Eduardo Galeano: o jornalista e escritor, apaixonado por futebol, que nos explica a América Latina e o mundo
Eduardo Gérman María Hughes Galeano. Este é o nome do homem que nasceu a 3 de setembro de 1940, na capital do Uruguai, Montevideu. Este é, também, o nome do homem que viria a falecer 74 anos depois, na mesma cidade, vítima de um cancro no pulmão. Porém, é, também, o nome de um dos maiores vultos da escrita e do pensar pelo tempo e pelo espaço do Uruguai, viajando através do jornalismo e imaginando através da literatura. Foram imaginações que, no entanto, se perspetivavam bem reais, em especial no exercício de cardiologia que fez nas “Las venas abiertas de America Latina“, de 1971. O seu fluxo criativo transporia as fronteiras do seu país e do seu continente e viajariam para o outro lado do Atlântico, em comunhão com os demais países latinos e hispanófilos. Mais do que a criatividade, a fiabilidade de relatos verdadeiros e sustentados, entranhados nos solos férteis e inférteis que viu serem explorados.
Galeano cresceu no seio de uma família de classe média-alta, de raízes católicas, mas não deixou de exercer diversos misteres durante a sua vida: foi mecanógrafo, operário, “pombo-correio”, funcionário de um banco; mas também desenhador, pintor e caricaturista. Foi bem jovem que encontrou poiso na imprensa uruguaia, nomeadamente no jornal de pendor esquerdista Marcha, e que conheceria autores futuramente prestigiados, como o peruano Vargas Llosa ou os seus compatriotas Mario Benedetti e Adolfo Gilly. No ano de 1964, aos vinte e quatro anos de idade, quatro anos depois de iniciar a carreira jornalística, fundaria o seu próprio periódico, o Época. No entanto, anos depois, causaria conturbação perante o regime político vigente, sendo este autoritário e ultraconservador, à imagem de tantas outras ditaduras militares que assolaram os países vizinhos do seu. Foi, assim, forçado a sair do país, beneficiando da relação de amizade com Juan Domingo Perón, à data presidente argentino, que o receberia no seu país, depois de o ter conhecido no outro lado do Atlântico, em Paris. Corria o ano de 1973.
“Os Índios das Américas somavam não menos de 70 milhões, talvez mais, quando os conquistadores estrangeiros apareceram no horizonte; um século e meio depois, tinham ficado reduzidos, no total, a apenas 3 milhões e meio.”
Eduardo Galeano em “As Veias Abertas da América Latina”
Dois anos antes, em 1971, já havia escrito “Las venas abiertas de América Latina“. É uma viagem bem longa e detalhada desde as raízes mais profundas dessa América latina, desde os povos originários daquele território até à então contemporaneidade, nomeadamente os regimes militares impostos sob a alçada dos Estados Unidos. Muito visado é o percurso da colonização, onde a tónica cai na exploração dos recursos naturais e humanos e onde essa tónica é explanada através de um misto de dois formatos: crónicas e narrativas divididas em duas partes fundamentais: “A Pobreza do Homem como resultado da Riqueza da Terra”, onde o ouro, a prata e demais recursos e naturais são explicados à luz da sua usurpação e exploração por parte dos povos invasores; e “O Desenvolvimento como uma Viagem com mais Náufragos que Navegantes”, na qual a direção é mais política e onde se recai mais para a relação opressor-oprimido, sempre à luz de um passado colonialista que se vê na iminência de ser revivido. É uma obra-prima naquilo que concerne a literatura de origem latinoamericana, tornando-se numa autêntica bíblia para qualquer cidadão destes países e que motivou muitas e diversas inspirações futuras, como da chilena Isabel Allende ou até do arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer.
Contudo, à data destas novas estabelecidas ditaduras, esta sua obra seria censurada e só circularia na clandestinidade, nomeadamente na Argentina, no Uruguai e no Chile. Ainda em 1973, dirigiria a revista Crisis, assumindo-a como “um ato de fé na palavra humana solidária e criadora”. Reuniria aqui autores de nomeadamente, como os argentinos Borges e Cortázar, mas também o brasileiro Jorge Amado e o colombiano Gabriel García Márquez. Porém, tamanha pressão condicioná-lo-ia a partir para Espanha, no ano de 1976. Este período de migração serviria para a escrita de “Memoria del fuego” nesse mesmo ano. Tratou-se de mais um relato cronológico pela história da América latina, dividido em três livros distintos: “Los nacimientos” (1982), “Las caras y las máscaras” (1984) e “El siglo del viento” (1986).
Desde o século XVII ao XX, viaja-se por uma prosa que roça o poético, ao mesmo tempo que não se coíbe de exprimir a carga dramática e quase trágica desta história, embora se sustente, amiúde, com fontes históricas, à imagem do que já havia feito nas suas “venas abiertas”. Este misto de uma prosa com lirismo e com substrato científico permite, quase sem igual, criar um autêntico tratado do que é o legado escrito da tradição oral intergeracional dessa sua América latina. Antes, também tinha escrito “Días y noches de amor y de guerra” (1978), produto imediato do pós-implantação do regime militar. É uma conjugação entre mortos e vivos, colocando-os num diálogo intenso sobre o passado e o presente, sobre os males da repressão e do medo, sobre a necessidade de, mais uma vez, os latinoamericanos se sustentarem nos seus valores de perseverança e de uma humildade viva e crítica.
“Devemos ter consciência de que os direitos da natureza e os direitos humanos são dois nomes da mesma dignidade. E qualquer contradição é artificial.”
Eduardo Galeano
O seu prestígio havia, também, chegado à Europa e alastrado a bem mais que os seus co-falantes do espanhol. Havia chegado, também, a demais idiomas, entre traduções várias. Pelo menos, em Estocolmo, chegaria, já que o autor viveria e trabalharia aqui como membro do tribunal internacional que zelou pela questão da invasão soviética do Afeganistão. Somente em 1985 regressaria ao seu país, ao Uruguai, no ano em que a ditadura militar havia, enfim, afrouxado. Ao lado de conterrâneos seus, como Mario Benedetti ou Hugo Alfaro, criou o Brecha, um semanário que herdou os princípios do Mancha, que já havia ficado para trás na história mas que se propunha como um órgão de esquerda independente, fazendo face aos desafios vigentes e futuros trazidos pelo fim do século XX e pelo início do XXI.
Envolver-se-ia politicamente de forma direta, integrando o referendo sobre a lei da caducidade da pretensão punitiva do Estado, votação efetuada em 1989, que visava questionar a amnistia concedida aos militares e membros de segurança pública do regime ditatorial. No entanto, esta seria mantida com 56% da votação por parte dos populares. Neste ano, redigiu “El libro de los abrazos“, um conjunto amplo de relatos e de ilustrações sobre diversos temas políticos, sociais, civis e cívicos, religiosos e literários. Como sua unidade e como base para a sua criação, a memória. As suas intensas e imensas vivências recordadas ou, como ele próprio as entendia, um regresso desses momentos ao seu coração. Um verdadeiro memorial, fértil, rico e fazendo jus ao valor intelectual e moral do seu autor.
Apesar desta derrota, Galeano nunca deixou de dar o seu contributo frenético em prol do seu país, estando presente na vitória da Frente Amplio, uma força política progressista e de cariz socialista, em 2004; para além de fazer parte do comité consultivo da cadeia televisiva TeleSUR. A sua voz continuou extremamente valiosa e ativa em prol de causas que considerava justas e anti-imperialistas. Também por isso instituiu, junto do seu jornal Brecha, o prémio Memoria del Fuego, que passou a premiar criadores artísticos e literários comprometidos com as causas dos direitos humanos. À imagem do que havia feito por toda a sua carreira, num percurso que sempre pôs o primado nos mais pobres e socialmente desfavorecidos, no perene subdesenvolvimento da sua América latina, sem deixar de atribuir culpas às potências ultramarinas, desde Espanha, Inglaterra, Holanda e Portugal.
Os ideais de justiça e de prosperidade contrabalançados contra os de riqueza e pobreza. Foi isso que também perpetuou em “Las palabras andantes” (1993), uma outra antologia de contos maravilhados e maravilhosos, pugnando pela equidade e pela justiça, mas também por um recolher de personagens que divaga entre o sagrado e o profano, no desporto e na vida, entre a humanidade e os demais elementos da Natureza. Quatro anos antes, havia feito algo similar no “El libro de los abrazos“, viajando por essa fantasia que o realismo mágico sul-americano tantas vezes estimulava. Concede o protagonismo, como quase sempre, aos oprimidos perante os opressores e, nessa primeira pessoa que lhes atribui, dá-lhes um holofote imponente e ressoante para se emanciparem política, social, cultural e pessoalmente. São abraços que são dados, não através do corpo, mas antes pela alma e pelas suas expressões.
“A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la.”
Eduardo Galeano
Depois de três matrimónios (tanto divinizava as “Mujeres” que até lhes dedicou um livro, em 2015, enaltecendo a sua coragem, a sua bravura, o seu valor e o seu protagonismo pelo revirar dos tempos humanos) e de, igualmente, três filhos, o cancro do pulmão que o havia acometido em 2007 deixou sequelas que o vitimariam oito anos depois, em 2015. Pese embora estas vicissitudes, Galeano não parou de escrever e publicou, entre várias outras obras, “Espejos” em 2008 e “Los hijos de los dias” em 2011. A primeira é mais um conjunto alargado de relatos que, embora não disponham de referências bibliográficas, são vários traços da evolução da civilização humana como parte integrante de uma sociedade viva e global.
Desde Jesus Cristo, passando por Francisco Franco, Che Guevara e sem descurar uma das suas paixões de vida: o futebol. Modalidade que, desde criança, o inspirou e o apaixonou e à qual dedicou um livro, “El fútbol a sol y sombra“, paixão essa motivada por ser “a arte do imprevisto”. Não se cansava, assim, de perscrutar as suas origens, os seus mitos, as suas lendas e as suas mais inusitadas estórias, para além de, como aficionado, devorar de início ao fim os Mundiais de futebol. “Los hijos de los dias” é um calendário transformado em relatos, sendo que cada um corresponde a um dia do ano, numa busca incessante pelos diversos encantos da vida, por entre gerações e épocas, mais ou menos distintas, onde o diferente é convidado a ter o estatuto de igual.
“Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos.”
Eduardo Galeano
As narrativas breves e as viagens pela história e pelas suas mitologias fizeram de Eduardo Galeano um escritor, por si só, mítico. Mítico num diálogo riquíssimo, resultante do solo fértil que ele próprio cultivou com um combate incessante do lado dos oprimidos perante os opressores, ao longo de toda a história que estudou e que narrou. Era, efetivamente, “El cazador de historias” (2016, uma outra colheita de contos sobre feitos lendários e oníricos, no turbilhão das mitologias reais e inventadas). Um “cazador” que se enriqueceu ainda mais quando, abdicando da verdade dos factos, aceitou acolher o prazer fantástico e imaginário e pintar de cores ainda mais garridas e vivas as suas imensas realidades. Na base, a sua América latina, que tanto valorizou, que tanto defendeu, que tanto referiu e explorou em tantas e tantas viagens. Galeano é, hoje, o tal mito que foi real e que ainda o é, plasmado num conjunto bibliográfico que mantém essas veias latinoamericanas bem abertas.