Ano Saramago. A vontade de contar de outra maneira: “Levantado do Chão” e “Memorial do Convento”
Este artigo faz parte da iniciativa Ano Saramago, no âmbito da celebração dos 100 anos do Nobel português José Saramago. Ao longo de 2022, e até Novembro, mês em que o escritor faria o seu 100.º aniversário, a Comunidade Cultura e Arte lançará um total de 11 artigos, um por cada mês, sobre 17 livros do escritor. Já se pode ler o primeiro e o segundo.
É ao chegar à página 22 de Levantado do Chão, quando este estava ainda em processo de ser escrito, que José Saramago decide, sem ter premeditado, escrevê-lo num estilo único, renunciando ao uso da pontuação habitual, criando o que viria a ser o estilo saramaguiano.
Em 1980 é então editado Levantado do Chão, que relata o dia-a-dia de trabalhadores do Alentejo, entre o período de 1900 a 1975, sob as leis latifundiárias, seguindo ao pormenor quatro gerações da família Mau-Tempo.
Ao invés de uma leitura comum, com a pontuação que nos obriga às paragens a que crescemos habituados, Saramago apresenta-nos um texto único, com vírgulas e poucos pontos finais e letras maiúsculas. É interessante observar esta mudança na escrita, principalmente analisando a forma como foi, até certo ponto, inconsciente: descrita por Saramago como uma espécie de “milagre”, a mudança de estilo é o resultado de uma pesquisa em Lavre, em Montemor-o-Novo, onde foram ouvidos relatos dos habitantes, muitos analfabetos, resultando numa estória que parte de uma vivência do escritor por transmissão oral e que, por isso, parece que nos está a ser contada em vez de lida.
Ao passar por vários períodos marcantes na história de Portugal, desde a Instauração da República até à Revolução de 25 de Abril, apercebemo-nos que, na verdade, as condições laborais dos trabalhadores rurais de Lavre em Levantado do Chão pouco ou nada mudam. As greves, as torturas e a corrupção, a luta pelo direito de condições mínimas persiste. “Mas tudo isto pode ser contado de outra maneira”, assim termina o primeiro capítulo de Levantado do Chão. E há nisso uma conquista (um dos muitos poderes da literatura): a criação de um livro sobre aqueles que a História decidiu esquecer.
A família Mau-Tempo torna-se imortal com Levantado do Chão mas não fica, no entanto, delimitada apenas ao livro em que é protagonista. Dois anos mais tarde é editado Memorial do Convento e enquanto acompanhamos Baltasar a escutar as histórias do passado dos seus companheiros na construção do Convento de Mafra, reconhecemos um outro Mau-Tempo, Julião, e sabemos a resposta para o seu questionamento sobre os olhos azuis que de vez em quando aparecerem nas gerações futuras de uma família de olhos castanhos.
Tal como em Levantado do Chão, Saramago aproveita também o Memorial para prestar homenagem aos construtores de um convento que, uma vez mais, ficaram ofuscados pelo nome que apenas ordenou a sua construção. Há, portanto, um trabalhador para cada letra do alfabeto, representando todos os trabalhadores, tal como H. em Manual de Pintura e Caligrafia, que apenas com uma letra, pode ser tanta coisa.
É a vontade, mesmo nas situações mais insignificantes, que inicia uma ação. A vontade de um escritor de contar uma história. A vontade que essa história seja sobre aqueles que passaram despercebidos. O sonho que se torna na vontade de um rei de construir um convento. Os sonhos noturnos de uma rainha que refletem a sua vontade de ser algo mais que apenas rainha. A vontade de um padre de voar. A partilha dessa vontade com Baltasar e Blimunda. A ideia de que a máquina voadora apenas funciona com o conjunto de muitas vontades recolhidas. E, Blimunda, que talvez tenha a maior capacidade em sonhar: conseguindo ver as vontades das pessoas em jejum, relembra a tradição popular que Walter Benjamin descreve em Imagens de Pensamento, segundo a qual não se deve contar sonhos em jejum, pois “quem acorda continua, neste estado, ainda sob a acção do sortilégio do sonho”.
Os dois primeiros livros que iniciam um estilo de escrita próprio tornam-se assim similares, trazendo estórias verdadeiramente levantadas do chão que não veríamos, não fosse a vontade de Saramago de contar a verdade de outra maneira.