“Pão Seco”, de Muhammad Chukri: sobreviver à indigência
Antes dos 21 anos de idade, Muhammad Chukri (1935-2003), escritor marroquino em língua árabe, não sabia sequer assinar o próprio nome. “Pão Seco” é a primeira parte da trilogia autobiográfica deste autor, que apenas aprendeu a escrever em adulto. Privou de forma íntima com Jean Genet, Paul Bowles ou Tennessee Williams aquando das incursões de alguns dos maiores nomes da literatura do século XX por Marrocos, e em particular em Tânger. Escrevendo diversos livros sobre estas interações, com alguma polémica à mistura.
“O meu pai advertiu-me à hora de jantar: — Nesta casa a comida e a dormida não são à borla. É por isso que tens de trabalhar. Estás a perceber o que te digo?”
“Pão Seco”, de Muhammad Chukri
O título remete para a desesperante situação do jovem Muhammad (e dos seus companheiros de miséria, irmãos e mãe), fazia de tudo por um pedaço de pão. Aqui a expressão “seco” é utilizada no sentido de sem conduto. As palavras de Chukri desvendam-nos o período “analfabeto” da sua vida, desde o nascimento na região do Rife, à mudança posterior para Tânger. O autor e a família fugiram à fome e miséria opressiva da terra natal, mas apenas encontraram uma miséria mais complexa, em que a vida humana valia ainda menos, apesar de isso anteriormente lhes parecer impossível.
Uma miséria tão extrema, quase surreal, que aguçou o seu instinto de sobrevivência ao obrigá-lo aos mais diversos estratagemas para sobreviver. O teor, a roçar o absurdo, de muitas das peripécias deixa o leitor em dúvida permanente: Chukri estaria a exagerar para efeitos de narrativa ou terá até menorizado bastantes situações? Não sabemos nem importa. Este ténue sentimento de dúvida prende-nos à história, mesmo quando somos chocados por ela, repetidamente. Portanto, é um livro que desperta uma certa curiosidade mórbida, ou uma espécie de prazer quase proibido na leitura.
“Um pescador come uma sandes. Imagino-me a comer com ele. Reclina-se na borda da embarcação de pesca enquanto eu, exausto, olho para ele, olho e olho, talvez atire alguma coisa para eu comer. Um macaco preso ao mastro tira-lhe uma coisa das mãos e tenta nervosamente parti-la com os dentes. Desejei que aquele pescador mastigasse algo desagradável tal como eu mastigara o meu peixe podre.”
“Pão Seco”, de Muhammad Chukri
É um autêntico ensaio sobre a miséria da existência humana, quando confrontada com a indigência total e sem nada a perder. Uma miséria “libertadora” no sentido de cortar com as ambições e dependências do consumismo mundano. Destaco uma certa resiliência inabalável, quase ingénua, com que Chukri impregna as suas histórias. É igualmente fascinante a forma como consegue descrever com ligeireza os horrores deste período da sua juventude, pejado de acontecimentos inenarráveis. A sua escrita divaga num humor negro próprio, e quase requintado, perante a crueldade da miséria em que se encontrava. A escrita autobiográfica em “Pão Seco” é marcadamente original e crua, mas apresenta-se de uma forma que lembra a estética narrativa, a filosofia de vida, o escárnio e altivez que podemos encontrar nas obras do franco-egípcio Albert Cossery (também ele um autor de culto a par de Chukri). Muhammad Chukri não romantiza ou normaliza a condição de miséria, mas ri-se na sua cara com facilidade.