As contradições do amor, em ‘O Meu Inimigo Mortal’, de Willa Cather
Como pode uma mulher vibrante, idiossincrática e amável – a inveja de todos os que de fora observam o seu sucesso – ser também fria, vingativa e colérica? E como pode um marido sensível, bravo e apaixonado, ter necessidade de procurar conforto fora da sua relação conjugal, sendo, ainda para mais, desmazelado a escondê-lo?
A novela O Meu Inimigo Mortal, da americana Willa Cather, agora publicada em português pela Relógio d’Água, conta, através da voz da jovem Nellie, a história da relação entre Myra e Oswald. Nellie, que no início do relato vai com a sua tia visitar Myra a Nova Iorque, sempre ouvira falar das maravilhosas histórias da mulher que abandonara a terra natal para fugir com Oswald, o amor da sua vida, fazendo-o à revelia do seu tio-avô, seu único familiar, que lhe fizera saber que a deserdaria se ela assim o fizesse. Mas, se neste primeiro contacto com Myra, aos 17 anos, Nellie se deixava impressionar pelo carisma da mulher, nada dando a entender que a fuga de Myra tivesse sido uma decisão errada, ao voltar a encontrá-la 25 anos mais tarde, numa pequena cidade da Costa Oeste dos Estados Unidos da América, já não é capaz de vê-la com os mesmos olhos.
Não só porque a situação de Myra e Oswald mudara, mas também por lhe parecer evidente, tantos anos mais tarde, o carácter destrutivo e explosivo da relação do casal. Em Nova Iorque, Myra e Oswald, não sendo endinheirados, viviam uma vida decente, recebendo em sua casa artistas e organizando festejos de passagem de ano com eles. Vinte e cinco anos depois, vivendo já na cidade da Costa Oeste onde Nellie os encontra, a situação do casal é precária. Oswald fora despedido, tendo tido de se contentar com um novo emprego de muitos menores recursos, e Myra, doente, praticamente sem se conseguir mover, depende agora do marido para ver até as suas necessidades mais básicas satisfeitas. Nenhum amigo os visita já, e Oswald, no tempo que consegue arranjar pelo meio do seu trabalho precário, trata de cuidar da sua mulher da melhor maneira que consegue. Myra não é, no entanto, já capaz de aceitar a situação em que está. Oswald torna-se inevitavelmente a personificação da herança que Myra perdeu, ao ter fugido da sua terra natal, e ela fica incapaz de ver nele mais do que a razão de estar ali naqueles aposentos pobres, doente e sem condições.
A grande força e qualidade da novela está precisamente neste carácter duplo de Myra e Oswald, as diferentes faces que exibem – como se parecem aos outros, que os observam de fora, e como se parecem um ao outro – e na forma como só a inversão da situação do casal permite aos de fora vislumbrarem o verdadeiro carácter da relação. A personagem de Nellie, a narradora, acaba por isso por ter como função principal precisamente a ilustração desse facto (acabando por transformá-la em não mais que instrumento narrativo). Aquilo que Nellie não tinha conseguido ver 25 anos antes, era agora evidente: a relação de ambos não era perfeita, como faziam crer as histórias que de Myra se contavam. Aquilo que estava escondido surgia agora à superfície, impelido pelos anos e pela deterioração das condições de ambos.
Se, no início da relação, tudo tinha sido perfeito como parecia, com o acumular dos desapontamentos da vida, que em nada se relacionavam com o amor partilhado, o amor não tinha como não se quebrar, tornando-se inevitavelmente amargo por entre as boas memórias que dele sobram. Mas como pode o amor de uma vida tornar-se, afinal, o nosso inimigo mortal?