto de 1973, Salvador Allende e o socialismo estavam no poder e Bolãno chega ao país após uma longa viagem que o levou a oscilar entre um autocarro e um barco. Um mês depois, deflagra o golpe de Estado de 11 de setembro, que depõe Allende e que institui a ditadura militar liderada pela figura de Augusto Pinochet. Dois meses depois, o escritor seria mesmo detido, acabando por ter a sorte de um companheiro seu o ajudar a ser libertado. Foram oito dias de reclusão, contudo, que serviriam de mote para “Llamadas Telefónicas” (1997), o primeiro a ser publicado sem a necessidade do autor bater à porta de várias editoras, tendo a editora Anagrama por sua conta. Este é um livro de contos que se foca em escritores como protagonistas, num primeiro momento, mas também agentes políticos e, na sua terceira parte, com Belano e as suas relações conjugais, as vividas e conhecidas.
Perante uma experiência tão traumática, o chileno decide abandonar o seu país e só voltaria a este mais de vinte anos depois. O regresso ao México não tarda, ficando marcado para janeiro de 1974, depois de uma breve passagem por El Salvador. Foi neste regresso que viria a cultivar uma profunda amizade com o escritor Papasquiaro, assim como com Bruno Montané, também ele emigrante proveniente do Chile. Seria aqui que o tal infrarrealismo nasceria, fruto de férteis tertúlias culturais e literárias (internacionais até, incluindo equatorianos, peruanos e mais chilenos) que respondiam à necessidade sentida de mudar o paradigma da literatura no México. Então em muito sustentada na figura de Octavio Paz, que seria Nobel da Literatura em 1990, seria transformada num discurso menos oficioso e mais bravo, onde a liberdade de expressão e a riqueza viva e presente da linguagem deviam prevalecer, com um certo trago dadaísta e satírico. Era a representação de um quotidiano repleto de dissonâncias e de voltas do destino nestas urbes mexicanas, nas suas vísceras modernistas e realistas.
Era quase uma tomada de atitude concertada e destinada a boicotar a mercantilização literária, associada a um negócio. Como epicentro da preparação destes murros na mesa e do seu manifesto, da autoria do chileno, estava o Café La Habana, situado na avenida Bucareli, que seria recordado nas tramas de Bolaño como o “Café Quito”. Era uma “hora zero” da literatura, hora que despertou uma rotina no chileno de escrever diariamente, sem exceções, desde a madrugada até ao momento do amanhecer. Foi uma rotina que levou consigo para o novo país em que passou a viver: Espanha.
Do outro lado do Atlântico, uma grande desilusão amorosa, a perseguição policial da qual era vítima e a mudança de residência da sua mãe fizeram com que o autor mudasse de ares e acabasse por se fixar em Barcelona. A sua mãe havia adoecido e, como tal, acabaria por fazer com que o escritor, eventualmente, depois de saltar entre Espanha e França, se fixasse nesta Catalunha. Para trás, havia deixado o momento da publicação do seu primeiro livro de poesia: “Reinventar el amor” (1976), composto somente por vinte páginas e resultado, na verdade, de um só poema dividido por várias fases narrativas. Isto porque tinha colocado o teatro de lado, depois de queimar à volta de setecentas páginas que havia escrito, uma forma de se declarar como exclusivo da poesia.
Esta mudança geográfica de Bolaño acabaria por levar ao seu afastamento dos amigos que deixara no México, remetendo-se a trocar correspondência e a pontuais chamadas telefónicas com estes. O seu amigo Papasquiaro regressaria em 1979 ao México e por lá tentaria manter vivo o espírito infrarrealista. Para manter a sua salvaguarda económica, foi de vigilante noturno a vendedor, passando por funcionário de hotel e até a lavar louça em restaurantes e hotéis. Procurava manter hábitos de leitura e de escrita, mas, na ausência de dinheiro, atrevia-se a roubar livros.
Inicialmente, fixar-se-ia num apartamento de 25 metros quadrados, que havia sido parte de um antigo convento. A casa-de-banho era compartilhada com os vizinhos, a eletricidade era inexistente e as janelas exteriores estavam voltadas para outro edifício. A vida social de Bolaño era limitada à sua carteira, conseguindo frequentar alguns cafés e bares, onde aproveitava para jogar matraquilhos. De igual modo, dava caminhadas pelas amplas ruas de Barcelona. Posteriormente, ele, ao lado da sua irmã, da sua mãe e do companheiro desta, mudaria de residência, agora num edifício de traça modernista. O chileno conseguiria um trabalho estável de vigilante noturno num acampamento situado nos arredores de Barcelona.
Foi esta a sua vida entre 1978 e 1981, numa fase em que se procurava envolver na cena literária catalã. Foi conseguindo encontrar o seu espaço junto do novelista A.G. Porta e do seu amigo de longa data Bruno Montané, que ainda estava pela Europa, e com quem se apresentou em “Algunos poetas en Barcelona” (1978), entre outras antologias líricas e projetos, como revistas literárias. Nestas, procuravam, também, apresentar talentos sul-americanos do outro lado do Atlântico, como a sua amiga chilena Soledad Bianchi ou Enrique Lihn, com quem trocava correspondência assiduamente.
Entretanto, Bolaño mudar-se-ia para Girona, cidade nas proximidades de Barcelona, corria o ano de 1980. Um ano no qual já havia fermentado aquele que seria um dos seus romances de excelência: “Amberes” (2002). Com uma linguagem profundamente experimental e uma narrativa que se desdobra e se entrecruza, foi redigida durante a fase em que trabalhava como vigilante e é precisamente num espaço de campismo onde se desenrola a trama. Dividido entre Barcelona e Castelldefels, onde trabalhou, muitos mistérios vão acontecendo num bosque, desde desaparecimentos, crimes e até cenas sadomasoquistas.
Nesta nova década, Bolaño vai conseguindo fazer valer o seu talento literário, conquistando alguns galardões em concursos, muito por via do incentivo do seu amigo argentino Antonio Di Benedetto – que tratava por “Sensini”, o nome do seu alter-ego. Com 28 anos, em 1981, conheceria a sua futura esposa, Carolina López, que, à data, tinha 20 anos e trabalhava com serviços sociais. Uma simples abordagem na rua foi o que bastou para criar uma ligação que perduraria no tempo. Juntar-se-iam numa casa em 1984, ano em que publicaria o seu primeiro romance, de seu título “Consejos de un discípulo de Morrison a un fanático de Joyce”. É descrito a vida tumultuosa e conflituosa de um casal composto por um escritor, que é o narrador, e pela sua namorada sul-americana, que, para além da trama conjugal, é afligida pela incapacidade do seu companheiro acabar de redigir o seu livro sobre a figura mitológica de Dédalo, um ilustre e habilidoso artista que desenhou o labirinto que acolheu o Minotauro.
O chileno viria a arrecadar mais um prémio, desta feita o Félix Urabayen, por intermédio de “La senda de los elefantes” (1984, republicado como “Monsieur Pain” quinze anos depois, sob a chancela da sua querida editora Anagrama, sediada em Barcelona). É um trabalho repleto de diálogos e que homenageia a figura do poeta peruano César Vallejo nos últimos momentos da sua vida. 1938 é o ano, Paris o pano de fundo e um clima nebuloso e escuro, no qual se tenta salvar a sua vida por intermédio dos contributos do médico alemão Franz Anton Mesmer e do místico e pseudo-científico éter.
O casamento de Bolaño e de López seria consumado em 1985, ano em que passaram a viver em Blanes, na célebre Costa Brava da Catalunha, que seria a última residência do chileno. O primeiro ligar-se-ia ao ramo da bijuteria no qual a sua mãe havia sido bem-sucedida, a segunda voltar-se-ia, de novo, para os serviços sociais. A narrativa seria, daqui em diante, a prioridade do escritor, dado que era um modelo economicamente mais rentável e a necessidade de sustentar a sua família tornava-se imperativa. Em 1992, deparar-se-ia com os primeiros sinais daquilo que seria um calvário físico na sua vida, em especial num órgão: o fígado. A sua história escrever-se-á adiante, à imagem dos livros que escreveria nos anos subsequentes.
“La pista de hielo”, que sai para as bancas em 1993, volta a fazer do mistério de um assassinato o tema, colocando em contraponto as perspetivas de um chileno, um mexicano e um espanhol, sendo testemunhos que acabam por entretecer as peripécias das revelações associadas ao crime. No ano seguinte, chega “Los perros románticos”, este uma coleção de poesia em muito marcada pelas experiências vividas na juventude e na recém-adultidade, entre o Chile e, especialmente, o México. É um testemunho da antipoesía que acaba por beber do infrarrealismo, não o deixando esquecer na sua evolução literária.
Pronto comprendió que sólo existían dos maneras de acceder a él: mediante la violencia abierta, que no venía al caso pues era un hombre apacible y nervioso al que repugnaba hasta la vista de la sangre, o mediante la literatura, que es una forma de violencia soterrada y que concede respetabilidad y en ciertos países jóvenes y sensibles es uno de los disfraces de la escala social.
“La literatura nazi en América” (1996)
Livros que também conheceriam as bancas no século XX foram mais três: “La literatura nazi en América” (1996) faz uma aprofundada reunião de testemunhos de escritores ficcionais, oriundos de lugares desde os Estados Unidos até ao Chile, passando pelo Haiti, Cuba e até Alemanha. É uma enciclopédia que lista biografias de indivíduos que se associam ao nazismo. “Estrella distante”, datada do mesmo ano, foi o primeiro editado pelo seu amigo Jorge Herralde, da Editora Anagrama, e foi dedicado à sua mãe e ao seu irmão. Trata-se de uma obra que volta a visitar o turbulento ano de 1973 no Chile, sendo um poeta o protagonista de uma trama que o vai revelar como membro das próprias forças de segurança que procura fomentar a revolução por dentro através do que escrevia. De igual modo, é o que traz a estreia do seu grande alter-ego, Artur Belano, uma personagem originalmente complementar ao desenrolar dos acontecimentos.
Bolaño sofreria um forte revés na sua vida em 1998, ano em que publica “Detectives selvajes”. Perde o seu amigo Papasquiaro e procura refugiar-se no trabalho, aproveitando o forte ímpeto que esta obra lhe daria. Entre conferências, entrevistas e demais presenças, fixar-se-ia no Diari de Girona, um jornal de língua catalã e para o qual começaria a escrever em 1999. A sua colaboração estender-se-ia até meados de 2000, deixando um lastro de crónicas e de recensões literárias. Foi uma altura em que se mudou para um chileno, Las Últimas Noticias”, com a rubrica “Entre paréntesis”, escrevendo-a até perto da data da sua morte. Este trabalho seria compilado numa obra homónima, publicada em 2004, que faz um traçado cronológico sobre as suas opiniões sobre o mundo (muito dele de língua espanhola) e sobre literatura e até arte.
Ainda em 1998, o chileno faria o seu regresso ao seu país natal, sendo recebido em apoteose e participando em diversos compromissos com os media. Esta deslocação ocorrera por força de um concurso de pequenos contos do qual seria júri. Não obstante a fama, procurava ser discreto na sua conduta e no seu dia-a-dia. No ano seguinte, faria a sua última viagem ao Chile, por força da Feira del Libro e fez-se acompanhar pela sua família, enfrentando os seus compatriotas após ter tecido algumas críticas à literatura do país numa entrevista que havia dado em Espanha. Entretanto, dois livros surgiriam da sua autoria, sendo eles “Nocturno de Chile”, narrado por um padre pertencente à Opus Dei no fim da sua vida enquanto dá de caras com o sentimento de culpa em plena ditadura militar chilena; e a coleção de contas “Putas asesinas” (2001), onde Artur Belano narra uma série de histórias insólitas e caricatas entre, maioritariamente, Espanha, México e Chile.
Uno no termina de leer, aunque los libros se acaben, de la misma manera que uno no termina de vivir, aunque la muerte sea un hecho cierto.
“Putas asesinas” (2001)
Nos últimos anos da sua vida, embora em muito caseiro, Bolaño faria algumas viagens, em contraste com grande parte da sua vida, em que viajava com maior pontualidade. Rumou a Londres, a Paris e a Turim numa fase em que já se havia separado da sua esposa e já se tinha juntado a Carmen Pérez de Vega, que o acompanharia desde 1997. A 1 de julho de 2003, seria internado de urgência em Barcelona após uma insuficiência hepática aguda, um dia depois de entrar o seu último livro de contos, “El gaucho insufrible”, composto por cinco histórias que incidem nas temáticas e nos escritos da literatura gaúcha, em muito montanhosa e em pouco urbana, reportando a personagens campesinas. Duas semanas depois de ser internado, enquanto aguardava por um transplante de fígado, Bolaño não resistiria e faleceria aos treze anos do seu primeiro filho, Lautaro, e aos dois da sua filha Alexandra. Os direitos da sua literatura ficariam do lado da sua companheira e dos filhos e o seu corpo seria cremado, com as cinzas a serem entregues ao Mar Mediterrâneo.
Muitas foram as obras que, entre as já mencionadas, ficaram por ser publicadas e até concluídas, desde prosa, mas também muita poesia e outros fragmentos e avulsos. Havia deixado parte desse acervo a ser publicado de forma a dar um pé de meia futuro para os seus descendentes, a quem mostrava (por vezes demais) um instinto paternal muito forte. Isso não o impedia de ser sarcástico e de ter um humor acutilante, que punha ao serviço de conversas e de debates com amigos e outros seus pares.
Bolaño receberia inúmeras atenções postumamente, desde prémios a uma revisão aprofundada da sua obra, que resultou na publicação de vários livros após a sua morte, sendo que alguns deles já foram mencionados. A sua literatura chegaria a países como França e os Estados Unidos, traduzidos para os seus idiomas. A própria artista Patti Smith seria uma das caras dessa surpresa que se revelou ser Roberto Bolaño para os países de língua não-espanhola. Enquanto isso, os seus familiares continuaram a viver em Blanes, procurando honrar ao máximo o passado do seu amado.
De igual modo, a sua nação natal, o Chile, reservava-lhe honras e homenagens — como o discurso feito livro “Para Roberto Bolaño” (2005), de Jorge Herralde, os prémios instituídos com o seu nome pelo Consejo del Libro y la Lectura del Consejo Nacional de la Cultura y las Artes e a estátua que lhe foi feita na Universidad de Concepción. Em Espanha, para além de placas comemorativas em antigas residências suas, foi-lhe dedicada uma sala na Biblioteca Comarcal de Blanes, cerimónias que contaram com os seus familiares e amigos (escritores). De igual modo, atribuiria o seu nome a uma rua em Girona, para além de se protagonista de alguns documentários biográficos.
“No creo en la literatura como dietario, como diario de vida, como crónica personal; yo creo en la literatura como literatura, como un mecanismo, como una máquina autosuficiente, al menos con una autosuficiencia grande.”
Frase atribuída a Roberto Bolaño
Na década de 2010, já quase dez anos após a morte do escritor, foram vários os certames que se realizaram em sua homenagem, como uma exposição do seu arquivo realizada no Centro de Cultura Contemporánea de Barcelona, que percorreu outras cidades, como Buenos Aires ou até Turim. Foi uma homenagem que se coadunou ao escritor que se foi descobrindo com o tempo, onde as fronteiras entre a vida e a literatura eram implícitas. A reflexão sobre os valores associados à leitura e à escrita é constante entre os enredos que cria e as personagens que cria, muitas delas fracassadas na sua tentativa de lograr sucesso. Por norma, são relatos na primeira pessoa, descurando aspetos descritivos e focando-se na trama. Isto, por si só, gerava tensões no desenvolvimentos das relações humanas, que, por haver tão pouco ênfase na sua subjetividade, acaba por criar mais lugar para o insólito, para o imprevisível e para o rarefeito.
Não obstante o chileno descurar a profundidade narrativa, não se pode negar que faz o mesmo com a estrutura narrativa e com a métrica dos seus argumentos, assegurando que há uma espinha dorsal que confere sentidos aos seres, aos lugares e aos acontecimentos. Tinha, de igual modo, como hábito o de abdicar de pensar na sua obra mais recentemente concluída para se embrenhar num novo mundo, no qual as personagens da antecessora estavam já esquecidas. Porém, é inquestionável a teia de elos que se vai formando entre as suas inúmeras obras e entre as geografias das narrativas que cria, numa grande extraterritorialidade. Bolaño deambula a sua escrita entre manuscritos e mecanográficos, chegando ao computador em meados dos anos 1990, no qual ia redigindo versões prévias dos seus trabalhos até chegar às versões finais, que entregava às editoras. Para a escrita, procurava, nos últimos anos da sua vida, encontrar inspiração na música rock, que não descurava nomes como Leonard Cohen, Lou Reed, Simon & Garfunkel, Bob Dylan, entre outros nomes já sul-americanos, como a chilena Violeta Parra ou a argentina Mercedes Sosa.
O chileno entendia a sua escrita como jovem, atual, contemporânea, dedicada às gerações emergentes e vindouras, procurando com que estas não esquecem as agruras do passado, fomentando o espírito de procura e de investigação no caminho das revelações interiores e exteriores. De certa forma, enigmas que se encontram por desvendar e que podem estabelecer um paralelismo com a necessidade de encontrar a luz e a claridade na sua vida, forçando, por vezes, o recorrer a comportamentos revolucionários. Como grandes referências, assumia os mundos dos argentinos Jorge Luís Borges e Julio Cortázar, mas também a poesia francófona do chileno Nicanor Parra, de Edgar Allan Poe ou de Arthur Rimbaud. Esquerdista de valores, oscilando entre o trotskimo e o anarquismo, ateu não-comunista, tentou comprometer-se politicamente sempre que podia, embora não o fizesse declaradamente na sua literatura. A sua grande causa política, que é refletida na sua trajetória de vida, é a América Latina e, como tal, se assumia como transnacional — um latino-americano.
Roberto Bolaño traz muito de muitos mundos consigo, à imagem de todos os grandes autores da América Latina. O chileno fez do seu país de nascença, do México e de Espanha seus lugares de sedimentação de ideias, de memórias, de experiências e de sentimentos. Fez deles espaços reais ou imaginados de tantos dos seus contos, que fez questão de situar num ideário muito seu, infrarrealista, à luz das turbulências políticas e pessoais vividas. Apesar de uma vida quase meteórica e, em muitas ocasiões, privada de estabilidade financeira e emocional, Bolaño foi fazendo das questões, das dúvidas, das hesitações, das inquietações caminho aberto para (se auto)descobrir e conhecer melhor o mundo e os seus. Num trato quase policial e inquisitivo, Roberto Bolaño traz perguntas que, por mais que a sua morte deixasse em aberto, legou para os que os leem postumamente e, de um modo incansável, procuram as respostas. São as respostas da imortalidade da literatura e do eterno mistério da existência humana.