A invocação dos orixás na música brasileira
Candomblé, umbandá, orixás. O que é tudo isso? Jorge Amado escreveu tanto sobre eles nas suas inúmeras narrativas. Dando resposta às dúvidas, na base está o candomblé, uma religião que resulta da migração de tantos africanos (escravos) para o Brasil e que, apesar de se ir manifestando no século XVI, começou a ter alguma consistência no século XIX. O candomblé é uma das religiões que resulta da fusão de aspetos de outras — aquilo a que se pode chamar de sincretismo —, em especial do cristianismo e de vários credos oriundos dos países no oeste de África, nomeadamente das comunidades Fon, Bantu, Gbe e Yoruba, estas duas últimas nomeadamente situadas na Nigéria. Isto em contrapartida ao candomblé angolano e congolês, onde os orixás são os nkisis, reportando ao povo bantu e ao seu quimbondo. Não deve, também, ser confundida com o Umbanda, um caminho mais recente que, embora em muito similar e também herdando muito dos ideais cosmológicos indígenas, tem um percurso ritualístico diferente e mais equivalente entre deuses e espíritos.
É uma religião que era maioritariamente praticada no estado da Bahia — com forte ligação marítima — em “terreiros”, espaços tomados como templos nos quais se proporcionam as cerimónias de louvor aos tais orixás, que mais não são do que espíritos cujos nomes e características advêm das divindades das crenças dessas comunidades africanas. Atualmente, vai estabelecendo pontes com outros caminhos sincréticos, como o vodú haitiano ou a santería, também em muito com bases africanas. A ligação umbilical desta religião com a música nasce das celebrações orientadas por homens (babalorixás ou pais-de-santo) e/ou mulheres (ialorixás ou mães-de-santo) que eram feitas, acompanhadas por dança, instrumentos e vozes que procuravam invocar os orixás e fazer com que um dos celebrantes fosse possuído por um desses espíritos.
Isto de forma a poder contactar diretamente com uma divindade. Para isso, faziam oferendas aos orixás ou aos espíritos que eram trazidos, como os boiadeiros (humanizados em forma de vaqueiros), os pretos velhos (anciãos africanos), os caboclos (indígenas) e os espíritos daqueles que tinham morrido. De igual modo, procuravam descodificar as mensagens transmitidas a partir de rituais de cura e da utilização da medicina natural, com o recurso a banhos e a plantas; para além dos famosos jogos de búzios (dilogun), de forma a proceder à adivinhação do futuro.
De modo a fintar os olhares reprovadores e censuradores do catolicismo que se impunha nessas décadas de escravatura e de servilismo, os populares fizeram equivaler os orixás a santos da Igreja Católica. A saber, o primeiro destas figuras mitológicas é o supremo Olorun ou Olodumare, o criador de tudo e de todos, embora inalcançável. O enfoque dos devotos do candomblé dirige-se, antes, para os espíritos que correspondem aos orixás, com quem procuram estabelecer relações de interdependência, trocando harmonia e proteção.
O orixá-chefe é Obatalá/Oxalá, um homem idoso que se sustenta numa espécie de bengala e o primeiro criado por Olodumaré. Sincretizado, em alguns lugares, com a figura de Jesus, é associado a ter sido encarregue da criação do mundo, mas a ter falhado após se ter embriagado. Não obstante, é ligado às figuras femininas de Nanã e de Iemanjá, sendo que a primeira é associada à sabedoria e pelos portais da (re)encarnação e a segunda é associada à fertilidade, às águas e aos rios. De igual modo, é, muitas vezes, sincretizada com figuras marianas, ou seja, com Maria, mãe de Jesus. Associado aos raios, à justiça, ao fogo e à luz é Xangô, sincretizado com a figura de São Pedro ou São João; já a sua esposa, Obá, é uma guerreira com uma só orelha e representa a força feminina personificada nas águas revoltas dos rios.
Ogum, sincretizado com São Jorge Guerreiro, é o orixá do ferro, da guerra e da agricultura, com o seu irmão Oxóssi a estar com a caça, as florestas e com os animais (é o Arcanjo Miguel). Obaluaiê responsabiliza-se pela cura da terra e dos seus, para além de representar o cuidado pelos mais velhos, sendo que Ossanhá é o veículo das folhas sagradas e das ervas medicinais. A indomável Iansá, sincretizada com Santa Bárbara, traz os ventos e as tempestades, com Oxumaré a ligar o céu à terra. Por fim, ainda há Oxum, um orixá em forma de mulher que representa o dinheiro, a beleza, a fertilidade e a sensibilidade, também muito sincretizada com a Nossa Senhora católica; e Exú, o mensageiro entre a humanidade e as divindades espiritualizadas. Podiam ser enumerados mais orixás, embora os protagonistas deste alinhamento espiritual sejam os que foram referidos, entre descendentes dos referidos e outros.
Atualmente, o candomblé (e o próprio umbandá) continua a ser praticado um pouco por todo o território brasileiro e continua a ser um enorme objeto de criação artística. Fora a literatura, em muito alimentada pela fértil e numerosa escrita do baiano Jorge Amado — ele próprio um praticante do candomblé —, muita da enormíssima e vastíssima música brasileira herda este lastro espiritual e faz dele uma inspiração constante, que sobrevive aos tempos e às gerações. Para além das próprias personificações destas religiões, também os rituais e as próprias possessões espirituais são interpretados como temas que despertam curiosidade e que mexem com a ascendência de muitos dos compositores e intérpretes.
Logo para começar, o axé, que também é uma saudação no candomblé e que resulta da fusão de muitos outros géneros associados à celebração do Carnaval de Salvador [da Bahia], criado na década de 1980. Como exemplos neste género, Daniela Mercury e Ivete Sangalo não são figuras desconhecidas do público em geral. Já com o forró, um género musical que nasceu por Luiz Gonzaga, o rei do baião, no estado do Pernambuco, existem cânticos que são vocalizados, aproveitando os instrumentos de percussão que provêm de África, como os atabaques. São géneros verdadeiramente populares, que se distanciam do samba pelos instrumentos — o acordeão (ou sanfona), o triângulo e o bombo zabumba —, mas também nas próprias danças, mais ao jeito de bailes populares propriamente ditos.
Também se pode falar do marabaixo, oriundo das comunidades afrodescendentes no estado do Amapá, que, para além da música, traz dança de roda e origens remotas, à imagem do candomblé. Aliás, as celebrações deste tipo de manifestações, consideradas património imaterial do Brasil para o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, acabam por perfilhar o louvor a figuras divinas, embora, no caso, se associem aos santos padroeiros e de devoção ligados ao catolicismo. Em muito similar, mas bem mais ligado aos orixás, é o maracatu, também ele património cultural do Brasil, e que se organiza em diferentes ritmos, agrupados por manifestações próprias. Entre eles, destaque para o Elefante, transportando para as celebrações as figuras de Oxalá, Iansá, Xangô e Oxum.
No coração da música popular brasileira, o samba foi em muito resultado das celebrações que aconteciam (e acontecem) nos terreiros. A Bahia seria, desta forma, o embrião do samba a partir dessa convergência de comunidades de origem africana, que organizavam atividades em grupo, como os pagodes. Aqui, aproveitaram-se os instrumentos de percussão que vieram de África para dar origem aos famosos sambas de roda. Essa percussão é conhecida como a batucada, utilizando instrumentos propriamente ditos e outros que eram improvisados da atividade doméstica, como pratos, chocalhos, pandeiros e, nas cordas, o cavaquinho, herança portuguesa, e o violão. No samba, percorrem-se vários nomes do século XX, como Heitor dos Prazeres, Noel Rosa, Ary Barroso, Cartola, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Beth Carvalho, Martinho da Vila ou Zeca Pagodinho.
No entanto, aquele que se tornaria mais afamado seria o afoxé, um ritmo que também provém dessas cerimónias carnavalescas baianas, e que tem como herança direta o próprio continente africano (por meio dos ritmos ijexás, que se transformariam consoante se davam ao Brasil, à imagem do candomblé. Artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e até os Baianasystem foram responsáveis por trazer muitas dessas sonoridades para a música mais radiofónica e próxima da sociedade civil. Os atabaques, ao lado dos sinos de metal conhecidos como agogôs e das próprias cabaças revestidas por redes de seu nome afoxés, personificam o sentido percussivo da invocação dos orixás. Até o pagode, que nasceu no seio das festas feitas nas sanzalas, os lugares onde os escravos dos grandes fazendeiros brasileiros no século XIX viviam, pelos seus moradores, tem afinidades com o candomblé, dado o caráter emancipatório que teve junto destas comunidades de ascendência africana.
A influência constata-se ser mesmo transversal quando se faz uma procura por orixás em leitores de música e damos de caras com uma plenitude de artistas e de estilos a invocarem estas figuras: para além dos aficionados Trio Mocotó e Os Tincoãs, do célebre Mateus Aleluia, num misto de MPB com as fragrâncias já referidas aqui, encontramos os célebres “Afro-Sambas De Baden e Vinicius” (1966, existindo uma nova gravação a solo de Baden Powell na década de 1990). Aqui, encontramos o fascínio do compositor Vinicius de Moraes com os sambas de roda a convergir com o do guitarrista Baden Powell e as suas visitas à Bahia, nas quais encontraria o repertório de canções do candomblé. A percussão fica na responsabilidade dos instrumentos tradicionais das cerimónias aos orixás, unindo-se aos típicos instrumentos de sopro (flauta, saxofone e harmónica) e à voz de Vinicius e das quatro vozes femininas de Quarteto em Cy.
“Canto de Ossanha”, “Canto de Xangô” “Canto de Iemanjá” ou “Lamento de Exu” são algumas das faixas que se tornaram imortais e reconhecedoras dessa mágica e mística realidade. A falar de Exu, este empresta o seu nome ao emergente e explosivo rapper Baco Exu dos Blues. Já que se fala de rap, lembrar a presença de Criolo, outrora um rapper em toda a sua plenitude mas, nos dias de hoje, um músico muito mais completo, saindo das urbes de SP [São Paulo] para dar voz a todo o país. Nesse périplo, as invocações aos orixás em “Sobre Viver”, inclusive a faixa “Ogum Ogum”, onde colabora com a cabo-verdiana Mayra Andrade. Até na música eletrónica, com a editora Oshu Records, sediada em Berlim, e que traz a música eletrónica contemporânea do húngaro Àbáse [escute-se o disco “Laroye”, de 2021, com uma série de colaboradores] e do percussionista Aduni [o seu solo “Obakosso” é paradigmático].
De igual modo, há quem se dedique, exclusivamente e ainda hoje, a músicas sobre temáticas associadas ao candomblé e a outras expressões religiosas: ouça-se Olodum, um grupo ativista sociocultural que define, como sua missão, combater a discriminação racional e a inequidade económica. Não obstante ter sido criado em 1979, a inspiração na figura de Olodumaré prevalece até ao dia de hoje, transformando-se a partir dos seus novos e menos novos membros. Entre outros, o Grupo Ofá é outro dos que se dedica à música com orixás (orikis), exportada diretamente das cerimónias religiosas, assim como os Metá Metá e a sua vocalista Juçara Marçal, uma das vozes mais subvalorizadas em todo o Brasil. De igual modo, é justo falar da breve carreira de Serena Assumpção, filha de um monstro sagrado da composição musical em brasileiro, Itamar Assumpção. Serena herdou o gosto do seu pai e fez de “Ascensão” (2016, lançado postumamente), o seu único álbum a solo, um bonito testemunho deste caminho.
Podia falar-se de muitos outros músicos do Brasil (e até de países lusófonos, especialmente dos africanos) que cantaram sobre os orixás ou sobre outros ritos religiosos. Aliás, é mais raro encontrar um artista que não o tenha feito. É a influência indelével daquilo que o candomblé fez com a riqueza musical de um país tão vasto e diverso, com um apetrecho de identidades que, ainda hoje, se encontra por descobrir na totalidade. Os orixás são disso exemplo, espelho de uma cosmologia muito por se decifrar mas que tanto interesse despertou naqueles que, com alma de artista, foram à busca de novos caminhos. Caminhos de encontro com divindades, com espíritos, com celebrações, com seres humanos em celebração e em oração. A história do Brasil (e dos seus orixás) continua a ser escrita por testemunhos destes, que trazem samba, bossa, rap, MPB. Em suma, tudo de tudo neste terreiro de vivos e de mortos.