Loyle Carner, o rapper que nos convida a ser melhor para nós e para os nossos

por Lucas Brandão,    4 Agosto, 2024
Loyle Carner, o rapper que nos convida a ser melhor para nós e para os nossos
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Depois de descobrir e de me maravilhar com Tom Misch e Jordan Rakei (e, eventualmente, com Alfa Mist), juntei a este trio um outro nome que, na minha cabeça, formou o quarteto fantástico da nova vaga do jazz no sul de Londres.

É um nome que não se pode dizer que é jazz nem R&B, mas que se posiciona mais na linha do hip-hop e dos rappers que o país de Sua Majestade deu ao mundo, como Stormzy, slowthai ou, no feminino, Little Simz ou, de certa forma, Jorja Smith. Com estas duas, o próprio nome de que falo já partilhou experiências e sonoridades. Falo de Loyle Carner que, prestes a completar 30 anos (nasceu a 6 de outubro de 1994), parece que já atingiu uma maturidade que muitos destes nomes só abraçam aos cinquenta.

Longe vai o caminho traçado desde o single “Tierney Terrace”, que foi acompanhado por outras experiências na plataforma onde esta malta foi aparecendo: a Soundcloud. Talvez tenha sido nesta plataforma em que muitos se conheceram e foram partilhando as suas visões e propostas musicais, fazendo misturas de músicas de uns e de outros. Como rapper, Loyle seria um pouco excecional neste caminho, mas quem escutou os deleitosos álbuns “Yesterday’s Gone” (2017, onde estão “Damselfy” ou “The Isle of Arran”) ou “Not Waving, But Drowning” (2019, marcado por “Ottolenghi” ou “Loose Ends”) percebe a afinidade com a malta do jazz. Malta que inclui, claro está, os referidos Misch e Rakei, que têm créditos em ambos os discos, com Mist a meter-se no último. Nota-se um discurso direto leve, que qualquer jovem suburbano da Europa Central ou da do Sul se identifica. As experiências na rua e em casa, na consola ou a ouvir música. As dores de crescimento, as relações com os familiares, os jogos de futebol disputados ou vistos do seu Liverpool, com ídolos à mistura (o de Carner é Eric Cantona, vindo do seu padrasto).

Esta ligação que nos chega de uma proximidade que Carner, de seu nome verdadeiro Benjamin Gerard Coyle-Larner, criou com os que o foram conhecendo, de sorriso aberto e convidativo, com uma musicalidade que nos aconchega a todos. O seu nome artístico revela as dificuldades que vivenciou ainda em menino, diagnosticado com dislexia e com síndrome de défice de atenção e hiperatividade. Intenções do pequeno Benjamin eram de singrar como ator, mas a morte do seu padrasto marcá-lo-ia, mudando o seu foco para a música. O pai, de ascendência guianesa não estava presente na sua vida, e a sua sombra tornou-se tema e combustível para as suas composições.

Enquanto foi ensaiando umas rimas e começou a desenvolver singles, começou a abrir concertos de nomes consagrados, como MF Doom, Joey Badass ou Nas, em solo inglês, mas, entretanto, com o estrelato dos seus álbuns, foram outros que começaram a abrir para os seus concertos. A sua presença na banda sonora do videojogo FIFA 20, com “Angel”, interpretado com Tom Misch e com videoclip gravado no Algarve, foi um sinal do lugar onde havia chegado. Neste rumo, partilhava a paixão da música pelo da culinária, desenvolvendo um projeto de uma escola de culinária – Chilli Con Carner – para crianças com a mesma síndrome de défice de atenção e hiperatividade com a qual havia convivido.

Porém, houve um momento na sua vida que mudou o rumo de Carner como rapper e como músico. O nascimento do seu filho, no fatídico ano de 2020, despertou-o para uma realidade que nunca decidiu confrontar e desvelar: a sua raça. Carner não é 100% negro (filho de uma inglesa branca e de um guianense negro), mas nunca se afirmou declaradamente como tendo negritude no seu ADN. Essa reivindicação vem dessa necessidade de se encontrar para se dar a conhecer ao filho. Para isso, contou com a ajuda de quatro vultos importantes: o poeta e ensaísta Langston Hughes, fundamental nessa expressão coletiva de negritude do renascimento de Harlem, o poeta com ascendência jamaicana Benjamin Zephaniah, o dramaturgo guianês John Agard, que seria o seu tutor nesse reencontro com as raízes, e o seu pai, com quem reatou relações em 2019, que verdadeiramente foi conhecendo e que o motivou a visitar a Guiana.

Essa viagem, que o fez tratar por tu, pela primeira vez, a sua ascendência, desbloqueou a camada pessoal e pungente do rap de Loyle Carner. Desta experiência, nasce o tremendo álbum “Hugo” (2022), onde é esta vivência pessoalizada da raça a protagonista das letras e das melodias das suas canções. Não há muito a dizer sobre o poder das mensagens veiculadas em “Hate”, “Blood on My Nikes” ou “HGU”, que catapultam sentimentos de frustração e de revolta para outros de aceitação e de resolução. O palco que este álbum teve como grande exposição, depois de Glastonbury e de Wembley, foi um concerto no Royal Albert Hall, em Londres, que também foi gravado em formato disco. Esta sua documentação pessoal, em muito acelerada pelo fator pandemia e pelo sucesso das estórias contadas por Kendrick Lamar no seu rap, elevaram Carner para um caminho diferente daquele que seguia com Misch e Rakei, mas que não deixa de ser tão prazeroso, especialmente por ser tão real e por cumprir, efetivamente, a missão da música. Mesmo assim, não deixou de os ter na composição e na produção, mesmo que consagrados como Madlib (em “Yesterday”) entrassem nestas contas.

Para quem tiver a oportunidade de se encontrar com Loyle Carner, não a recuse, pois é um lugar de segurança e de expressão de tudo e mais alguma coisa. Os momentos bons, os momentos maus, ser pai e ser filho, a saúde mental em criança e em adulto, a raça e aquilo que ela fez submergir no inconsciente, as ascendências que, mesmo remotas, são parte indelével do que nós somos. Seja na sua discografia ou nas (imensas) colaborações que faz, Loyle Carner é um espaço aberto a todos e no qual todos contam, onde a música é um veículo de encontro com a verdade e que abre portas para que a felicidade possa reinar. Enquanto a luta permanece, o sorriso e a leveza que Loyle, por norma, transporta dá o tónico necessário para que, de forma consciente e alinhada com o que fomos e com o que somos, possamos fazer do futuro melhor para todos.

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